quarta-feira, 17 de julho de 2019

Primeiro temos de criar riqueza para depois a distribuirmos? Olhe que não, olhe que não


“Primeiro temos de criar riqueza para depois a distribuirmos”. Este é o mantra que os protagonistas do discurso económico da direita gostam de repetir até à exaustão. Como certeiramente assinalou João Ramos de Almeida num post anterior (aqui), esta mensagem constitui um ato de batota intelectual, que pretende protelar a ação redistributiva para um futuro longínquo e nunca alcançável. Como o crescimento é sempre encarado como mais importante, nunca chegará o momento em que a distribuição é oportuna. A atitude desvenda, assim, o óbvio: para a direita, a redistribuição não é um objetivo e esta mensagem é apenas um recurso instrumental para facilitar a penetração eleitoral do seu discurso.

A secundarização do mandato redistributivo do Estado é muito evidente no já divulgado plano económico do PSD. De forma risível, o autor do programa defende que a redistribuição é um pilar central do programa, porque este prevê a diminuição da taxa de IVA no gás e na eletricidade de 23% para 6%. Isto é, o mesmo partido que, enquanto governo, congelou o salário mínimo nacional, diminui o montante e a extensão do subsídio de desemprego e o valor e a elegibilidade do Rendimento Social de Inserção, que, enquanto oposição à atual maioria parlamentar, se opôs à dimensão do aumento do salário mínimo e à diminuição do valor das propinas e dos passes sociais e que, no seu programa, consagra o objetivo de diminuir o IRC, quando se tem assistido a um aumento da proporção dos rendimentos do capital, é o mesmo partido que considera que o regresso do valor do IVA do gás e eletricidade para os seus valores pré-crise financeira é uma grande evidência do seu pendor redistributivo. Estamos conversados.

Mas o aforismo “Primeiro temos de criar riqueza para depois a distribuirmos” subentende um raciocínio mais profundo do que a mera batota intelectual. Ele implica que quem o defende considera que não se pode procurar simultaneamente o crescimento económico e a diminuição da desigualdade. Isto é, acredita que a maior equidade é um obstáculo ao crescimento económico. De modo a fazer uma apreciação crítica dessa tese que ajude a trazer mais argumentos a este debate, deixo abaixo uma secção de um artigo que irei publicar no próximo número da revista Manifesto (em outubro), onde pretendo desconstruir a ideia de que a igualdade afeta negativamente o crescimento económico.

A relação entre a desigualdade e o crescimento económico é um tópico sempre envolto em grande debate. A tese de que a igualdade de oportunidades é condição suficiente para a justiça social não sugere apenas que o mercado assegura que cada interveniente recebe a fatia justo dos recursos da produção. Regra geral, sugere também que o mercado assegura que a produção alcança o seu maior valor possível, com os recursos e com a dotação tecnológica de cada época. Isto é, a fatia justa em termos relativos tem também a maior dimensão possível.

Um dos pilares desta convicção é derivado a partir de um dos mais famosos teoremas da teoria neoclássica, o designado primeiro teorema da economia do bem-estar, que postula que uma economia de mercado consegue gerar espontaneamente a utilização total dos seus recursos, alcançando uma fronteira de eficiência máxima em que já não é possível aumentar o bem-estar de um agente social sem diminuir o bem-estar de outro (critério de Pareto). O teorema não assegura que a afetação de recursos alcançada seja justa. Contudo, implica que qualquer decisão de reafetação de recursos por meio de impostos progressivos terá um efeito distorcedor, implicando um sacrifício da eficiência para alcançar uma maior equidade. Isto é, reconhece-se que que a distribuição assegurada pelo mercado pode não ser justa, mas qualquer tentativa de a corrigir de modo a ajustá-la às preferências sociais resulta numa diminuição do bem-estar total da comunidade. Este resultado parece estar presente, ainda que de modo nem sempre esclarecido, no argumentário liberal contra os impostos e a redistribuição.

No entanto, importa notar que o primeiro teorema fundamental da economia do bem-estar só é derivável assumindo a existência de pressupostos muito fortes e irrealistas: a concorrência perfeita dos mercados, a informação perfeita dos agentes, a ausência de externalidades e a ausência de custos de transação. Nenhum destes requisitos se verifica na realidade: a maioria dos setores numa economia moderna opera num regime em que uma das partes tem poder de mercado, como em estruturas monopolistas ou oligopolistas, e onde impera a informação assimétrica entre agentes. Por outro lado, existem externalidades óbvias em muitas atividades, onde se podem contar as externalidades negativas da poluição ou as externalidades positivas da educação, e quase todos os mercados têm custos de transação. Não se verificando estas condições não há, com efeito, motivo para admitir que eficiência e a equidade são objetivos que se excluem mutuamente.

