quarta-feira, 13 de março de 2019

O porno-riquismo é tudo menos cor-de-rosa


O luxo está de volta a Portugal, informa-nos desta vez a Sábado. Há quem vá almoçar de helicóptero à praia e tudo. Como já aqui defendi, o porno-riquismo é a nova fase do consumo conspícuo num tempo de capitalismo multi-escalar com desigualdades pornográficas, onde o dinheiro assim concentrado é sempre quem mais ordena, incluindo na dimensão pessoal, que é sempre política. Neste contexto, certa comunicação social contribui para que os standards pecuniários pornográficos fixados pelos mais ricos, de resto tão pouco taxados quanto ambientalmente insustentáveis, sejam devidamente reconhecidos. Esta é só a enéssima reportagem do género, feita para gerar frustração e ansiedade sociais.


Esta abordagem celebratória dos hábitos e costumes dos ricos e famosos há muito tempo que deixou de estar confinada às revistas ditas cor-de-rosa. Da imprensa dita séria a um certo tipo de universidade, é toda uma cultura que celebra e ao mesmo tempo ofusca uma economia política que é tudo menos cor-de-rosa.

6 comentários:

Anónimo disse...

Quantos pobres para fazer um rico? O rico criou valor ou extraiu-o? Ou é a mesma coisa? Vamos recomeçar a tentar diferenciar entre earned e unearned income. Curiosamente, quanto mais elevado é o rendimento, mais provável é que o rendimento seja uma extração, um roubo (legal ou não), uma injustiça, mesmo em termos de mérito, obviamente. Caso contrário deve ser um génio. Um génio produtivista. Qual a remuneração adequada para o Einstein? E o Mozart? Vamos tentar calcular?

Jose disse...

«na dimensão pessoal, que é sempre política» - assustador!

«reportagem do género, feita para gerar frustração e ansiedade sociais» - só a igualdade traz a paz, sete palmos abaixo!

Francisco disse...

Assistimos, nos dias que correm, a uma bateria de alienação social, em que os mass media desempenham o papel que lhes está destinado no contexto da sua substantividade enquanto negócio por um lado, mas negócio gerador de ideologia, por outro lado. Faz por isso todo o sentido que desenvolvam a respectiva actividade e no que toca especialmente aos quadros de vida dos ricos e abastados sobre dois eixos concorrentes: a geração de um cada vez maior número de sujeitos que apenas se percebem a si próprios enquanto seres individuais (isto é, sem qualquer conexão ou sentimento de pertença com um grupo, estrato ou classe social)e, por outro lado e ao mesmo tempo (segundo eixo) indivíduos cuja aspiração mais profunda face à sua situação pessoal concreta (situação essa que para uma enorme maioria é de fragilidade económica e social)tem que estar associada à ideia generalizada de que na sociedade capitalista há não apenas uma mão invisível, mas também um imaginário elevador social, o qual nos transporta de baixo, onde nós estamos, para cima, através de vias perfeitamente pré-determinadas: a) por concessão dos que estão em cima e que "se mais não fazem é porque mais não podem fazer..." (é aí que entra a produção de classe média segundo Alexandre Soares dos Santos); b) pela meritocracia (conceito que se traduz objectivamente na subordinação acrítica e não reivindicativa, na esperança de que essa abdicação subordinada um dia seja finalmente reconhecida); c) e na ideia de que a riqueza é produtora de um efeito de spill over: quando há muita abundância alguma coisa há-de sobrar para nós e por conseguinte, melhor isso do que nada. É neste contexto que surgem as notícias cor-de-rosa, em que as histórias ditas de sucesso são até muitas vezes alavancadas por narrativas histriónicas de zés ninguém que fruto do seu labor e inteligência, hoje estão onde nós os vemos. Contemplar os ricos (o que vestem, onde comem, onde vivem, onde passam férias) é pois um elemento essencial da produção ideológica capitalista e da aceitação das desigualdades como uma ordem natural das coisas, que tem tanto de perversa como de auspiciosa, isto, desde que essa vida alheia e distante que eu hoje contemplo, seja motivo não da minha revolta, mas antes da minha aspiração absurda e irracional.

