quinta-feira, 1 de julho de 2021

O assalto

Depois de uma monstruosa manipulação, os directores do jornal Expresso insistem na macacada que fizeram.

Publicaram ontem um video que reproduz, mais uma vez, as conclusões erróneas de um estudo sem qualquer credibilidade, ainda que patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, martelando que os portugueses se inclinam, cada vez mais, para um "líder político autoritário". Uma falsa tendência que é agitada na televisão por diversas figuras, entre as quais Miguel Poiares Maduro, ainda que avisando os espectadores para o seu perigo...

Há, de facto, uma coisa recente e estranhamente perigosa na direita portuguesa. Cada vez mais se insiste na relativização do que foi o regime salazarista. Cada vez mais surgem jovens e velhos comentadores, historiadores ou economistas, líderes políticos e deputados de direita a repetir à exaustão - num mantra descarado e nauseabundo - que afirma que...
"não é possível julgar o passado com os olhos do presente".
Na verdade, o que eles querem dizer é:
"não é possível julgar o passado com os olhos de quem o viveu como presente (e o combateu nessa altura)".
O que querem é que se adopte, sim, o olhar actual de pessoas certificadas - um olhar distante, revisionista e adulterador - sobre a muito passada ditadura que o era ("não gostamos disso"), mas que o era de forma bem intencionada e eficaz. Aliás, se reprimiu, reprimia aquelas forças derrotadas, afastadas e saneadas do aparelho político-militar com o... 25 de Novembro de 1975.

Mas por que adoptam este discurso?
Resposta: Para que essa mistificação do passado possa ter efeitos na actualidade. Isso permitirá à actual direita herdar um reinado de 48 anos de História - de onde, aliás, vieram os seus antigos principais dirigentes, bem como a máquina política da ANP (herdada pelo PPD, Freitas do Amaral dixit) - passando a beneficiar de um regime que, por artes mágicas, deixou de ser - sobretudo - uma ditadura e passou a ser, sim, um regime disciplinador dos desmandos da 1ª República encharcada em corrupção (como hoje, dirão) e das maluqueiras anarquistas e revolucionárias. Algo, aliás, que se aproxima muito da propaganda do Estado Novo.
Pequeno interlúdio para recordar: Quem viveu esse passado não pode esquecer o regime mentiroso e hipócrita, que se dizia um Estado de Direito, mas que bebia na profunda inspiração fascista, cúmplice dos interesses nazis no mundo (chegando a intermediá-los junto do governo britânico), com a ditadura franquista, em Espanha; um regime injusto e entrosado nos interesses de meia dúzia de monopolistas autorizados pelo Estado-ditadura, em que o sistema assassino e repressivo, à pala de combater com ódio os malefícios do comunismo e da 5ª coluna do imperialismo soviético [era assim que a PIDE discutia a importância do "auto-denominado partido comunista português", escrito em letras minúsculas], tinha uma lógica de amordaçar qualquer organização dos trabalhadores, impedindo a sua intervenção e, com ela, uma mais justa distribuição da riqueza. Essa santa Trindade - monopólios, regime repressivo, baixos salários (pobreza)/emigração - compaginava-se ainda com um regime ideologicamente rural, arcaico e conservador, velho, bafiento e apodrecido do Estado Novo, corroído internamente por quem queria respirar, e que, por isso, caiu de podre, sem um tiro, com os tanques na Baixa de Lisboa e os chaimites no Largo do Carmo.
Ora, o jogo deste nova gente é claro. Na realidade, eles não são fascistas. E, como diz a anedota, se não é por amor, deve ser por interesse.

Fazem-no porque já não conseguem propor nada de concreto que seja uma visão de futuro para o país. Já conseguiram consolidar o edifício da legislação laboral que mantém os salários baixos. E não têm mais reformas estruturais que não seja o desmantelamento do Estado Social e o saque aos bens públicos: seja pela privatização da única instituição pública no sistema financeiro (CGD) - com 40% do mercado -, seja pela privatização da saúde pública (8 mil milhões de euros anuais de despesa pública com a saúde - veja-se a recente proposta de Passos Coelho), seja pela privatização da Segurança Social (mais de 30 mil milhões de receitas anuais entre impostos consignados, contribuições e transferências públicas do Estado, fora um fundo de estabilização que gere uma carteira de activos que, em 2019, superou os 20 mil milhões de euros). Quem vir os posts no Facebook do ex-ministro de Passos Coelho, Álvaro Santos Pereira, sobre as barreiras à entrada no sector dos serviços, percebe o que se quer.

Um saque que deve ser feito pelas "empresas", porque, como repetem, "são as empresas que criam  emprego e riqueza". E sobretudo as grandes empresas (veja-se declarações do ex-ministro de Cavaco Silva Valente de Oliveira, ao Expresso, em que defende que devem ser privilegiadas na distribuição de fundos públicos). Não é por acaso que os deputados da direita no Parlamento repetem à exaustão que, mais do que o Parlamento, as leis devem ser aprovadas na concertação social. Porque aí, se a iniciativa política é do Governo, quem tem o poder de veto é o patronato. E esse é o novo regime que se pretende.