Outro argumento, mais linear, associado aos possíveis efeitos perversos da diminuição da desigualdade no crescimento, foi celebrizado durante o início da década de 80 do século XX, pelos governos de Margaret Tactcher e Ronald Reagan, e ficou genericamente batizado como trickle down economics. À luz desta teoria, o combate à desigualdade social não deveria ser um objetivo primordial de política económica, já que a sua existência poderia beneficiar todos os membros da sociedade, mesmo os que se colocavam nos estratos mais pobres. Maior desigualdade significaria um maior incentivo a ascender na pirâmide social e um maior prémio de risco para empresários e quadros superiores da sociedade, que se traduziria numa maior propensão à tomada de decisões que favoreciam a livre iniciativa e o crescimento económico. Maior crescimento económico permitiria um maior bem-estar absoluto das camadas sociais mais baixas, ainda que o seu posicionamento relativo na escala social se tivesse deteriorado.

Esta é uma tese que a experiência nunca se encarregou de provar. Como se verá, existem argumentos teóricos e empíricos que falsificam esta narrativa.

A macroeconomia traz-nos o primeiro argumento. Diferentes classes de rendimento possuem diferentes propensões a consumir. As classes mais altas, com rendimentos provindos de bens de capital, como lucros, rendas e juros, ou de salários mais elevados, tendem a apresentar propensões a consumir mais baixas, ou seja, tendem a consumir uma percentagem mais baixa do seu rendimento total – uma vez que a maioria das suas necessidades já se encontram satisfeitas – enquanto as classes mais baixas tendem a apresentar propensões a consumir mais elevadas, pois necessitam de uma maior percentagem do seu rendimento para atender ao seu cabaz médio de consumo.

A existência desta diferença significa que transferências de rendimento das classes mais altas para as classes mais baixas favorecem o aumento do consumo privado e o crescimento económico, ao passo que o contrário sucede se as transferências tiverem o sentido oposto. Com efeito, uma sociedade que tem grande parte do seu rendimento concentrado no topo está sujeita a uma tendência secular para a diminuição da procura privada para consumo. A menos que esse efeito seja compensado por um choque positivo das exportações ou do investimento privado, terá de ser o Estado a injetar procura na economia através de consumo e/ou investimento público, de modo a que a procura global não diminua. Este canal confere às economias mais desiguais um viés para a estagnação económica e uma pressão acrescida sobre as finanças públicas.

A desigualdade tem igualmente efeitos perversos sobre a estabilidade macroeconómica, ao desencadear ciclos insustentáveis na relação entre os agentes económicos e os mercados financeiros. Esta relação foi exaustivamente estudada no contexto norte-americano, onde a estagnação dos salários reais a partir da década de 80 coincidiu com o aumento expressivo do endividamento das famílias. Alguns autores argumentam que existe uma relação de causalidade entre a desigualdade de rendimento e o recurso ao crédito: com os salários reais estagnados, as classes mais baixas são incentivadas a recorrer ao crédito de modo a conseguirem mimetizar os padrões de consumo das classes superiores. Durante períodos alargados de tempo (nos EUA foram várias décadas), os mercados financeiros podem mostrar-se cúmplices com o aumento da dívida das famílias mais pobres, aproveitando a entrada de estratos da população que não se relacionam tradicionalmente com os mercados financeiros. No entanto, basta que um choque abale a confiança dos mercados para que os empréstimos não sejam refinanciados e se assista ao desencadear de uma crise financeira. A desigualdade pode, assim, favorecer a instabilidade dos mercados financeiros, deixando as famílias e a economia mais expostas aos seus ciclos de exuberância e depressão.

A economia comportamental tem também produzido nova evidência sobre os efeitos adversos da desigualdade para o crescimento, com investigações recentes a sugerirem que a desigualdade salarial no seio das empresas tem um efeito negativo na produtividade dos seus trabalhadores. Finalmente, uma economia mais desigual é uma economia onde existe menos coesão social e, em consequência, menos vínculos de solidariedade e maior tensão entre os seus membros. Essa incomunicabilidade entre classes favorece a desconfiança mútua, potencia fenómenos de criminalidade e priva uma parte dos cidadãos do usufruto de uma cidadania plena, o que, além de diminuir a justiça social, pode afetar o crescimento económico.

