quinta-feira, 14 de março de 2019

Caixas e copos

Há duas imagens que o pessoal de direita gosta de usar quando fez comentário económico.

Uma é associar a mítica metáfora da Caixa de Pandora à despesa pública. É uma escolha perversa porque, como se recorda, a Caixa estava cheia de demónios e pragas que, quando aberta por excesso de curiosidade, deu cabo do mundo, deixando apenas no fundo a Esperança. É como associar-se à despesa pública o seu papel demoníaco para a sociedade: quem opta por gastar, perde o controlo da despesa

Outra imagem é o seu complemento: "Um copo meio vazio é um copo meio cheio". Ou, como diria um barman, "há quem olhe para a realidade como um copo meio vazio e quem olhe para o mesmo copo como meio cheio". Ou seja, contrair a despesa pública pode ter um lado mau - dá cabo dos serviços públicos - mas tem um lado bom: dá cabo do papel do Estado e liberta recursos para as empresas investirem...    

A primeira foi usada por Vítor Bento, mais uma vez para criticar a situação do Governo (no programa da RTP Tudo é Economia de 11/3/2019). E digo mais uma vez porque ao longo da sua intervenção pública, já a usou inúmeras vezes. À pergunta sobre se o Governo tem capacidade para responder à contestação social, Bento respondeu:

O governo não tem muita margem de manobra. O governo abriu a Caixa de Pandora com as promessas que fez e, no fundo, com o slogan do fim da austeridade, que agora tem dificuldade em fechar. Libertou uma série de demónios e agora não os consegue colocar na caixa novamente. A dificuldade é essa. 

Na verdade, a dificuldade do Governo está em conseguir conciliar as regras do Tratado Orçamental - que Bento e a direita aplaudem - com as promessas de virar a austeridade. E essa dificuldade é igualmente a dificuldade da direita em mostrar que o espartilho do Tratado Orçamental tem virtudes. É o cumprimento desse espartilho estúpido que está a libertar as reivindicações que podem fazer a diferença entre o Estado ter ou não ter um papel. E impedi-las em nome do Tratado Orçamental - que nem Bento nem a direita têm a coragem de o fazer - é mostrar a realidade nua e crua do actual regime: seja quem for que lá esteja, seja quem for em quem se vote, terá de fazer o mesmo. Estupidamente.
  
Mas essa questão Bento nem sem sequer a aborda. Como se fosse natural que se tenha de cumprir todo um edífício teórico - com os critérios de Maastricht e a necessidade de convergir rapidamente para eles - que assenta em ideias erradas, já assumidamente criticadas mesmo por quem está à frente do BCE ou de outras instituições multilaterais. Porque o Tratado Orçamental é um dispositivo político para manter a dívida pública como um instrumento de poder e de transferência de rendimento entre grupos sociais.
 
Pior: quando Bento é questionado se o Governo tem dinheiro para responder às reivindicações sociais, responde que o que se passa - em que o Governo se revela atrapalhado - é antes culpa sua.

Primeiro, porque vendeu a ideia de que era possível virar a página da austeridade. Bento não critica a falsa promessa: critica a ideia de que não se deve virar a página da austeridade. Segundo, porque a contestação é quase partidária, própria de ano de eleições, com o fim de retirar a maioria absoluta ao PS, e não uma contestação legítima ao Tratado Orçamental, visando impedir o cerceamento de direitos. E terceiro, porque o Governo tomou opções erradas.

Obviamente que a restrição orçamental é muito forte e muito grande. Mas alguma da restrição resultou de opções políticas que foram feitas. Quando o Governo acabou com o IVA da restauração ficou com menos dinheiro para dar aos enfermeiros ou professores ou seja quem for. Portanto, fez uma escolha a favor de um sector. Quando decidiu reduzir as 40 horas para as 35 horas, ficou com menos margem para poder fazer aumentos porque tem de admitir mais pessoas. Não podemos olhar para a margem de uma manobra absoluta, como se o termos chegado aqui fosse uma inevitabilidade. (...) Isto agora é o contrapeso dessas outras opções seguidas, a meu ver erradamente - eu teria seguido prioridades diferentes.

