terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Exit, Brexit, Lexit


Aquilo que de forma manipuladora se apoda de “hard Brexit” (Brexit duro), ou seja, o Brexit, pode começar a tornar-se um daqueles casos em que o impensável se torna inevitável. Wolfgang Munchau, no Financial Times, tem acompanhado este movimento. Curiosamente, o tom do seu último artigo é de alguém que começa a aclimatar-se a este cenário: o Reino Unido deve mobilizar todos os instrumentos de um Estado soberano para lidar com o “choque”: “a crise financeira, ensinou-nos que as economias modernas são relativamente robustas se fizermos as coisas certas”, ou seja, usar o poder monetário ao serviço de uma política orçamental expansionista, incluindo a desvalorização cambial.

Para lá da conjuntura, Munchau sublinha que o regime comercial é muito menos importante do que a estratégia económica baseada na inovação, que deve estar no centro das preocupações. As duas coisas não são separáveis, na realidade, o que não implica, antes pelo contrário, aceitar a lógica do mercado interno. Fica implícito que o Estado terá neste cenário muito mais margem de manobra, até porque não está limitado pelos constrangimentos do mercado interno, por exemplo, em matérias de ajudas e de regimes de propriedade. Munchau enfatiza a necessidade de redução das desigualdades, o que pressupõe uma mudança do “modelo de negócios rentista” de matriz financeira. Uma vez mais, quebrar o poder da City é mais fácil fora da UE.

No fim, Munchau assinala: “Os economistas políticos sabem há muito que os interesses instalados impedem que os países transformem as suas estruturas industriais. É necessário um choque para que tal aconteça, o que explica porque é que a Alemanha e o Japão prosperaram a seguir à Segunda Guerra Mundial. Não há razões para pensar que o Reino Unido não pode prosperar, mesmo depois de um Brexit duro”.

Infelizmente, acrescenta: “Ninguém no seu juízo perfeito, justificaria a Segunda Guerra Mundial pelos efeitos económicos do pós-guerra. E seria errado justificar um Brexit sem acordo porque daria ao Reino Unido a oportunidade de fazer as mudanças que de outra forma não ocorreriam”. A Segunda Guerra funciona mal como analogia. Até parece o equivalente económico do argumento Ad Hitlerum, em contracorrente com o resto do artigo.

Um Brexit sem acordo e um governo trabalhista que leve o seu programa a sério, disposto a usar a soberania reconquistada, seriam a melhor combinação, uma ainda improvável oportunidade para fazer as mudanças necessárias em paz. Em última instância, quem disse que a chamada doutrina do choque tem de ter sempre implicações neoliberais?

16 comentários:

Anónimo disse...

Como se pode ver aqui

( https://www.theguardian.com/politics/2019/feb/18/chuka-umunna-and-other-mps-set-to-quit-labour-party ,

https://www.theguardian.com/politics/2019/feb/19/chuka-umunna-hopes-new-party-will-be-created-by-end-of-year ),

Corbyn está debaixo de "fogo amigo". A ala "blairista" tudo fará para impedir a formação de um governo trabalhista que leve o seu programa a sério.


A. Correia

Jose disse...

Tudo muito coerente.

Fica todavia a questão: derrotar a City e ter um Estado com políticas de esquerda, aonde leva o UK? Que mercados vai conquistar com a sua moeda desvalorizada sem desvalorizar salários?

Suspeito que, como é hábito, o paraíso de esquerda pressupõe a passagem pela miséria por tempo indeterminado.

S.T. disse...

Há algum tempo que desisti de comentar o folhetim, ou melhor, o "culebrón" do brexit. As lógicas internas são demasiado retorcidas e o fumo e jogos de espelhos criam demasiada complexidade.

Tenho por convicção que o brexit, apesar de numa primeira fase poder ser caótico e gerar algumas perdas, será muito positivo para a economia do UK a médio e longo prazo.

Sendo a decisão de sair da EU eminentemente política, é pelos resultados políticos que deve ser avaliada. Os resultados económicos derivam de escolhas políticas e lembro que nenhum país prosperou enquanto subjugado aos interesses de vizinhos com poder para ditar políticas externas comerciais e de imigração e condicionar políticas de desenvolvimento, incentivos, concorrência e modernização.

Ora sabendo nós como as instituições comunitárias estão enfeudadas pelos interesses da Alemanha & minions,só teremos a felicitar os ingleses quando se virem livres das peias de Bruxelas.

O UK tem dimensão de mercado interno e uma base comercial, financeira e de investigação e desenvolvimento que podem ser postas ao serviço do reino. E isto independentemente de serem trabalhistas ou conservadores a governar.

Claro que se fôr o Labour a governar o regime será mais justo e distributivo.
Neste contexto a fuga dos blairites pode ser encarada como uma bênção disfarçada porque se ficassem condicionariam fortemente as políticas que o Labour tentasse implementar se chegar ao governo. Na prática os blairites exerciriam uma constante chantagem porque uma presumível maioria "curta" trabalhista conferir-lhes-ia um poder desconforme da sua importância política real.

