terça-feira, 1 de setembro de 2020

A catástrofe macroeconómica e os meios de a esconjurar

O conceito de vulnerabilidade pode ser aplicado à realidade macroeconómica nacional a partir da constatação de que sem instrumentos de política económica relevantes nessa escala, furtados pela integração europeia, o país passou a estar mais dependente e exposto a crises. A crise de saúde pública, com óbvias e dramáticas declinações macroeconómicas, da quebra do Produto Interno Bruto (PIB) ao aumento do desemprego, é só o mais recente e dramático exemplo. Já nas últimas duas décadas, a combinação de estagnação e de crise, com escassos períodos de tépido crescimento, foi acompanhada de endividamento externo e de níveis de desemprego sem precedentes. 


Pensar na alternativa implica perguntar: será que desta vez é mesmo diferente? Carmen Reinhart é uma das muitas economistas convencionais que afiançaram que sim, defendendo, no início da crise de saúde pública: “Este é claramente um momento de ‘tudo o que for preciso’ para políticas orçamentais e monetárias fora da caixa e em grande escala”, ou seja, um momento em que os tesouros nacionais e os bancos centrais têm de garantir, através de estímulos monetários e orçamentais articulados, a despesa necessária para manter e gerar rendimentos (Jornal de Negócios, 28/03/2020). Reinhart foi coautora, em 2010, de um dos estudos que serviram para dar colação pretensamente científica às políticas de austeridade, afiançando que níveis de dívida pública acima de um certo limiar seriam prejudiciais ao crescimento. Este estudo foi refutado através da detecção de erros estatísticos grosseiros e de erros teóricos com implicações de política. 

De facto, o estudo ignorava as especificidades de Estados com soberania monetária, ou seja, de Estados endividados na sua moeda, controlando as condições de financiamento, incluindo as taxas de juro da dívida, através de uma articulação entre Tesouro e Banco Central. Por exemplo, o Japão, devido à estagnação prolongada, viu a sua dívida crescer todos os anos, estando hoje nos 240% do PIB, mas as suas taxas de juro para a dívida pública a dez anos, por exemplo, são cada vez mais baixas, estando hoje próximo dos 0%. 

Neste contexto de crise, o impensável tornou-se momentaneamente inevitável entre os economistas convencionais, incluindo a defesa do financiamento monetário dos défices orçamentais, antes reduzido a experiências como a do Zimbabwe; a operação através da qual o Banco Central credita o Tesouro, financiado assim diretamente a despesa pública, é aceite por muitos economistas e banqueiros centrais. A criação de moeda pelo Banco Central para financiar diretamente despesa é tão simples e decente que, como dizia o economista John Kenneth Galbraith, a mente bloqueia. Se é verdade que esta operação pode deixar um lastro de dívida, em que o Estado deve ao próprio Estado, tal formalismo contabilístico pode ser evitado sem custos. O único limite a este tipo de operações, que prescinde dos mercados, é a inflação, o que, num contexto de pressões deflacionárias, não é definitivamente um problema. 

Num contexto de incerteza radical, quando o sector privado adia despesa de forma descoordenada, eliminando os correspondentes rendimentos, só o soberano pode dispor de instrumentos para dominar as forças agora mais obscuras do tempo, dando confiança e pilotando a economia para fora da crise, através da política orçamental. A incerteza avoluma-se nos Estados que perderam meios para o fazer: Portugal foi colocado na dependência da bondade de estranhos nada generosos, ou seja, na dependência da ação de um banco central estrangeiro chamado Banco Central Europeu (BCE), proibido de financiar diretamente o Tesouro nacional, mesmo num contexto em que as constrangedoras e “estúpidas” regras orçamentais europeias tiveram de ser suspensas. O BCE só pode comprar títulos de dívida no mercado secundário, ajudando diretamente os bancos e só muito indiretamente os Estados. E daí as discussões penosas na Zona Euro sobre arremedos financeiros, destinados a contornar este problema constitucional, resultado de um desenho anti-keynesiano na sua génese. 

