domingo, 6 de dezembro de 2009

A consensual normatividade carcinogénica do capitalismo

Na actual fase de putrefacção do capitalismo, parece não haver tema mais consensual e insusceptível de qualquer crítica do que o chamado “empreendedorismo”, tema ao qual se dedicou uma instrutiva “semana global”, no passado mês de Novembro. A palavrinha parece ter virtudes de solução mágica para todos os problemas sociais e económicos e, por isso mesmo, anda na boca do mundo, do Presidente da República e dos membros do governo aos partidos políticos, dos empresários aos estudantes, das escolas primárias às universidades, associações, fundações, câmaras municipais, eu sei lá!... A ideia básica é simples e faz justiça a Adam Smith e ao dogma da imaculada escassez: fazer de cada cidadão um negociante, um vendedor de qualquer coisa.

A coisa vem de trás, mas aqui há dois ou três anos – a partir da academia e das associações empresariais – apareceram uns missionários dispostos a ganhar visibilidade promovendo o ensino (?) desta nova religião nas escolas, a crianças a partir dos 6 anos, com a indiferente conivência e o apoio de professores e pais. Alguns, acharam por bem evangelizar até as crianças dos bairros degradados da periferia, para melhor combater a exclusão. A doutrina, cujos pressupostos radicam numa espécie de darwinismo social de meia-tigela, pretende revelar os esplendores divinos da inovação e da competitividade com recurso ao potencial criativo que jaz no fundo de cada homem, mulher e criança, aplicando-se tudo aos negócios, claro. Cultivando a ambição desmedida e estimulando o sempre ilimitado desejo de ganhar dinheiro e a vontade de poder e sucesso, deve sublinhar-se o lugar de destaque atribuído à expressão “auto-emprego”, a par com o uso recorrente das palavras “oportunidade” e “desafio”, regurgitadas até à exaustão. Junte-se a isto o uso do vulgar uniforme parolo do mundo dos negócios – o conjunto fato e gravata capaz de transformar qualquer imbecil, ou qualquer vigarista, em pessoa de aparência credível – e eis a fórmula do “empreendedorismo”.

Para melhor disseminar a peçonha, a União Europeia incentiva este discurso e estas práticas, tendo até produzido relatórios em que se recomenda às instituições do ensino superior que abram departamentos de “educação para o empreendedorismo”. Em contexto de crise económica, com a Estratégia de Lisboa e a implantação da nova ordem digital, com os "produtos de conhecimento" incubando a ficção mercantil do capitalismo cognitivo e com os interesses dos actores profundamente investidos pela peçonha da ambição, do dinheirismo e da corrupção, o sistema de justiça em necrose acelerada, o descrédito do Estado, da governação e das instituições, temos ainda, pois, que nos confrontar com o cancro da competitividade, a ver quem apresenta o produto mais inovador, quem vende mais e melhor, com endividamento e concorrência feroz. É esta a doutrina soteriológica proposta pelos arquitectos do actual desastre social e do imenso drama da pobreza e do desemprego, que a “resiliência” de que tanto falam os apóstolos dos negócios parece ser, sobretudo, virtude dos explorados, dos precários, dos pobres. Assim, este “empreendedorismo” suporta teórica e tecnicamente a continuidade da injustiça profunda de um modelo de crescimento incapaz de se reformar e corrigir de modo a pôr termo à degradação ambiental, ao esgotamento dos recursos e à destruição acelerada do planeta. E escusado será dizer que a degradação é também de ordem moral. A apatia generalizada, a resignação e o medo fazem o resto.

16 comentários:

um leitor disse...

Concordo na íntegra!

melga disse...

excelente o seu post. como vamos fazer para sair do esquema que foi montado para nós ? muita gente vive de nós , apelam a que cresçamos sem fim , que não nos contentemos jamais com o que já temos ( mesmo que já não precisemos de mais nada a não ser de partilha e dos mimos e cuidados de outros seres humanos - e de comida , é claro). suponho até que se começassemos a trocar serviços e bens entre nós sem haver dinheiro pelo meio iriam proibir essas trocas pois não geram imposto.
houve alguém aqui que linkou aqui a 2ª conferencia sobre decrescimento sustentável e eu vou deixá-lo outra vez , com o menú de trabalhos pedidos , para ver se se inspiram.

http://www.decrecimiento.info/2009/11/ii-conferencia-internacional.html

o anão careca e piolhoso disse...

Caramba pá salvaste-me da loucura. Pensava eu, estar passado dos carretos e ver fantasmas nestas merdas do empreendedorismo, da resiliência e da assertividade,mais outras paneleirices da "nova gestão", mas, afinal não estou só.
Haja Deus que estou (não sou) agnóstico.
P.S. Diria quase o mesmo, mas com mais vernáculo e, portanto, pouparia algumas linhas.