Ao Labour só interessa uma vitória inequívoca e não condicionada pelos blairites que já tantos estragos causaram ao partido e ao UK.

A saída de Umunna & friends deve ter que ver com a possibilidade de alavancarem um último esforço desesperado de travar o brexit aliando-se ao grupo de remoaners tories nos tempos decisivos que se aproximam. Só assim se compreende que escolham este timing para desertarem.

S.T.

Jose disse...

E o paraíso da direita implica a asfixia, mais ou menos lenta mas inexorável, de quem vive do seu trabalho.

vitor disse...

“Ninguém no seu juízo perfeito, justificaria a Segunda Guerra Mundial pelos efeitos económicos do pós-guerra..."

Ninguém? Ainda fresco e com a permissão do economista português:

"A história da política económica está repleta de erros gigantescos que foram cometidos por serem gigantescos. Evoquemos apenas a organização económica internacional posterior à Primeira Guerra Mundial cuja estupidez é consensual: A Inglaterra e a França endividaram-se nos Estados Unidos para vencerem a Alemanha; finda a guerra, Washington exigiu o pagamento dessas dívidas; Londres e Paris só tinham condições para as pagarem se a Alemanha lhes pagasse as previstas reparações de guerra Mas os Estados Unidos opunham-se a que a Alemanha entregasse as reparações, por as considerar excessivas. A escala de preferências dos Estados Unidos não era transitiva e a economia internacional rebentou em 1929 (e não se recompôs antes de 1945)."

Jaime Santos disse...

A doutrina de choque tem sempre implicações neoliberais porque são os neoliberais que dispõem do poder, João Rodrigues. Entre leninistas de Esquerda e de Direita, os últimos normalmente vencem.

Mas pelo menos é agradável ver que você afinal até é um adepto da doutrina de choque (claro!)... Fugiu-lhe a boca para a verdade...

Corbyn não tem um penny para pagar os programas que defende e o Labour arrisca fracionar-se (já começou a fazê-lo) devido ao cinismo do seu líder e à sua vontade de agradar a todos. Finalmente, começam a ficar expostas a incompetência e a duplicidade de Corbyn.

A Esquerda dura acaba sempre, sempre, a jogar o jogo da Direita mais reacionária (pudera, une-as antes de tudo o ódio ao liberalismo).

Só é pena que se o RU se transformar numa Singapura 'on the Thames' não sejam os que sonham com os amanhãs que cantam que vão sofrer com isso. Porque se fossem, eu diria 'Leave, and good riddance!'...

Pedro disse...

Faz espécie ver pessoal a favor do brexit por a Inglaterra supostamente assim se livrar das políticas neoliberais da Alemanha, quando foi a Inglaterra que introduziu na europa as políticas neoliberais que os alemães agora seguem.

Há qualquer coisa de surrealista nos defensores do brexit tanto à esquerda como à direita.

Quem disse que é o labour que vai governar o RU depois do brexit ?

E quem disse que o brexit garante que o labour se consegue mesmo livrar de todos os blairistas e não volta a ser a sucursal do partido conservador a que os blairistas nos habituaram nas últimas três décadas ?

Cà para mim o RU está a meter-se num buraco de todo o tamanho porque ao contrário dos países periféricos, foi sempre privilegiado em termos de condições de participação na UE e a sua saída não garante em nada o abandono das tradicionais politicas neoliberais - iniciadas na Europa precisamente pela Inglaterra.

S.T. disse...

A EU tem a pretensão de funcionar como uma válvula: Permite movimento num sentido mas proíbe-o no outro. É assim que as jibóias asfixiam as suas presas: Cada vez que a vítima expira a cobra aperta mais um bocadinho e depois a presa já não consegue voltar a inspirar.

Assim, toda a regulamentação favorece as privatizações e a entrega de sectores cruciais como a saúde e o ensino à exploração por privados mas proíbe qualquer movimento em sentido inverso. Isto mesmo quando as privatizações como o caso dos caminhos de ferro ingleses e o Royal Mail se revelam ruinosos e penalizadores para os consumidores e o público do UK.

Subtrair o UK aos diktats de Bruxelas e concomitante legislação volta a colocar as escolhas de como a economia é organizada, quais os incentivos e quais os investimentos públicos que devem ser feitos nas mãos dos representantes do povo inglês e no lugar próprio donde nunca deveriam ter saído: No PARLAMENTO.

Se acham coisinha pouca comparem com a desgraçada situação nacional em que qualquer dia até os traques carecem de autorização e visto prévio de Bruxelas.

S.T.

S.T. disse...

Indício do que eu apontava acima, isto é, de que esta deserção de Umunna & friends faz parte de uma manobra anti-brexit é uma quasi simétrica deserção nas fileiras tories:

https://www.theguardian.com/politics/2019/feb/20/tory-mps-defect-independent-group-soubry-allen-wollaston

Já agora em relação à acusação de Jaime Santos de que "Corbyn não tem um penny..." calha bem porque o estado de descapitalização e degradação de algumas companhias ferroviárias privadas no UK é tal que talvez nem seja preciso um penny... Aqui há tempos uma delas até queria entregar a concessão.

