segunda-feira, 11 de março de 2019

O mito do mercado da poupança


Neste vídeo explico sumariamente o funcionamento do negócio bancário. O senso comum, consagrado nos manuais de macroeconomia, de que os bancos são intermediários entre a procura e a oferta de poupança, é um mito que procuro desmontar.


Na verdade, o dinheiro emprestado não vem dos depósitos no banco, é criado por um registo electrónico. O dinheiro do crédito como que cai do céu. Afinal de contas, nenhum conselho de crédito pergunta à tesouraria do banco, antes de tomar a decisão, se há dinheiro para emprestar.

Infelizmente, os nossos alunos de economia terminam o curso sem perceber o negócio dos bancos nem o modo como a taxa de juro 'base' é fixada. No pacote da ignorância também vai a ideia do 'crowding-out', ou seja, a de que um défice público faz subir a taxa de juro e, assim, prejudica o investimento privado.

Para quem puder e quiser ler alguma coisa que ajude a arrumar as ideias, entre outros, recomendo o blogue de Bill Mitchell. Evidentemente, também recomendo o livro de macroeconomia que acaba de sair. Em Portugal, de certeza que não vai ser adoptado como manual da disciplina em qualquer faculdade, nem sequer recomendada a sua consulta. Desmonta muita teoria que tem dado cobertura pseudo-científica ao catecismo neoliberal.

Como motivação para aprofundamento do assunto, traduzi alguns parágrafos de um dos seus textos:

"No centro desta concepção está a teoria clássica dos fundos emprestáveis [poupança], que é uma construção agregada da forma como, no pensamento macroeconómico dominante, se admite que os mercados financeiros funcionam. Ainda há reconhecidos manuais de economia que ensinam estas coisas.
A ideia original foi concebida para explicar como a procura agregada nunca poderia ficar aquém da oferta agregada porque os ajustamentos das taxas de juro levariam sempre o investimento e a poupança ao equilíbrio.
No coração dessa hipótese errada está uma visão equivocada dos mercados financeiros. O chamado mercado de fundos emprestáveis é construído pelos economistas do pensamento dominante para mediar a poupança e o investimento através de variações nas taxas de juro.
Este é um pensamento pré-Keynesiano e era uma parte central do chamado modelo clássico, onde preços perfeitamente flexíveis proporcionavam sempre mercados agregados auto-ajustáveis, mercados que tendem para o equilíbrio. Se o consumo caísse, então a poupança aumentaria e isto não levaria a um excesso de oferta de bens porque o investimento (procura de bens de capital) acompanharia o aumento da poupança. Assim, embora a composição do produto pudesse mudar (os trabalhadores seriam deslocados entre o sector de bens de consumo e o sector de bens de capital), um equilíbrio de pleno emprego seria sempre mantido desde que a flexibilidade de preços não fosse impedida. A taxa de juro tornou-se o veículo para mediar a poupança e o investimento de modo a assegurar que nunca haveria excedentes.
Assim, a poupança (oferta de fundos) é concebida como uma função positiva da taxa de juro real porque o aumento das taxas de juro aumenta o custo de oportunidade do consumo corrente e, assim, incentiva a poupança. O investimento (procura de fundos) diminui com a taxa de juro porque os custos dos fundos para investir (casas, fábricas, equipamentos, etc.) sobem.
Alterações na taxa de juro criam assim um equilíbrio contínuo de tal forma que a procura agregada é sempre igual à oferta agregada e a composição da procura final (entre consumo e investimento) varia à medida que as taxas de juro se ajustam.
De acordo com esta teoria, se houver um aumento do défice orçamental, então há um aumento da procura sobre a poupança escassa (através da alegada necessidade de empréstimo por parte do governo), o que faz subir a taxa de juro para 'reequilibrar' o mercado de fundos emprestáveis. Isto reduz a despesa de investimento.
Supostamente, quando o governo pede emprestado para "financiar" o seu défice orçamental, exclui agentes privados que procuram obter fundos para investimento. Os economistas do pensamento dominante entendem isto como se o governo estivesse a reduzir a poupança nacional (por meio de um défice orçamental) e a aumentar a taxa de juro, prejudicando o investimento privado. A análise baseia-se numa camada de mitos que se instalaram no espaço público a ponto de se tornarem verdades quase óbvias."

9 comentários:

Anónimo disse...

Essa teoria é expressa, de facto, muitas - demasiadas - vezes. Algumas em comentários televisivos.

Mas nesse caso, qual é a verdadeira realidade?

Jorge Bateira disse...