Bento nunca disse quais teriam sido as correctas e o moderador não o questionou, porque até parece concordar com ele. Mas fica o aviso de que aaontece a quem come o fruto proibido e apanha com o conteúdo da Caixa de Pandora.     

10 comentários:

Anónimo disse...

Gente como este Vitor Bento defende o sistema responsável pela socialização dos prejuízos e pela apropriação dos lucros. A naturalidade com que defendem a desigualdade é esclarecedora, se cruzarem os discursos desta gente com a nossa constituição vão reparar o absoluto atropelo que está em causa. Penso que não dizem as coisas de forma ainda mais escabrosa porque ainda não têm coragem de o fazer.

Jose disse...

«...a dificuldade do Governo está em conseguir conciliar as regras do Tratado Orçamental ... com as promessas de virar a austeridade.

Dívida e credores, carga tributária e economia real, nada disso é relevante para o enorme potencial do Estado em dar fim à austeridade e encaminhar o país para a felicidade plena.
Só o Tratado Orçamental é problema!

Anónimo disse...

Parece-me claro que Bento criticou as falsas promessas, caso contrário, talvez eu não esteja a entender o conteúdo/finalidade deste post.
O PS sempre quis no discurso tentar quadrar o círculo, e sim, baixar o iva foi uma escolha não inevitável.

De resto, tenho a ideia de que Bento já mudou, no passado, de opinião a 180º, e ele nessa entrevista parece partir dos tais pressupostos, que são o enquadramento institucional da zona euro e da UE. Não está interessado em discuti-los.

É verdade que o moderador foi muito simpático com o entrevistado.

Jaime Santos disse...

Há duas coisas que vale a pena salientar. A primeira era que para os Gregos antigos, a Esperança era mesmo o pior de todos os males. Aquilo que na tradição judaico-cristã e também nas suas variantes seculares (incluindo o socialismo) é uma virtude, para os Gregos era a pior de todas as coisas.

Talvez não nos fizesse mal um pouco de pessimismo ontológico (longe do mero pessimismo antropológico caro ao judaísmo e ao protestantismo) em face da degradação progressiva das condições do planeta, Talvez haja mesmo um limite relativamente ao que podemos e devemos dar às pessoas (incluindo claro aos ricos, para não sermos hipócritas).

Em segundo lugar, o João Ramos de Almeida pode dar as voltas que quiser, que nós temos mesmo um problema de elevada dívida pública e não podemos simplesmente renegá-la, sobretudo se queremos continuar a pedir dinheiro emprestado.

E é isto que a Esquerda da Esquerda se recusa a admitir. Se quisermos prosseguir numa via alternativa ao Tratado Orçamental, é preciso dizer a verdade às pessoas e explicar-lhes quais os sacrifícios que elas terão que fazer. É preciso expor com detalhe um plano de saída do Euro e de recuperação da soberania monetária. Que vai ter custos, provavelmente bem elevados. A Democracia providencia escolhas, não necessariamente a felicidade.

Quando isto estiver feito, e estou à espera desde 2012 que alguém o faça, então este discurso político pode começar a ser levado a sério. De contrário, não passa de Demagogia...

Anónimo disse...

Palavras para quê?!