S.T.

Pedro disse...

Mas ó S.T, quem inventou o neoliberalismo na europa foram os ingleses.

Quem é que lhe disse que fora da europa vão deixar de ser neoliberais ?

Anónimo disse...

Não é só no desunido "Reino Unido" que se verifica a ofensiva do extremo-centro. A coisa é mais geral, envolve toda a desunida "União Europeia":

"This paper marks the start of ECFR’s campaign to strengthen Europe in the face of efforts by anti-European parties to divide it. We analyse, in detail, the political situation in each of the EU’s 27 member states ahead of the 2019 EP election"
[ https://www.ecfr.eu/page/-/EUROPEAN_PARLIAMENT_FLASH_SCORECARD_online.pdf ]

A. Correia

S.T. disse...

Claro que não há garantias, mas dois ou três factores muito práticos que entram em jogo:

Primeiro, o neoliberalismo é como o marisco: Vem em embalagens blindadas. Primeiro têm que se quebrar as carapaças e só depois se pode comer.

Segundo, como o fenómeno dos gilets-jaunes em França demonstra, as desigualdades sociais e o nepotismo das classes possidentes alcançou um tal pico que até é do seu próprio interesse aliviar alguma pressão sob pena de ruptura sistémica. (Pitchforks, rings a bell?)

Há ainda uma terceira razão, ligada à evolução geoestratégica mundial que dita o retrocesso da glogalização, com a ruptura do uso da produção industrial chinesa como forma de chantagem sobre os assalariados no Ocidente em sede de negociações laborais.

Como diria aquele outro economista: Kapish?

S.T.

S.T. disse...

"There is also the possibility of an “all against the establishment” alliance of the far right, Euroskeptics, and the far left, which could make life “very difficult” for pro-EU forces"

"Há também a possibilidade de uma aliança "todos contra o establishment "da extrema direita, eurocépticos e da extrema esquerda, o que poderia tornar a vida" muito difícil "para as forças pró-UE"

In

https://www.rt.com/news/452049-eu-may-elections-eurosceptics/

Só para "alegrar" os euroinómanos... :)

S.T.

Aónio Eliphis disse...

Tanta ladainha político-económica, mas a realidade é que os Ingleses votaram em massa "leave the f**** EU", porque estavam fartos de polacos, paquistaneses, húngaros, italianos e portugueses! A esquerda tuga, humana e socialmente justa, como sempre, regozija-se e aplaude! O ST pode berrar aos seus santinhos, mas de facto a eurofobia vigente tem quase sempre uma raiz xenófoba. A esquerda, obviamente, aplaude!

S.T. disse...

Para reforçar e ideia que políticas que favoreçam o factor trabalho não são permitidas na EU, recomendo a leitura deste singelo artigo:

https://novaramedia.com/2018/12/06/another-europe-is-unlikely-why-socialist-transformation-wont-happen-within-the-eu/

É sobretudo dedicado às alminhas "socialistas" que pensam que "outra EU é possível" (mas não dizem como LOL).

"At its heart, the problem the EU presents to the left is not enough democracy and too many veto players. Even if the left managed the heroic task of taking control of the European Parliament, the Commission and the Council both have a veto, and both continue to be strongly influenced by both the national interests of the most powerful states and special interest groups. The combination of these factors would prevent any attempt at socialist transformation within the EU."

"Na sua essência, o problema que a UE coloca à esquerda não é insuficiente democracia e demasiados intervenientes com direito de veto. Mesmo que a esquerda conseguisse realizar a heróica tarefa de assumir o controlo do Parlamento Europeu, tanto a Comissão como o Conselho têm poder de veto, e ambos continuam a ser fortemente influenciados tanto pelos interesses nacionais dos estados mais poderosos como por grupos de interesses especiais (lobbies, N. de T.), e a combinação desses fatores impediria qualquer tentativa de transformação socialista dentro da UE."

Por isso reafirmo que a única alternativa viável é o frentismo neutro no espectro esquerda-direita, sólidamente ancorado em boa teoria económica e em valores de humanismo e justiça social, sobre os quais um amplo consenso pode ser obtido.

S.T.

S.T. disse...

Peço desculpa, mas tenho que rectificar a tradução. Assim, deve ler-se:

"Na sua essência, o problema que a UE coloca à esquerda é insuficiente democracia e demasiados intervenientes com direito de veto. Mesmo que a esquerda conseguisse realizar a heróica tarefa de assumir o controlo do Parlamento Europeu, tanto a Comissão como o Conselho têm poder de veto, e ambos continuam a ser fortemente influenciados tanto pelos interesses nacionais dos estados mais poderosos como por grupos de interesses especiais (lobbies, N. de T.), e a combinação desses fatores impediria qualquer tentativa de transformação socialista dentro da UE."

Na sua essência o artigo coincide com o meu ponto de vista de que a EU aplica a táctica das cobras constrictoras às esquerdas europeias. E só falsos socialistas e blairites se podem sentir confortáveis com tal situação.

S.T.