Anónimo 17:37

A realidade é a que descrevo no vídeo: o dinheiro do crédito não vem dos depósitos, é criado por um registo contabilístico.
O texto deste post serve apenas para o contextualizar.

Jaime Santos disse...

O Jorge Bateira há tempos forneceu uma ligação a texto do Banco de Inglaterra que explicava de forma simples a forma como o Banco Central determina a quantidade de dinheiro em circulação por via da imposição da taxa de juro. Sugiro-lhe que volte a partilhar essa ligação.

O que me preocupa numa Economia como a nossa não é isso. É que o recurso permanente a défices orçamentais vai necessariamente fazer crescer a dívida, de forma absoluta e de forma relativa, se o crescimento for medíocre, como tem sido.

E não compro a ideia de que a restauração do keynesianismo permita de novo taxas de crescimento elevadas.

Cabe lembrar que o keynesianismo caiu e abriu caminho ao atual consenso neoliberal por causa a estagaflação dos anos 70.

Para além disso, parece que a elevada dívida pública tem mesmo efeitos na taxa de crescimento.

Já sei que me vai provavelmente dizer que a Economia Chinesa prova o contrário só que, lamentavelmente, ela caracteriza-se por ser muito pouco transparente. Ninguém sabe o volume real de dívida pública e parece que há um imenso risco escondida na designada banca sombra...

Um bocadinho de pessimismo ontológico não ficaria mal à Esquerda que olha para os seus dogmas mais ou menos como os Neoliberais olham para os deles...

Se calhar até nos faria bem abandonar a premissa do crescimento eterno, que nos está a meter num grande sarilho ecológico. Só que isso obrigaria a dizer às pessoas que se calhar não há mesmo alternativa ao facto de que teremos todos que viver com menos...

Anónimo disse...

Depois de ver o vídeo, uma dúvida subsiste: no caso apresentado, do crédito à habitação, em que comprador e vendedor são de bancos diferentes, no momento em que o vendedor vai fazer o depósito do cheque €100000 euros (por exemplo) que recebeu do comprador, o banco que fez o empréstimo tem de pagar com dinheiro *seu* ao banco do vendedor, pelo que o dinheiro que foi colocado na conta bancária de quem pediu o empréstimo é, para todos os efeitos, dinheiro que já existe — nas reservas do banco que concede o crédito... Não?

José M. Sousa disse...

Anónimo das 19:28

Talvez este texto possa ajudar a esclarecer

How Payments are Made
https://positivemoney.org/how-money-works/advanced/how-payments-are-made/

Aqui pode ter uma perspectiva mais ampla:

https://positivemoney.org/how-money-works/advanced/

Anónimo disse...

Se não tiver dinheiro, endivida-se.

Thomas Riepenhausen disse...

Então, como um banco pode ir à falência? É só dar mais crédito, de preferência malparado, ficar com o bem dado como segurança, e vender!

José M. Sousa disse...

Thomas Riepenhausen

A questão aqui tem a ver com a existência de vários tipos de "dinheiro" ( ver https://positivemoney.org/how-money-works/advanced/three-types-of-money/)

Os bancos comercias criam moeda escritural (Commercial bank money) - que corresponde à esmagadora maioria do dinheiro em circulação nas economias modernas. Apenas uma pequena parte das transacções é feita em numerário ("cash"). Se pensar nas suas transacções verá que não paga a renda ou prestação da casa ao banco em numerário, etc.

No entanto, em última análise - numa situação de uma corrida ao banco motivada por uma qualquer crise de confiança - os bancos têm satisfazer os seus compromissos em numerário e este só o banco central é que o emite.


Pode ler mais aqui:
https://positivemoney.org/how-money-works/advanced/how-do-banks-become-insolvent/



excerto
«If banks can create money, then how do they become insolvent? After all surely they can just create more money to cover their losses? In what follows it will help to have an understanding of how banks make loans and the differences between the type of money created by the central bank, and money created by commercial (or ‘high-street’) banks.

Insolvency can be defined as the inability to pay ones debts. This usually happens for one of two reasons. Firstly, for some reason the bank may end up owing more than it owns or is owed. In accounting terminology, this means its assets are worth less than its liabilities.

Secondly, a bank may become insolvent if it cannot pay its debts as they fall due, even though its assets may be worth more than its liabilities. This is known as cash flow insolvency, or a ‘lack of liquidity’.»

Jose disse...

«nenhum conselho de crédito pergunta à tesouraria do banco, antes de tomar a decisão, se há dinheiro para emprestar.» ...não havia necessidade!