segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A falsa liberdade de todos e o PS

É importante que se esvazie a ideia de que a liberdade começa onde o Estado acaba.

Na verdade, a defesa da liberdade num mundo desigual, colocando o Estado como alvo, é o mesmo que defender o mundo desigual. E que nada mude no funcionamento social que faz os mais desfavorecidos, a população em geral, pagar - em liberdade - o mundo dos mais ricos, dos mais poderosos.

A defesa da liberdade económica é, pois, um instrumento de manutenção do poder económico que já se detém.

Por isso, quando alguém no Partido Socialista (PS) aparece a frisar esse aspecto perverso da filosofia da liberdade, é sempre bem-vindo.

Já no Parlamento, o ministro Pedro Nuno Santos, teve esse desassombro ideólogico de questionar um mundo ideológico construído desde os anos 70, passo a passo, quando discutiu com o deputado da Iniciativa Liberal. Parece que os apoiantes desse partido não entendem o que está em causa e lastimam que o ministro não respondeu as perguntas feitas.

Haja, pois, alguém no PS que ponha em causa mais de 40 anos de doutrina PS.

Foi assim com a aplicação sem titubear por Mário Soares das receitas do FMI (em 1979 e em 1983-85), com a iniciativa de Vítor Constâncio da revisão constitucional de 1989 (que abriu as portas à desregulação), com adesão ao Acto Único, ao Tratado de Maastricht em 1992, com a adesão à ideia idiota de Portugal se juntar ao primeiro pelotão da moeda única por António Guterres; com a alegria de Sousa Franco e Teixeira dos Santos em 1999 na fixação das taxas de conversão do escudo em euros (que colocou o escudo como se fosse uma moeda fortíssima) e com o Pacto de Estabilidade e Crescimento que se lhe seguiu; com a ratificação parlamentar do Tratado Orçamental por António José Seguro; com a adesão ao Tratado de Lisboa por José Sócrates, ao Semestre Europeu, ao grosso da política laboral da troica que ainda está em vigor por António Costa, Mário Centeno e Siza Vieira, ... e sabe lá Deus que mais virá ainda.

Na verdade, para se afastar ideologicamente do socialismo real, alicerçado no poderoso papel do Estado, o PS agarrou-se à ideia Socialismo em liberdade (política), a qual redundou no afastamento rápido (em 1979) do socialismo, mas na manutenção da liberdade (económica) proveitosa para alguns.

Senão veja-se.


Defendeu-se a liberdade de movimentos dos capitais para permitir o desmantelamento do seu controlo público (de todos) e, assim, melhor beneficiar quem é detentor dos capitais que se movimentam (poucos). E tudo em nome de que, deixados à solta, gerariam mais riqueza... para todos.

Elogiou-se a liberdade das trocas comerciais internacionais - chamada globalização - feita para que produtos antes feitos nos países mais desenvolvidos passassem a ser produzidos nos países mais pobres (de mão-de-obra e matérias-primas mais baratas) e depois pudessem ser vendidos - livremente - nos países mais ricos, sem alcavalas, sem obstáculos administrativos à entrada (leia-se: taxas e impostos), gerando lucros imensos. Tudo em proveito sobretudo de alguns, mas em nome da liberdade de consumo de todos.

Defendeu-se a liberdade nas relações laborais - desprotecção no emprego e desprotecção no desemprego - para que os salários nos países mais ricos deixassem de subir e, com isso, se reduzisse o seu peso na riqueza criada. Tudo em nome de mais emprego para todos.

Defendeu-se a liberdade dos salários apenas crescerem ao ritmo da produtividade para que nunca fosse afectado o peso dos lucros no valor criado e, assim, se mantivessem as desigualdade na distribuição do rendimento.

Defendeu-se a liberdade da moeda europeia ser atada à moeda mais forte da Europa, sem constrangimentos orçamentais, para que a liberdade dos países mais ricos não fosse afectada pela necessidade de compensar os mais pobres pelos constantes défices comerciais, criados por causa dessa moeda forte. E podendo sempre culpá-los pela sua ineficiência, obrigando-os a aplicar mais reformas estruturais que mantêm o status quo.

Manteve-se a liberdade dos paraísos fiscais - alguns em países do centro europeu - para que a maior parte do rendimento conseguido com essas liberdades não fosse tributada e, desse modo, não contribuísse para o bem-estar de todos, através da actuação dos Estados, financiada pelos impostos.

Alinha-se em discurso na liberdade dos cidadãos serem menos tributados, porque sabem que, caso a tributação fosse eficaz, seriam os mais ricos aqueles que mais teriam a perder.

Que o PS faça, pois, esse caminho difícil e desassombrado. Porque dele poderá sair algo de bom para Portugal.

8 comentários:

Anónimo disse...

É óbvio. Os partidos na Assembleia da República e os PMs/Governos ali eleitos, representam os seus interesses de esses grupos e não os interessses dos Paĩs, dos cidadãos.

Jaime Santos disse...

Espero que não faça nada esse caminho, porque senão nunca mais leva o meu voto. O cerne da sua argumentação assenta numa palavra apenas, 'socialismo real'. Ora, desculpe lembrar-lhe, mas essa filosofia, quando aplicada no Bloco de Leste, não produziu nada senão pobreza, destruição ambiental e puro despotismo.

E para quem vier dizer que a variante ocidental, o chamado socialismo democrático, era diferente e é verdade, de facto não era igual ao socialismo praticado para além da cortina de ferro, cabe também lembrar que Thatcher e Reagan não foram uns mauzões que chegaram e destruíram o que existia. Foi a crise da estagaflação dos anos 70 que permitiu a sua ascensão ao poder.