Governo contém despesa sobretudo à custa do investimento público
https://www.dinheirovivo.pt/economia/governo-contem-despesa-sobretudo-a-custa-do-investimento-publico/

Investimento público foi o mais baixo desde 1995

https://eco.sapo.pt/2017/04/11/investimento-publico-foi-o-mais-baixo-desde-1995/

O Instituto Nacional de Estatística confirmou que a carga fiscal subiu em 2017 para o valor mais elevado, pelo menos, desde 1995.

https://www.jornaldenegocios.pt/economia/impostos/detalhe/ine-confirma-carga-fiscal-em-maximos-mas-portugal-continua-abaixo-da-media-europeia

Dívida do SNS a fornecedores e credores aumentou 51,6% em 2017 face a 2014

https://www.dn.pt/dinheiro/interior/qualidade-da-prestacao-de-contas-do-ministerio-da-saude-melhorou-em-2017---tdc-10409201.html

Finanças apertam cativações nos serviços públicos

https://www.jornaldenegocios.pt/economia/financas-publicas/detalhe/financas-apertam-cativacoes-nos-servicos-publicos

Governo PS congelou mais despesa em três anos do que PSD-CDS na legislatura toda

https://www.dn.pt/edicao-do-dia/19-nov-2018/interior/governo-ps-congelou-mais-despesa-em-tres-anos-do-que-psd-cds-na-legislatura-toda-10196496.html

PIB per capita de Portugal é o quarto mais baixo da zona euro

https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/pib-per-capita-de-portugal-e-o-quarto-mais-baixo-da-zona-euro-388824

PIB per capita de Portugal era o 14º entre os 19 países da zona euro. Em 2017 descemos para 15º (fomos ultrapassados pelos Eslováquia) e em 2018 descemos para 16º (fomos ultrapassados pela Estónia). Atrás de nós só temos agora a Lituânia, a Grécia e a Letónia.

Governo PS já gastou mais com os bancos do que PSD/CDS

https://expresso.pt/economia/2019-02-09-Governo-PS-ja-gastou-mais-com-os-bancos-do-que-PSD-CDS#gs.1i0css

João Ramos de Almeida disse...

Caro José,
Claro que temos problemas graves por discutir, debater e resolver, mas que - por acaso... - o nosso enquadramento comunitário não só não tratou de os enumerar, esclarecer e resolver, como os adiou, escondeu e, no fim, agravou.
Estou de acordo consigo ao dizer que o problema orçamental está longe de ser o nosso principal problema. Mas reduzir o papel do Estado à insignificância - consequência do Tratado Orçamental - está longe de ser a solução. E como tal tem de ser encarado.

Caro Jaime,
Portugal não tem um problema dívida pública. Porque se esse era o problema, a troica tê-lo-ia atacado como tal e, na realidade, agravou esse aspecto ainda mais. Portugal não tinha um problema de dívida pºública e ficou com um peso atado aos pés, que por acaso, o Tratado Orçamental transformou em problema económico, ao forçar uma austeridade severa, em consequência da convrg^Çencia nominal, sabe-se lá para quê...

E pior: não será essa austeridade severa que irá reduzir a dívida. Pelo contrário. O peso da dívida no PIB resolve-se aumentando o PIB e aumentando a inflação. E para isso a austertidade está longe de ser a solução.

Há que aprender com o passado e com o presente, sob pena de repetirmos erros e não sairmos na sepa torta.

Jose disse...

Caro João,
Se o Tratado não é o único problema, porquê só falar dele?
Serão os outros problemas associados a incómodos discursivos?
Produtividade, conhecimento, natalidade, corrupção, ...

S.T. disse...

Independentemente da resposta que JRA queira ou não dar, meto o meu colherão para avançar uma explicação simples:

Fala-se tanto do Tratado Orçamental porque é o ferrolho que impede a solução dos maiores de todos os problemas nacionais.

Dos quatro problemas que o José cita três, a saber, produtividade, conhecimento e natalidade estão bloqueados pelos constrangimentos orçamentais e monetários impostos pelo dito tratado.

Até o quarto problema está associado ao poder das elites europeístas que aproveitam o quadro instituído pela abertura dos fluxos de capitais para se apropriarem dos recursos nacionais aos vários níveis.