Todas estas dimensões explicativas têm encontrado verificação num crescente corpo de estudos empíricos. Destaque para o insuspeito e influente estudo do departamento de investigação do FMI, Redistribution, Inequality and Growth, que conclui que a “(…) desigualdade continua a ser um robusto e poderoso determinante do crescimento de médio-prazo e da duração dos ciclos de crescimento, mesmo controlando o efeito das transferências redistributivas. Assim, (…) seria um erro focarmo-nos no crescimento e deixar a desigualdade entregue a si própria, não apenas porque a desigualdade pode ser eticamente indesejável, mas também porque o crescimento económico resultante pode ser baixo e insustentável”.

19 comentários:

Licínia Emerenciana disse...

Num mundo perfeito, primeiro distribuimos a riqueza, depois criamo-la.

Paulo Rodrigues disse...

Temos que compreender que o artista de que estamos a falar, acumula a vice presidência do partido dos 2 Pês (não estou a insultar ninguém, pois aquilo chama-se CDS-PP) com um cargo no conselho de administração de uma das maiores oligarquias deste País.
Assim sendo, é legítimo estabelecer uma ligação entre o que diz e escreve e os objetivos comerciais da empresa a que está ligado.

Anónimo disse...

É um facto incontornável que não se pode (re)distribuir o que não existe. E, ao criar riqueza, ela é automaticamente distribuída no próprio processo de criação (se não não faz sentido o prefixo re-).
A questão é saber a partir de que nível de riqueza criada e distribuída faz sentido redistribuir (e se faz sentido, dado que já houve um processo de distribuição). Ou seja: por um lado, se estivermos eternamente à espera de que "toda a riqueza seja criada e distribuída" para só depois redistribuir, então nunca haverá redistribuição; por outro, se ainda não tiver sido criada riqueza, então não há nada para redistribuir.

Anónimo disse...

Não sei se deva rir ou chorar quando leio "FMI"...

S.T. disse...

Como já nos habituou, Diogo Martins apresenta um post sóbrio, didático e bem formulado.
Bom trabalho!

S.T.

Anónimo disse...

Caro Digo Martins,

o gráfico do post anterior parece indicar uma distribuição praticamente equitativa do PIB entre lucros e salários, uma tendência mais ou menos estável desde os anos 90 (entre 60%-50% para os salários).
Não percebi no entanto se esta distribuição praticamente equitativa (com ligeira vantagem para os salários) tem ou não em consideração o efeito redistributivo dos impostos cobrados tanto aos lucros como aos salários, bem a forma como a cobrança desses impostos se distribui por lucros e salários. É possível obter essa informação?

Anónimo disse...

Caro Diogo Martins,

Segundo a Comissão Europeia, em 2020 prevê-se que o peso dos impostos e das contribuições no produto interno bruto (PIB) - carga fiscal (https://www.cfp.pt/pt/glossario/carga-fiscal-) - atinja 35,5% (https://www.dn.pt/edicao-do-dia/13-mai-2019/interior/carga-fiscal-portuguesa-bate-novo-maximo-historico-no-ano-que-vem-10889731.html).
Podemos então concluir que os 35,5% do PIB já recolhido pelo Estado constituem uma medida da redistribuição do PIB português, sendo os restantes 64,5% do PIB são distribuídos entre salários e lucros?

Jose disse...

Tanta conversa para manifestar a mais óbvia das indigências, redistribuir é tudo que a esquerda sabe fazer.
Distribuir para quem?
Migalhas a uns tantos, bons e garantidos empregos para os seus apaniguados, inventando serviços públicos inúteis e proclamando criara emprego e aumentar o consumo.
O que impede o Estado geringonço de esquerda de criar empresas que acrescentem valor e gerí-las?
O que impede o Estado de esquerda de concorrer com o privado no mercado?
A sua total incompetência de nada mais saber fazer que tributar e distribuir.

Geringonço disse...

O FMI, o Banco Mundial, a Comissão Europeia, o BCE são organizações responsáveis pela destruição da economia e das vidas de milhões que dela dependem. Estas organizações, ao que parece, sabem bem o que estão a fazer.

Se o FMI sabe que a austeridade e a desigualdade são más para economia porque é que as defende?

O FMI e outras organizações protegidas do escrutínio democrático têm sangue nas mãos!

Os tribunais existem não apenas para condenar criminosos que não fazem parte da “elite”, certo?

Jose disse...

Nunca encontro nas contas de lucros/ salários aquela crescente parcela de reintegração de equipamentos crescentemente sofisticados, crescentemente obsoletos, crescentemente dispendiosos.

S.T. disse...

Longe de ser uma tendência exclusivamente nacional, a perda de valor da parte do trabalho é um fenómeno que embora possa ter variações locais é generalizado a todas as economias ocidentais.

