quarta-feira, 7 de abril de 2021

Dez anos de resgate. Resgate de quem?

 

É caso para dizer como M. Thatcher: TINA (There Is No Alternative = não há alternativa). No canal de informação da nossa televisão pública, na RTP3, a mais desastrosa e cruel política económica a que Portugal foi sujeito desde o fim da ditadura salazarista, a intervenção do FMI-CE-BCE (a famosa troika) iniciada em 2011, foi recordada como uma inevitabilidade no quadro de uma gravíssima crise de finanças públicas. 

É deplorável, diria mesmo inconstitucional, que o serviço público de televisão continue a exibir tão despudorada falta de pluralismo, até porque não faltam economistas que apresentam uma leitura muitíssimo mais realista e fundamentada dessa crise. Infelizmente, enquanto economista e comentadora, Susana Peralta também partilha a leitura da ortodoxia e dá o seu contributo para a manutenção da hegemonia neoliberal na televisão pública. Pela minha parte, contesto.

A crise que tivemos em Portugal NÃO foi uma crise de dívida pública. Passo a explicar sucintamente:

1) A crise financeira dos EUA, após décadas de especulação desenfreada, atingiu os bancos europeus detentores de títulos cujo valor passou a ser nulo ou perto disso. Alguns vieram a falir, muitos outros só se aguentaram com dinheiro público.

2) Os bancos europeus deixaram de ceder liquidez uns aos outros dada a incerteza que pairava sobre os seus activos. O BCE não se comportava como um verdadeiro banco central e tardou imenso a intervir no sistema financeiro. Os banqueiros portugueses estavam aflitos. Porquê?

3) Após duas décadas de intenso endividamento externo da economia portuguesa (euro='moeda forte' => é mais barato importar do que produzir), os bancos do centro da Zona Euro deixaram de fazer a reciclagem das dívidas dos bancos portugueses. A liquidez do mercado interbancário estava 'congelada'. Por isso, foram pressionar Teixeira dos Santos para que obtivesse um empréstimo externo a fim de salvar os bancos portugueses de um colapso iminente.

4) O problema teria sido rapidamente resolvido com cedência de liquidez do BCE. Contudo, a ideologia ordoliberal inscrita nos Tratados e dominante na CE e no BCE, impedia uma intervenção que seria normal no resto do mundo. Só com Draghi à frente do BCE e, ainda assim com muita oposição, foi possível controlar a crise de liquidez do sistema financeiro e, após 2012, financiar indirectamente os Estados da periferia fazendo uma triangulação com os bancos que tinham acesso ao mercado primário (compra directa ao Tesouro).

5) Só restava uma saída: o governo teria de se endividar para acudir ao sistema financeiro português, por falta de liquidez nuns casos, por insolvência noutros, devido ao seu funcionamento em roda livre durante muitos anos. Hoje sabemos que tudo isso teve a cumplicidade do BdP, incluindo a situação a que chegou o BES e a sua dispensa do apoio financeiro via troika.

6) Os especuladores financeiros olharam para esta situação segundo o seu prisma. Se o Estado português vai ter de resgatar os bancos, vai ficar com uma dívida pública enorme que dificilmente pagará num contexto de estagnação global prolongada e, ainda por cima, metido no colete de forças dos 'critérios de Maastricht', o que impede uma política orçamental expansionista.

7) As crises financeiras da Grécia e da Irlanda (as de Espanha e Itália foram travadas por Draghi), com as respectivas especificidades, já tinham produzido um enorme clima de incerteza quanto ao futuro da Zona Euro, o que era reforçado pelas declarações políticas moralistas, vindas sobretudo da Alemanha, que lançavam uma cortina de fumo sobre a origem da crise: foi a dívida pública, foi o despesismo dos Estados da periferia, a causa da desconfiança dos mercados financeiros.

8) Num contexto de dúvidas quanto à viabilidade da Zona Euro, a taxa de juro implícita nas transacções da dívida portuguesa no mercado secundário subiu imenso, o que obrigava as novas emissões de dívida a oferecerem juros cada vez mais insustentáveis. Com aquelas taxas, a dívida portuguesa teria uma evolução com 'efeito bola de neve'.

9) Merkel, Trichet (causador de uma segunda recessão) e os ordoliberais, impedindo o funcionamento do BCE como um qualquer banco central, alcançaram o seu objectivo de converter uma crise financeira e de desequilíbrios externos numa "crise de dívida pública". José Sócrates, encurralado e resignado, pede o empréstimo que os banqueiros vinham exigindo a Teixeira dos Santos e submete o país à tutela da troika, acabando por "confirmar" a opinião da ortodoxia, amplamente divulgada nas televisões, de que o país tinha criado um gravíssimo problema de dívida pública e, agora, teria de expiar o seu desvario orçamental sujeitando o povo ao sofrimento da austeridade.

Conclusão: No início da crise financeira de 2008, Portugal NÃO tinha um problema de dívida pública. 



O insuspeito euro-federalista Paul De Grauwe, logo em 2010, denunciou (aqui) a narrativa da "crise da dívida pública" como uma manobra de encobrimento das responsabilidades da Alemanha na criação do verdadeiro problema de que não se queria falar, o dos excedentes externos alemães como contrapartida dos défices externos da periferia da Zona Euro. 

Na verdade, Portugal tinha um grave problema de endividamento externo, e ainda tem. Para saber mais, ler Ricardo Cabral (aqui).

Aliás, este problema não tem solução no actual contexto institucional. Como acontece com qualquer país da periferia, só há uma forma de travar o seu endividamento externo: usar a política cambial (além de outras políticas desenvolvimentistas) para eliminar os défices da balança de bens e da balança de rendimentos. E isso não é possível enquanto não recuperarmos a soberania monetária.