Para realizar este saque, que ficará devidamente respaldado pela contenção dos gastos públicos ordenada pelas instituições europeias (como se antevê já dos debates europeus), vai ser necessário autoridade.

Da anterior trindade, herda-se uma nova que funciona num ciclo de efeitos cumulativos: Monopólios resultantes da privatização - "austeridade"/autoridade - salários baixos(pobreza)/emigração. A desigualdade social que este programa implica traduz-se num crescente descontentamento que tenderá a ser capitalizado por uma direita radical, o que arrasta o "centro" político mais para a direita. Tudo se torna no cenário ideal da direita: as escolhas políticas principais passam a ser entre uma direita civilizada e uma extrema-direita radical. Algo que se vem passando em diversos países e que se assemelha perigosamente do que se verificou há pouco menos de 100 anos, cenário ideal para uma guerra. Na altura, o centro dos ataques estava na União Soviética, hoje estará na China. O que será uma guerra no século XXI, está por saber.

Estes jovens e velhos comentadores, historiadores ou economistas não são, pois, fascistas. São apenas piratas. Querem apenas uma direita musculada no poder que mantenha a esquerda num redil ideológico, de preferência conseguido por cenários de choque, para que possam saquear os bens de todos, em nome de uma suposta maior eficácia administrativa. É apenas um assalto. 

Já o caso da direcção do Expresso, o interesse é outro. Querem apenas - à la Facebook - criar polémica para ter mais uns cliques, porque pensam que ganham mais publicidade. Tristeza.

3 comentários:

Francisco disse...

O João Ramos de Almeida, volta que não volta, arranja-me o mesmo problema: o sumo das coisas que escreve, obriga e exige, pelos mais saudáveis motivos, um comentário que vá para além da mera - ainda que merecidíssima, por razões que me parecem ser óbvias - concordância.
Mais uma vez assim sucedeu: dedos colocados em feridas profundas, identificando traços estruturais da nossa realidade presente e dos seus muito expectáveis desenvolvimentos futuros.
Ao contrário da expressão de uso generalizado "extrema-direita" privilegio por regra o uso da expressão "direita", apenas. De facto e no contexto de uma luta de classes que, por mais que a tentem pintar com outras cores e matizes, aí se mostra, exuberante, todos os dias, "direita" e "extrema-direita", não serão mais do que sublimações vocabulares através das quais se procuram identificar as forças que agindo em diversos planos da arena classista, aí tentam levar por diante e fazer prevalecer os interesses da classe a cujo mando se encontram. São por isso, "direita" e "extrema-direita", faces do mesmo poliedro, elementos integrantes de uma mesma matriz de cujos traços essenciais participam. E, se é certo que por vezes vemos uma dessas faces de modo mais intenso e noutras ocasiões ela fica mais oculta, tudo se deve à forma como o poliedro é movimentado diante dos nossos olhos. E a mão que o movimenta é, invariavelmente a mesma. No meio de tudo isto (tenho-o dito e repetido em vários âmbitos e contextos), há, no que toca ao desenvolvimento de uma estratégia consistente de forças de esquerda (desde logo e como requisito mínimo, assumidamente anti-fascistas), uma pergunta fundacional a que cada vez vai ser mais difícil fugir: de que lado nos posicionaremos, quando o centro for apenas fumaça ou espuma dos dias, como tenho por inevitável que acontecerá num processo que corre em ritmo cada vez mais acelerado? Volvido que está o tempo do Estado social, da social-democracia e de outros contos de fadas, talvez seja mesmo tempo de colocar essa pergunta em determinadas agendas internas, com especial destaque para a que estiver sobre a mesa ali para os lados do Largo do Rato.

TINA's Nemesis disse...

Aqueles que andam a relativizar o regime Fascista Salazarista não são fascistas, eles só estão a pavimentar o caminho onde o Fascismo caminha até se apoderar do regime completamente, depois, os não-fascistas, como João Miguel Tavares, podem cantar loas ao regime Fascista Salazarista sem medo das reprimendas da esquerda, até porque os esquerdas serão ostracizados, perseguidos, encarcerados, torturados e mortos...

Guilherme Antunes disse...

Onde terá descoberto o senhor Ramos que os indivíduos que descreveu bem não são fascistas? Mistério. Mas a extrema-direita não ser o mesmo que fascismo não é uma forma de tentar trocar as voltas à História? Os próceres do capitalismo não são os criadores do fascismo? E sendo elementar a resposta (que sim), poder-se-à destrinçar um do outro? Evidentemente que não! É a perspectiva, meu caro, é a perspectiva.