Dado que o Euro não favorece uma resposta cabal e duradoura a uma crise sem precedentes, a questão da saída deste arranjo económico-monetário, seja de forma coordenada, seja de forma unilateral, terá de estar de novo em cima da mesa.

O texto acima é um excerto de um artigo publicado na revista Seara Nova que pode ser integralmente lido aqui

12 comentários:

JE disse...

Muito bom texto. Claro, directo,frontal, rigoroso.
E com classe

Este é de facto um excelente blog.

Anónimo disse...

A súbita "sensibilidade" keynisiana dos economistas mainstream tem tanto a ver com Keynes como a água tem a ver com o azeite.
A questão tem mais a ver com a tentativa desesperada de manter o status-quo e o emprego, do que com um qualquer objetivo económico.
A finança, ou seja, os bancos, tomaram conta da indústria e, quando ela deixou de dar os lucros que os bancos exigiam, eles acabaram com ela.
Foi um processo iniciado nos finais dos anos 1970, quando o banqueiro mais poderoso do mundo (lá está, rockfeller!) "convenceu" carter a nomear paul volcker para o fed.
Carter perdeu a reeleição, reagan foi eleito, levou um tiro e o resto é história.
Os bancos impuseram a globalização, para fazer subir os lucros, a indústria "desapareceu" e agora não lhes resta nada senão sequestrar os estados.
A união monetária é o quê?
O sequestro de 19 estados outrora independentes a uma ditadura de banqueiros.
Quem?
Ora rockfeller, rotchild, g&s, etc.
Trump, no meio das suas trapalhadas, iniciou uma guerra comercial com a china, ou seja, contra a globalização.
Antes da pandemia, o desemprego nos EUA estava em níveis dos anos 1960.
E depois, veio a pandemia.
Podem dizer que são teorias da conspiração, que eu não me importo.

Óscar Pereira disse...

Caro Paulo Coimbra,

«A criação de moeda pelo Banco Central para financiar diretamente despesa é tão simples e decente que, como dizia o economista John Kenneth Galbraith, a mente bloqueia. Se é verdade que esta operação pode deixar um lastro de dívida, em que o Estado deve ao próprio Estado, tal formalismo contabilístico pode ser evitado sem custos. O único limite a este tipo de operações, que prescinde dos mercados, é a inflação, o que, num contexto de pressões deflacionárias, não é definitivamente um problema.»

Este excerto diz tudo, mas mesmo tudo. Acrescento apenas um pequeno comentário, devido ao inimitável Mark Blyth, que em 2017, referindo-se ao caso do Japão -- em que o governo tem vindo a comprar títulos de dívida japonesa -- dizia o seguinte:

«Think about it this way: if I owe myself a mortgage, and then I buy the mortgage back to myself, do I have any debt? (shoulder shrug)»

(ver aqui, circa do minuto 5:40: https://www.youtube.com/watch?v=lq3s-Ifx1Fo)

A parte do risco de inflação ser inexistente, devido a pressões deflacionárias cada vez maiores, lembra-me uma frase do filósofo da ciência Paul Feyerabend: «It is very difficult, and perhaps entirely impossible, to combat the effects of brainwashing by argument» (Against Method, Verso, 2010, p. 9). Afinal de contas, quanto tempo demorará até que os discípulos de Sua Santidade Económica Milton Friedman, venham urrar que a criação de moeda levar-nos-á para o desastre/bancarrota/etc.?

«Dado que o Euro não favorece uma resposta cabal e duradoura a uma crise sem precedentes, a questão da saída deste arranjo económico-monetário, seja de forma coordenada, seja de forma unilateral, terá de estar de novo em cima da mesa.»

Pese embora que com (muita!) relutância, cada vez mais me convenço de que livrar-nos do euro vai ser a alternativa menos má... No entanto, pergunto-me: quantos no Bloco de Esquerda -- onde, salvo erro, o Paulo exerce a sua militância -- já partilharão desse ponto de vista?