12 comentários:

Anónimo disse...

"Susana Peralta também partilha a leitura da ortodoxia e dá o seu contributo para a manutenção da hegemonia neoliberal na televisão pública"
Até já Susana Peralta é uma neoliberal!!!

Francisco disse...

Há surpresas, que me surpreendem. Não sei se alguém depositou alguma estranha esperança salvífica na Srª. Drª. Susana Peralta. Mas, que me desculpem a franqueza, para além do penteads e dos óculos, tudo o mais é alinhado e convencional. De resto, é evidente que se não fosse assim, os holofotes seriam virado noutra direcção que não a sua. A barragem ideológica é mais feroz a cada dia que passa e, por conseguinte, para todos os que entendem que a inexistência de alternativas é um embuste nos seus termos, então o caminho a trilhar passa sobretudo por sublinhar as evidências desta paz podre de que é também feita a espuma dos dias que passam. Sem surpresas, já que infelizmente não as há.

Anónimo disse...

Se a Dr.a Susana Peralta fosse progressista, seria professora na NSBE?!

Nuno

claudio disse...

NUNO ^^ e no entanto foi ela que foi ameaçada pela propria NSBE aquando de uma opiniao sobre a EDP (creio eu)

Anónimo disse...

O Esquerda.net nunca enganou ninguém: é um antro de neoliberais!!!
https://www.esquerda.net/content/susana-peralta-o-que-falta-na-resposta-europeia-crise/67460

Já só o MAS e o PCP ficam de foram.

Anónimo disse...

Até uma economista conotada com o Bloco de Esquerda leva com anátema de "neoliberal".

Como é possível uma discussão aberta sem preconceitos e com tantos rótulos?

Anónimo disse...

Mas há tratados que regulam os excedentes na zona Euro, a questão é porque não são cumpridos, e porque ninguém exige que sejam? Se há uns que têm de ser cumpridos e outros não o poder é arbitrário na zona Euro. A suposta independência do banco central europeu não existe, nunca existiu e nunca existirá, isso é uma fraude ideológica. A defesa da causa pública é um excelente assunto, como é possível as pessoas que trabalham e que gerem a provisão pública não salvaguardarem o interesse da instituição, mesmo os políticos que actuam contra o seu fortalecimento, qual o seu papel em tudo isto? Não existe ingenuidade em tudo isto, há cidadãos que agem contra a decência e a dignidade e estes têm de ser apontados por isso.

Hélder Rocha disse...

Sr anónimo, a questão não é a Susana Peralta ser neoliberal. A questão é que, sendo ela da escola clássica, aceita o discurso neoliberal sobre a dívida pública. Ela pode até ter posições de maior sensibilidade social e de melhor distribuição de rendimento, mas a teoria clássica deixa sempre a intervenção do Estado numa camisa de forças. Afinal, quem vai pagar a conta? Portanto sim, se a Susana Peralta aceita os pressupostos do discurso neoliberal sobre o endividamento púbico, então está a contribuir para manter a hegemonia desse discurso.

TINA's Nemesis disse...

Há dúvidas que Susana Peralta repete pontos de vista neoliberais?

A Peralta põe em causa a UE e Euro?
Não.
O Euro e os tratados "europeístas" são construções inequivocamente neoliberais.

Quem quer enterrar o Neoliberalismo de vez ou apresenta a famigerada reforma da UE e zona Euro (não têm qualquer reforma...) ou enterra a UE e Euro juntamente com o Neoliberalismo.

A Peralta não confronta a UE/ Euro, logo, adere, inevitavelmente, à ideologia neoliberal.

Susana Peralta quer aparecer na TV, e sabe perfeitamente que ser crítico da integração anti-democrática "europeísta" garante que não aparece na TV e que seus textos não aparecem em jornais de "referencia".

O neoliberalismo com "consciência social" da Susana Peralta está assente nas mesmas aldrabices que o neoliberalismo do desprezível Camilo Lourenço, não resolve qualquer problema da sociedade apenas é um pouco mais lento na destruição da mesma, e entretanto, Susana Peralta exibe-se como uma pessoa cheia de consciência social, António Costa faz o mesmo.

Susana Peralta, tal como os restantes economistas mainstream, não estão aqui para resolver os problemas de qualquer sociedade, estão neste mundo para ser relações públicas da classe dominante.

Obviamente Susana Peralta devia ter tido alguém com opiniões divergentes e fundamentadas, claro, a ausência destas opiniões divergentes é intencional, e assim o tem sido há muito tempo!

Monteiro disse...

A Dívida das Nações é o maior negócio que sustenta o sistema capitalista e os seus donos. O FMI, agente vendedor do capitalismo, aproveitando a pandemia do Corona vírus, anda activo espalhando humanitariamente dívida por todo o Mundo, a Angola, a Namíbia...etc. por aí fora. Moçambique rejeitou. Rejeitou? A máfia não lhe vai perdoar. Emprestar é dominar. Já cá vieram bater de novo à porta e o vendedor até é um velho e indesejável conhecido por sinal. São capazes de fazer negócio porque os conselheiros nacionais prestam-se a tudo a Bem da Nação.

Anónimo disse...

O camarada Arnaldo Matos é que tinha razão: são todos uns ... neoliberais!
O caso de Susana Peralta é um bom exemplo: uma professora da NSBE infiltrada no Esquerda.net. Infelizmente Arnaldo Matos já cá não está, mas outros continuam vigilantes.

O Populista Neo-liberal-socialista disse...

Estes comentários são tão hilariantes de se ler.