Logo, é legítimo e necessário falar dos efeitos nefastos que o Tratado Orçamental tem para Portugal. Estranho é o silêncio cúmplice da generalidade da comunicação social portuguesa que escamoteia a origem dos problemas que o país enfrenta. Ou são estúpidos ou estão comprados.

S.T.

Anónimo disse...

Os problemas nacionais não se reduzem ao tratado orçamental :

Alguns exemplos

1- Burocracia / instabilidade fiscal

Portugal é o quarto país da União Europeia onde as empresas demoram mais tempo a pagar impostos, tendo dedicado, em média, 275 horas a essa tarefa.

2 - Meritocracia / tomada da administração publica por boys / ineficiente

Governo já nomeou 273 dirigentes sem concurso

https://www.jornaldenegocios.pt/economia/funcao-publica/detalhe/governo_ja_nomeou_273_dirigentes_sem_concurso__publico

3 - Transparência

Com 17 acordos, Portugal e China dão “passos concretos na relação”

https://www.publico.pt/2018/12/05/economia/noticia/assinatura-17-acordos-sao-passos-concretos-relacao-china-portugal-1853603

Actas rasuradas pela CGD podem adiar início da comissão de inquérito

https://www.publico.pt/2019/03/14/politica/noticia/informacao-rasurada-enviada-cgd-dificulta-inicio-comissao-inquerito-1865246

O novo regime de protecção de dados está a servir de pretexto para ocultar informações, nomeadamente referentes a contratos públicos, essenciais ao escrutínio da actividade do Estado.

https://www.publico.pt/2019/03/12/sociedade/opiniao/proteccao-dados-serve-caos-1864981

Benefícios / isenções fiscais

4 - Justiça - lenta - não acessível ao comum dos cidadãos - sem meios

5 - Ausência de estratégia a 5 / 10 anos

Portugal isolado com a bitola ibérica

https://expresso.pt/economia/2017-07-28-Manifesto-contra-ilha-ferroviaria-em-Portugal#gs.14hw34

6 - Regionalização - descentralização - não existe um debate sério em Portugal sobre o assunto

7 - Corrupção ( sem comentários )






Anónimo disse...

Os problemas nacionais não se reduzem ao tratado orçamental :

Alguns exemplos

1- Burocracia / instabilidade fiscal

Portugal é o quarto país da União Europeia onde as empresas demoram mais tempo a pagar impostos, tendo dedicado, em média, 275 horas a essa tarefa.
Para os cidadãos - é um inferno .

2 - Meritocracia / tomada da administração publica por boys / ineficiente

Governo já nomeou 273 dirigentes sem concurso

https://www.jornaldenegocios.pt/economia/funcao-publica/detalhe/governo_ja_nomeou_273_dirigentes_sem_concurso__publico

3 - Transparência

Com 17 acordos, Portugal e China dão “passos concretos na relação”

https://www.publico.pt/2018/12/05/economia/noticia/assinatura-17-acordos-sao-passos-concretos-relacao-china-portugal-1853603

Actas rasuradas pela CGD podem adiar início da comissão de inquérito

https://www.publico.pt/2019/03/14/politica/noticia/informacao-rasurada-enviada-cgd-dificulta-inicio-comissao-inquerito-1865246

O novo regime de protecção de dados está a servir de pretexto para ocultar informações, nomeadamente referentes a contratos públicos, essenciais ao escrutínio da actividade do Estado.

https://www.publico.pt/2019/03/12/sociedade/opiniao/proteccao-dados-serve-caos-1864981

Benefícios / isenções fiscais

4 - Justiça - lenta - não acessível ao comum dos cidadãos - sem meios

5 - Ausência de estratégia a 5 / 10 anos

Portugal isolado com a bitola ibérica

https://expresso.pt/economia/2017-07-28-Manifesto-contra-ilha-ferroviaria-em-Portugal#gs.14hw34

6 - Regionalização - descentralização - não existe um debate sério em Portugal sobre o assunto

7 - Corrupção ( sem comentários.... )