E, quando Miterrand, ignorando a experiência portuguesa de que fala, que obrigou Portugal a recorrer ao FMI por causa dos desvarios da Economia de Abril (e depois dos desvarios da AD, pontificava então no Ministério das Finanças um tal de Cavaco Silva) se lembrou de experimentar essa receita, o resultado foi a necessidade de, pois claro, chamar o FMI e chamar Delors...

Andar a falar de Justiça e depois defender um sistema económico falido e que não resultou em lado nenhum (ainda estou para ver qual foi o País que aplicou um programa desenvolvimentista e que não soçobrou à primeira grande crise financeira ou de custo de matérias primas ou do que seja, veja-se os exemplos egrégios da Venezuela ou de Angola) ou revela ingenuidade ou algo pior.

O que não funciona não é moral, ponto final...

Quanto ao Ministro Pedro Nuno Santos, parece que leva demasiado longe aquilo que ele diz. Aconselho-lhe a entrevista que deu a José Gomes Ferreira e a explicação sobre as suas palavras de 2011, de que Portugal se devia marimbar para a dívida.

Só não gostei quando o entrevistador questionou a bondade de investimentos na produção nacional (ferrovia) dando até exemplos de outros casos em que tais ajudas deram para o torto. Pedro Nuno Santos refugiou-se no patriotismo, o que lhe fica mal, porque de certeza que a ele não se aplica o qualificativo do Dr. Johnson. Ele é mais inteligente do que isso.

Por último, para aqueles que acham que os pobres e os remediados são todos socialistas só que não o sabem, aqui ficam dois artigos recentes do Guardian a desfazer tais fantasias:

https://www.theguardian.com/business/2020/feb/15/older-poor-not-easily-convinced-to-be-socialist-sanders-labour

https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/feb/16/labour-should-stop-demonising-the-rich-most-britons-like-them

Deixem-se de defender um cadáver e trabalhem mas é numa reforma fiscal que permita maior investimento público e a redução da dívida em termos absolutos antes que sejamos atingidos pela próxima crise. Como não vejo ninguém a defender que o Estado deixe de se financiar no exterior, é bom que o País mantenha a confiança dos terríveis mercados...

A mim, a quem não me pagasse o que me devia, também não concederia mais crédito... Jerónimo de Sousa, pelo menos, percebe isso muito bem...

Geringonço disse...

Porque razão os "socialistas" têm estado no centro da iniciativa da liberalização económica?

Nós sabemos que a União Europeia, o Euro, o Tratado de Maastricht, Tratado de Lisboa são construções neoliberais.

Por muito que despreze o Cavaco, o Passos, o Portas e a restante canalha dos respectivos partidos quando eu olho para o europeísmo realmente existente identifico os "socialistas" como principais obreiros deste...

Seja Mário amigão do Ricardo Salgado Soares, "o melhor de todos nós" - diz o Marcelo - Guterres, Mitterrand ou Delors... tudo "socialistas"!

Porque razão os "socialistas" gostam tanto de fazer favores aos Capitalistas?

Anónimo disse...

Por mais que tentem o socialismo triunfou.

O sistema que mais pessoas tirou da pobreza é o socialismo.

Já chega de mentiras.

Os EUA são neste momento um país de 3º mundo. Não produzem nada, só pobres. A inovação é algo que lá não existe.

A Alemanha com o seu superavit cada vez mais pobre. Sem capacidade tecnológico para fazer nada como crescer e redistribuir.

Mais uma vez se prova o falhanço do capitalismo que apenas triunfou como motor de pobreza e miséria.

Anónimo disse...

Mentiras, mentiras e mais mentiras, o legado de toda essa gente é a mentira.

Manolo Heredia disse...

O "Socialismo em Liberdade" foi uma política promovida pelos banqueiros americanos para ser instalada na Europa "livre", financiada pelo Plano Marshall, por forma a combater o socialismo soviético. Teve o objetivo de arregimentar as classes trabalhadoras à ideia que era possível implementar uma forma de socialismo diferente da soviética, implementada no seio da sociedade capitalista. A isso, Mário Soares, Willy Brandt, Mitterand, chamaram "Socialismo em Liberdade", por oposição à ideia de Socialismo-prisão adotado pela União Soviética.
Uma vez acabada a União Soviética deixou de haver razão para financiar essa política.
Sim, porque os grandes capitalistas mundiais acham que os Estados Sociais são resquícios das políticas socialistas em liberdade que eles financiaram e que, de agora em diante, não estão mais dispostos a financiar...

Jose disse...

«...é o mesmo que defender o mundo desigual.»

A pergunta é: quem quer viver num mundo igual? Seguramente um apparatchik instalado no Estado.

João Ramos de Almeida disse...

Caro Jaime,

Lá está você agarrado ao passado. Lá porque uma laranja que comprou estava tocada, não quer dizer que deixe de comer laranjas. Já tínhamos discutido isso. Deve haver melhores formas de construir sociedades melhores. Aprendemos todos.

Até o Ocidente aprendeu a tornar-se social-democrata e que de nada lhe valia ser bruto. Ah porque já se esqueceu que o Ocidente o foi bastante. Nada é natural.

E depois acha que Reagan e Thatcher foram trazidos pela crise dos anos 70, mas acha que o FMI chegou a Portugal por causa da revolução, como se fosse uma ilha plantada no Oceano. Tem de ser menos emocional no que toca ao 25 de Abril e ao PREC. Menos aos desvarios cometidos durante décadas por esta teoria louca do equilíbrio constante e da liberdade contra o Estado... Há-de concordar que não faz sentido como solução geral para uma sociedade.