Jaime Santos disse...

Interessante, eu pensava que o jornalismo servia para informar. E, no caso específico, eu diria que é de todo o nosso interesse sabermos que existe um consumo de luxo em crescendo. Se a Sábado o glorifica ou não, isso é outra coisa, que eu não sei, porque ainda não li o artigo.

Sabe, João Rodrigues, duvido que os muito ricos, que cultivam a discrição, queiram 'gerar frustração e ansiedade sociais'. É contraproducente, porque estimula a revolta. Olhe-se para o que aconteceu em França. E você até deveria saber isso...

Acho mais que o interesse pelo 'porno-riquismo' (exibicionismo vindo por vezes de quem não tem cheta e vive de crédito) deriva mais do fascínio pindérico e infantil que uma certa classe média e também baixa têm pelo consumo de artigos que a mais das vezes não servem para nada...

Seja como for, é melhor uma sociedade onde existe tal coisa do que uma em que é preciso ir para a fila do racionamento...

Francisco disse...

O meu enorme respeito pelo pluralismo de opiniões, leva-me a só muito raramente responder de forma directa a qualquer comentário. De qualquer modo e com a maior cordialidade, quero patentear a minha absoluta discordância com o Jaime Santos, no que toca a uma produção ideológica de loas ao capitalismo, feita pelos mass media, mas, afinal, à revelia dos próprios capitalistas (o que é um completo absurdo pela contradição nos termos: eu sou dono do capital (e os meios de comunicação social são importantes negócios, alvo aliás de uma concentração crescente), mas não controlo o que ali se publica, dado que há uma "imprensa livre". Quanto a isso, estaremos todos de acordo que a nossa ingenuidade tem limites. Aliás, se atentarmos na institucionalização avassaladora de "comentadores independentes" sobre tudo e sobre nada, vemos onde chegam as preocupações do "mainstream" quanto à necessidade de permanente formatação do pensamento das massas.
A segunda razão deste meu comentário ao comentário do Jaime Santos, é que ele estabelece uma dicotomia que tem tanto de falsa como de perversa: mais vale este mundo de "porno-riquismo" do que a fila do racionamento. Meu caro Jaime Santos, a fila do racionamento é a outra face do "porno-riquismo". Posso aconselhar-lhe a leitura de um texto clássico da economia política: o sermão de Santo António aos peixes, do Padre António Vieira, onde essa matéria é explicada de modo clarividente. Mas se preferir uma actualização contemporânea, tem sempre a sopa dos pobres (às vezes com Marcelo na frente do pelotão) ou as recolhas de alimentos do Banco Alimentar contra Fome, da Srª. Dª. Jonet. Como vez, está tudo, diante dos nossos olhos. Temos é que querer ver.

S.T. disse...

Eu não sou de intrigas, mas o chamado "porno-riquismo" é a mais óbvia resposta aos troca-tintas que vêm pregar a necessidade de limitar o crescimento porque "o planeta tem recursos finitos". Como Jaime Santos já teve a desfaçatez de vir propôr noutras ocasiões.

A resposta mais óbvia é limitar os desmandos ambientais de uma minoria "porno-rica". O resto é conversa fiada de Josés, Jaimes Santos e seus compadres. E não é preciso instaurar racionamentos nem instaurar economias planificadas. Basta regular a acumulação desproporcionada dos recursos, ou se quiserem, do capital.

Essa é aliás mais uma das facetas esquizofrénicas do neoliberalismo tardio tentando incorporar preocupações ecológicas. Segundo essa tese, é necessário limitar os consumos das massas mas nem pensem em tocar nos privilégios dos ultra-ricos.

S.T.