Manuel Galvão disse...

Houve muitos casos de escravos que recusaram a alforria. Preferiam, se os deixassem, continuar a ter comida e teto sob o jugo de um grande senhor, do que não os ter e serem livres.

Foi o que aconteceu com os países pobres da periferia europeia. Pediram para ser escravos. Condição que lhes dava a possibilidade de proporcionar à maioria dos cidadãos smartphones, carros com vidros elétricos, sensor de estacionamento, ar condicionado, etc., etc..

A Oeste, nada de novo...

Dolores Cabral disse...

Sonho acordar um dia (se possível em breve, até porque não tenho muito tempo) com o meu escudo de volta e com políticos decentes e competentes no governo e também na oposição.
Reconheço que este desejo quanto aos políticos (os que tomam as decisões e os que as escrutinam) poderá não ser condição suficiente mas necessária é, certamente, para se sair desta actual crise aguda e da latente que nos persegue há tanto tempo!

Ana Maria disse...

Discordo totalmente, considero que a UE e particularmente o Euro escudou a economia de Portugal de muitas adversidades às quais estaríamos mais expostos caso estivéssemos isolados. Vede o caso de países fora da UE ou do Euro que sofreram muito mais perante crises económicas, como Albânia ou mesmo a Islândia.

Anónimo disse...

As lérias do neoliberalismo continuam a vegetar em algumas cabeças, mesmo depois de 3 crises brutais (1991, 2008, 2020) terem atirado a ideologia neoliberal para o caixote do lixo.
Não foi o neoliberalismo que foi para o lixo, mas sim a ideologia, afogada em contradições e na porcaria que deixou para trás.
O neoliberalismo continua no poder e, dada a dificuldade em continuar a impor a ideologia (cada vez mais posta em causa e pela gente nova que anda na universidade), tenta agora impor-se pela via autoritária.
De facto e no sistema fiduciário, o dinheiro vale o que a economia do país que o emite valer.
Economia forte, moeda forte.
Economia fraca, moeda fraca.
Por isso, o Japão tem uma dívida acima de 200% do PIB e tem spreads negativos e a Grécia continua ligada ao ventilador, 10 anos depois da GFC.
Para um país que emita a própria moeda, não existe restrições.
O banco central desse país pode introduzir uns zeros num terminal de computador e o dinheiro nem precisa ser emitido.
A inflação subirá se o dinheiro for mal gasto.
Se o dinheiro for usado para dotar o país com infraestruturas capazes, que permitam aumentos de produtividade, então esse aumento compensará o efeito negativo da multiplicação dos zeros.
O neoliberalismo não consegue explicar sequer porque razão a inflação que devia ser galopante (no Japão, por exemplo, mas não só) afinal está a caminhar para a deflação.
E também não consegue explicar a solução IMBECIL que encontrou para a deflação: o dinheiro lançado do helicóptero.
Como é que uma IMBECILIDADE tamanha pode ser considerada solução para o problema?

JE disse...

1 de Setembro de 2020 às 22:31:

"Podem dizer que são teorias da conspiração, que eu não me importo".


Não, são são de todo teorias da conspiração.É apenas o joão pimentel ferreira a fazer o papel que costuma fazer.

Para estas coisas já demos

Geringonço disse...

Paulo Coimbra, quando é que a saída da zona Euro esteve em cima da mesa?
O Paulo alguma vez viu essa possibilidade ser debatida seriamente na comunicação -manipulação- social?
Não me parece, o que tem vindo a acontecer ao longo dos anos é o oposto, é o entrincheiramento do europeísmo e a negação da realidade.

Para que nós possamos sair deste pântano em que nos encontramos há duas décadas nós temos que pôr em causa muita coisa incluindo partidos associados à integração europeísta, carreiras de políticos, carreiras de comentadores de Tv e jornais e os grandes interesses económicos.

