sexta-feira, 19 de junho de 2020

Um Conselho pouco amigo


O Conselho Europeu reúne hoje no que deverá ser um primeiro confronto sem conclusões. O grupo dos quatro colocará a sua proposta em cima da mesa e o debate centrar-se-á entre a sua proposta (que é nada) e a proposta insuficiente da Comissão. Qual é o ponto da situação?

1. O que temos neste momento com a proposta da Comissão é 100% dívida. Vou repetir: 100% dívida. Os recursos próprios estão fora da proposta. Sem recursos próprios, a dívida agora emitida será paga por orçamentos futuros, ou seja, não há financiamento a fundo perdido nenhum.

2. O que a Comissão vai pôr em cima da mesa é emissão de dívida agora e o resto logo se vê. Para que essa dívida no futuro venha a ser paga pelos Estados na mesma proporção em que agora é distribuída, bastará aos frugais chumbar os recursos próprios e o aumento de contribuições.

3. Sem recursos próprios e sem contribuições adicionais, a amortização da dívida será feita por orçamentos futuros, o que significa que os países da coesão recebem mais agora e pagarão mais no futuro. A dívida não entra nos livros dos Estados-membros agora, mas fica lá.

4. Sobre o aumento de contribuições, nem vale a pena falar. Não vai acontecer. Pensar que os quatro Estados forretas vão aceitar aumentar as suas contribuições para amortizar esta dívida, no que constituiria um aumento das transferências entre Estados, é do domínio da ficção.

5. Quanto aos recursos próprios, nenhuma proposta conhecida tem aprovação garantida. O Imposto Digital é a proposta mais fácil porque incide sobretudo sobre empresas norte-americanas, mas nem esse é garantido, sobretudo se a proposta for abrangente e apanhar empresas europeias.

6. Quanto ao imposto sobre o plástico que, tal como esta proposta, é uma proposta típica de austeridade verde, recairá sobre os consumidores e servirá muito possivelmente para refrear propostas de proibição do plástico descartável que obrigassem as empresas a mudar a sério.

7. As propostas mais interessantes (Imposto sobre Transações Financeiras e Imposto Transfronteiriço sobre o Carbono) são muito mais justas mas também mais improváveis. A primeira, de resto, tem sido discretamente metida na gaveta pela Comissão.

8. Acresce que o Fundo de Recuperação está a servir como manobra de distração para um facto gravíssimo que é a proposta de um Quadro Financeiro com cortes gigantescos na coesão e agricultura. O Governo e o PE disseram que jamais aceitariam essa proposta. Vão aceitar agora?

9. Finalmente, a proposta da Comissão tem muito cuidado em não pronunciar a palavra maldita "condicionalidade", mas está lá tudo o que interessa. Os entusiastas dizem que as recomendações da Comissão estão melhores, mas nada garante que fiquem assim...

É por tudo isto que me parece que a energia que tem levado a comparações como o "novo Plano Marshall" ou o "momento Hamiltoniano" da União Europeia seria melhor direcionada para olhar com mais atenção para as letras pequenas (e números pequenos) da proposta realmente existente.

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