domingo, 18 de julho de 2021

Coisas boas e más


Num dos seus momentos de humor, Ricardo Araújo Pereira resumia o programa do PAN a um slogan: “queremos coisas boas, não queremos coisas más”. Tenho-me lembrado deste slogan, agora a propósito de todo um conjunto de não-posições ditas de esquerda em Portugal sobre a situação em Cuba. Há excepções, claro. 

Já não é a primeira vez que constato o seguinte: o mais importante para demasiados radicais não é tomar uma posição clara em face do que está realmente em jogo, o mais importante em matéria política é mesmo tentar alardear um catálogo de virtudes, independentemente da sua aplicabilidade prática. Evitam escolhas, evitam correr riscos que por vezes implicam sacrifícios dolorosos de valores, dado que estes tantas vezes colidem, incluindo devido a inimigos dispostos a tudo. O importante é escapar oportunamente ao velhinho problema das mãos sujas, a que toda a política em certos momentos decisivos não consegue escapar. O importante é estar sempre longe do poder. 

Como indicou Domenico Losurdo, criticando “o marxismo ocidental”, por contraposição ao “oriental”, ao que construiu Estados, alguns dos quais felizmente andam por aí a mudar o sistema internacional: “na medida em que se satisfaz com a crítica e, aliás, encontra sua razão de ser na crítica, sem pôr-se o problema de formular alternativas possíveis e de construir um bloco histórico alternativo àquele dominante, ele é a ilustração da sabichonice do dever ser; quando, pois, desfruta da distância do poder como uma condição da própria pureza, ele encarna a bela alma.” 

Sabendo pouco, confio em quem arrisca apoiar quem tem de liderar, quem tem de dosear consenso activo e coerção, em circunstâncias complexas, para não dizer impossíveis, quem apoia o regime socialista e as suas reformas com características cubanas, porque sabe o que está em jogo, mesmo podendo perder e/ou errar espetacularmente, dada a incerteza inultrapassável nos assuntos humanos, ainda para mais nos sistémicos. Depois já não conta. 

E, reparem, se é assim sobre meras tomadas de posição individuais e colectivas em relação ao que se passa longe, imaginem como será quando as escolhas trágicas nos baterem colectivamente à porta com mais estrondo ainda, obviamente nas circunstâncias muito diferentes que são as nossas. Desculpem o pessimismo: é que vão bater mesmo. Desculpem a esperança: a única coisa que se pode prever é mesmo a luta consequente. 

Adenda: Não deixem de ler o informativo artigo de Raquel Ribeiro no Público sobre "a tentacular teia do bloqueio dos Estados Unidos a Cuba", uma voz que vale sempre a pena ler no AbrilAbril. Uma excelente resposta aos que, à esquerda, fazem do internacional uma dedução de princípios liberais bem selectivos.

1 comentário:

rui cs disse...

Com a excepção de alguns comentários como de alguns cubanos-Julio Cesar Guanche, Leonardo Padura, o blog comunistascuba.org, assim como os comunicados de estudantes universitários cubanos que o mesmo blog divulga, ou um texto da brasileira Joana Salém - parece que a generalidade da esquerda ignora olímpicamente a existência de diversidade ideológica e de tensões sociais que vão além da dicotomia: revolucionário / contrarrevolucionario ao serviço do imperialismo. Neste sentido, as próprias manifestações na sua especificidade desaparecem de vista, uma vez que a discussão é se somos à favor ou contra uma Cuba socialista. Ora, se formos ver ao que das manifestações se sabe, não houve actos que se pudessem descrever como procurando uma sublevação armada ou algo que pusesse em causa a própria revolução. Sendo assim, seria mais adequado procurar saber entre aqueles que se manifestaram e que possam representar diversos sectores da população, o que as motivou para os actos, que objetivos imediatos procuram, em vez de ver em qualquer coisa que ocorra dentro de Cuba ou algo à favor da revolução ou algo com a pretensão de derrubá-la.