Este artigo da Business Insider dá bem conta disso, e embora falhe a meu ver no apontar das razões do fenómeno, pelo menos não esconde as consequências:

"Why does this matter? If wages and salaries-earned income-is a steadily decreasing share of the entire economy, this means household earned income is eroding even when the economy is expanding. "

" How can households pay rising taxes, borrow more money and spend more to support a consumer economy on an income that's shrinking even when the economy is expanding?

Answer: they can't. "Something's gotta give": they can't pay higher taxes, borrow more money (and incur more monthly payments) and spend more on goods and services when their incomes are stagnating. It simply isn't possible. "

(in https://www.businessinsider.com/why-labors-gdp-share-is-on-decline-2015-9 )

E sustenta implicitamente as explicações avançadas por Diogo Martins neste post.

O gráfico refere-se aos USA, mas como podem apreciar neste gráfico a tendência é generalizada.

https://www.robert-schuman.eu/images/questions/qe-289-6-uk.jpg

Em minha modesta opinião, quem melhor explica o que se tem passado é Mark Blyth, aqui num video mais curto do que o que publiquei no antecedente e relacionado post de JRM:

https://www.youtube.com/watch?v=KU20t964wCc

(How the Rich Screwed the Poor: Mark Blyth)

Na prática as elites corporativas têm-se apoderado de todos os ganhos de produtividade conseguidos desde há 40 anos, ao contrário do que tem sido feito crer à populaça.

E não posso deixar de referir a indigência intelectual do comentário do José, que procura mais confundir e obscurescer do que exibir argumentos reais.

S.T.

FLUVIÁRIO MÉDIO disse...

it boosted corporate profits at the expense of millions of workers

redistribuir 300 eurros ao mês por 1 milhão de pategos disse...

e reformas de 6000 eurros para juízes reitores e afins é uma redistribuição muy falaciosa

Jose disse...

Tão indigente que mais vale fazê-lo desaparecer diz o guru copista.

PG disse...

Não pretendendo discutir as propostas dos partidos em período eleitoral, onde todos oferecem tudo e mais alguma coisa, importa referir que devem existir pelo menos dois modelos de proposta alternativos à sociedade. E um não é a verdade e, o outro, a mentira. Devem ser ambos válidos, verdadeiros e com opções alternativas. O autor, parece-me mais interessado em "caricaturar" as propostas de direita em detrimento da esquerda. É verdade que o faz com alguma elegância mas tira conclusões sobre o que pensa a direita (radical), metendo no mesmo saco toda a direita. Falando simples: todos nós sabemos que, quando não temos dinheiro, não podemos distribuir - a não ser que nos endividamos; Se foco na criação de riqueza, isso não significa que não me preocupe em distribuir a riqueza criada; etc. etc. Por isso é que há socialistas ou social democratas. Porque estão atentos uns mais aos desafios da esquerda e outros aos desafios da direita. Agora, que a esquerda geralmente aposta mais no estado e na distribuição e, por isso, tenderá a aumentar o endividamento especialmente num Estado já endividado e com fraca economia), é verdade. Assim como é verdade, que não me parece que venha aí o diabo, se procurarmos definir modelo de crescimento de futuro, que atenda às necessidades da dívida (é preciso crescimento) e das expectativas das pessoas (é preciso distribuir).

Anónimo disse...

Alguém deu pelo josé depois da pancada do ST

Anónimo disse...

" Licínia Emerenciana" não existe

Infelizmente trata-se de outro nick de joão pimentel ferreira.

Mais uma do mundo perfeito do neoliberal em acção

Anónimo disse...

Suspiro

E PG é ainda e mais uma vez o mesmo joão pimentel ferreira

A tentar vender a mesmíssima conversa da treta a ver se passa.Com um pouco mais de polimento, mas repetindo a mesmíssima treta do passismo pelo qual ele tanto chora

PJNS disse...

Ás vezes percebo mal as coisas, mas se a memória não me falha, a distribuição entre o capital e o trabalho, só nos anos de 1973/1974/1975 estavam ao nível dos 45% ou mais para o trabalho e o resto para o capital. Hoje em 2019 e depois do governo do PSD/CDS anda nos míseros 33% ou menos. E desceu 3% durante este período. Usando a inteligência para ver os princípios, temos 4500000 de trabalhadores em Portugal, se 2/3 destes recebem o salário mínimo, e se temos 200 000 000 000 euros de pib, como dizia o outro façam as contas e constatem que a parte do capital continua a subir para níveis nunca antes vistos.... Há que transformar o mundo. K Marx.