A população portuguesa tem que ser elucidada sobre as mentiras que os europeístas/ neoliberais têm andado a contar ao longo de décadas.

JE disse...

5 comentários,5, de joão pimentel ferreira

As apostas fazem-se assim.

Manuel galvão junta os trapinhos e disserta sobre a carta de alforria.Não a cedida pelo ministro holandês.

Dolores amélia,obrigada, imita aquele idiota que aparece nas caixas de comentários do Público,um tal "Vergalho", velho muito velho a cair da tripeça,com 97 anos de idade, que depois de dizer exactamente o que a dolores diz "porque não tenho muito tempo",parte para uma apologia dos passos de Passos. Dolores opta pela crise aguda actual e da latente, esquecendo as crises do diabo montado pelo mesmo Passos

Ana maria amélia, obrigada, é o contraponto da dolores mas agora sem o rimel,mostrando a sua verdadeira face (a do pimentel ferreira a repetir até à exaustão o que costuma repetir).

O caixote do lixo que não é caixote do lixo porque não alberga universitários tem aquele característico sabor de vacuidades diotas, coladas a clichês imbecis.Talvez a tradução do holandês contribua para esta mixórdia.

Geringonço fia mais fino. Parece que questiona quando e ainda mais a comunicação mais as trincheiras e a negação. Conversa para boi dormir como alibi para o que vier


Deixemos estas manobras que denotam algum desespero de joão pimentel ferreira.Está numa de ataque insonso e insano.

Tudo isto para quê?

Para que se ofusque este excelente texto aqui trazido por Paulo Coimbra, dum rigor e duma precisão que deixa esta malta colada ao chão, a debitar estas patetices trazidas em segunda mão

Vale mesmo a pena o texto de PC. E obrigado pela contribuição séria de Óscar Pereira

Ana Maria disse...

Eu como federalista europeísta que sou, devo dizer que no presente caso, os estados membros através dos seus governadores dos bancos centrais, têm de contrariar a visão ortodoxa da Alemanha e começarem a instruir as impressoras do BCE a imprimir dinheiro a rodos, porque não como fez Trump (dinheiro de helicóptero), colocando 1000 euros no bolso de cada europeu (ou ajustado às economias de cada país, ou necessidade de cada cidadão europeu). Só assim resolvemos o problema da apreciação da divisa e da deflação. Nesta altura com desemprego galopante e uma crise eminente, o poder de compra de quem tem salário garantido deveria ser o menor dos problemas. Por paradoxal que seja para os canhotos vermelhos do burgo luso, o Euro foi o melhor amigo dos funcionários públicos e dos pensionistas.

JE disse...

A ana maria é a pobre da amelia, aquela que agradece as prebendas do ministro holandês, com um "obrigada", a fazer lembrar o comportamento histriónico do declamador anatómico travestido

Uma semana depois volta. Está em jogo o seu jogo que lhe vale dinheiro. Repete todavia de forma cansativa e boçal os seus tiques:

-Volta bem mais tarde, para ver se assim passa.Uma semana bastará, inquirir-se-á inquieto, com o deve e o haver

-Como "federalista europeísta" repete e repete-se.Faltam-lhe outros títulos, como o liberal-social, o germanófilo impenitente, o holandês travestido e o simpatizante da obra social de Hitler. Ah,e o da segunda derivada de Passos

-Investe contra os canhotos ( ai que horror, dirá a amélia ana maria ) e ainda por cima vermelhos ( e aí pedirá os sais, entre requebros de desmaio)

-O euro como melhor amigo dos funcionários públicos, retomando a ronha e a narrativa de JPF, para ver se consegue dois em um. Por um lado, o seu ódio patibular aos FP; por outro a cabotinice de tentar fazer campanha eleitoral entre estes.Mais os pensionistas

Só mesmo o JPF para se assumir assim deste jeitinho tão tão. Faz lembrar a imbecilidade da sua segunda derivada com que tentou vender Passos Coelho