terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Mal-estar e extrema direita, numa Europa em negação

Desengane-se quem pensa que a subida da extrema-direita é, em termos eleitorais, um fenómeno essencialmente circunscrito às eleições para o Parlamento Europeu, cuja importância os cidadãos tendem a desvalorizar, aproveitando para expressar, nesse contexto, a sua revolta e descontentamento. Ou que essa subida se verifica apenas em alguns países, e portanto sem significado relevante, em termos globais, à escala da UE.

De facto, e mesmo não assumindo valores idênticos, o aumento da votação em partidos de extrema-direita nas legislativas realizadas nos 28 Estados membros não é menos expressivo que o registado nas europeias (que atingiu, no sufrágio de 2019, os 19%, ou seja quase 1 em cada 5 cidadãos europeus). Desde 2016, a percentagem de votos válidos na extrema-direita em eleições nacionais aumenta a um ritmo que contrasta com o verificado até então, passando-se de 8% para 14% dos votos válidos em apenas 5 anos (de 2014 a 2019).


É curioso constatar, aliás, que os níveis de votação na extrema-direita são idênticos em eleições legislativas e nas eleições para o Parlamento Europeu até 2009, ocorrendo um primeiro impulso de subida nas europeias de 2014 (quando se atingem os 11%) e um aumento expressivo do conjunto de partidos de extrema-direita em legislativas em 2017, ano em que começam a registar-se valores acima de 10%. Ou seja, como se a insatisfação e o mal-estar começassem a repercutir-se à escala dos Estados membros dois ou três anos mais tarde, em resultado do impacto, a essa escala, das orientações e políticas da UE.

Não sendo simples, a discussão sobre as causas do crescimento recente da extrema-direita é indissociável da estagnação económica e da degradação generalizada das condições de vida no continente europeu, decorrente por sua vez da persistência de políticas de austeridade, mesmo que hoje mais contidas ou aplicadas sob novas formas. De facto, se o emprego recuperou à escala europeia a partir de 2013, o mesmo não se pode dizer dos rendimentos do trabalho, que continuam em queda, num quadro de manifesta tendência para o agravamento das desigualdades e para o aumento da pobreza e do risco de pobreza.


De pouco adianta, portanto, apontar o dedo à extrema-direita e aos seus movimentos, se nada de substantivo for feito para esvaziar o mal-estar que a alimenta. O que implica, evidentemente, uma efetiva mudança de políticas, desde logo à escala europeia. Antes que seja tarde demais.

Adenda: Nem de propósito, realiza-se amanhã, na FEUC, a partir das 16h00, um debate sobre «A ascensão da extrema-direita e a economia política da União Europeia», contando com intervenções de Boaventura de Sousa Santos e João Rodrigues. Se puderem assistir, não percam.

1 comentário:

Jose disse...

A esquerda, que tem a pretensão de ter construído um sólido edifício ideológico, e talvez por isso, assume que só não adere quem tenha dificuldades materiais, e que só em tal caso, é suposto haver crescimento nas adesões à direita.

Presunção e água benta...