Anónimo disse...

Uff!!Que bom ler um texto que dá voz exacta à fúria surda que me assalta diariamente frente aos chavões de pechisbeque que se destinam a criar uma geração de salteadores de fato e gravata, muito eficazes a engendrar formas inovadoras de explorar o próximo.
Valeu!

CCz disse...

Tanto ódio!!!

Francisco Oneto disse...

CCz: está muito enganado quanto ao ódio, que é sentimento que não cultivo. Essa costuma ser, aliás, a acusação feita por certos políticos contra quem defende os direitos do trabalho, visando lançar a suspeição sobre a índole moral de quem critica os abusos, pois o ódio não só é um sentimento... odioso, como não deve fazer parte do combate político nem da crítica social - pelo menos do meu ponto de vista. Ódio é, ao contrário, aquilo que resulta da opulência dos poderosos, do dinheirismo, da ambição, da conivência com a injustiça e com a desigualdade, do branqueamento da malvadez e da indiferença de quem não tem outro remédio senão tratar o seu semelhante como mero "recurso" ao serviço da ganância generalizada... - em suma: do desprezo pela condição humana que é apanágio deste cego, surdo e mudo consenso em torno da normatividade carcinogénica do capitalismo e das suas múltiplas, obscuras e sempre naturalizadas manifestações.

Francisco Oneto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco Oneto disse...

melga
obrigado pelo link!
Um clássico a descarregar gratuitamente aqui:
http://classiques.uqac.ca/contemporains/georgescu_roegen_nicolas/georgescu.html
Saúde!!!

Bruno Silva disse...

POR AMOR DE DEUS!!

Que comentário mais infeliz...

Caro Francisco, já vi muita porcaria neste blog, mas esta foi a pior de todas.

Então está a criticar a ênfase à "palavrinha" empreendedorismo não é?

Não o conheço, mas a ideia com que fico logo é que você é mais um dos "mimadotes" do capitalismo que, de tão mimado que está, só sabe é por defeitos e toma tudo por garantido.

Sabe... eu conheço MUITA gente a falar mal deste sistema movido pelo "Lucro" e tal e tal.. mas sabe o que eu simplesmente não conheço? Pessoas que investiram as suas poupanças e hipotecaram os seus haveres para fazer investimentos tendo como objectivo PRINCIPAL outro qualquer fim que não o lucro. Você já o fez?

Depois faz uma confusão lamentável entre "capitalismo" e "mercado". O mercado sempre existiu desde que existem seres humanos. Existiu em todos os sistemas económico-sociais que possa enumerar. As trocas comerciais são realizadas de forma livre desde sempre, o capitalismo é apenas o sistema que dá maior liberdade às mesmas...

Vocês e os seus amigos não estão contentes com o mercado? com a troca livre de bens e serviços? fácil.. juntem-se todos... comprem uma quintinha em Trás-os-Montes e sejam auto-suficientes.. Caso queiram ter um PC, uma ligação à internet, um carro, apartamento, tv cabo, roupa, etc etc, têm de produzir como os outros...têm de TROCAR os vossos serviços pelos dos outros. Sendo o valor dessa troca definido pela mais democrática, e lógica, das leis.. a da procura e da oferta... quer fazer apenas aquilo que você valoriza? Isso é ser egocêntrico…

O mundo não é perfeito, assim como não o é o mercado, mas o mercado é amoral.. quem pratica actos menos "éticos" são as pessoas, mas isso não és justificação para se ser contra o mercado ou o mercantilismo. Também existem actos menos éticos nas relações amorosas, ou de amizade, ou de outras relações inter-pessoais, que prejudicam terceiros... são eles motivo para se cair em cima do Amor ou da Amizade?

Finalizando, o Empreendedorismo é o gatilho da criação de riqueza... não menospreze a sua tão grande importância.. e já agora.. visite o meu site, que eu empreendi  www.maisindustria.pt

O perseverante disse...

Não concordo com o que disseste a respeito do ensino. Creio ser preferível ouvir este discurso do que a alienação pura e simples. O que os estudantes vão fazer, continuar a ir em festas e bares de segunda a segunda? É porque é só isso que algumas universidades tem publicitado em seus muros. Além disso, acho correcto tua avaliação, porém não apontaste nada para mudar tal situação. Sei que o propósito no entanto, era de fazer reflectir e nisto foste muito bem.

abre a pestana disse...

hoje no Público gostei de ler o santana castilho.
e sim , crescer por crescer é a lógica das células cancerígenas.
é o bruno silva uma espécie de substância cancerigena , tipo pesticida ou óleo queimado.
fazer da economia o centro da vida não lembra a ninguém com 3 dedos de testa sem manipular pelos donos do mundo ( e os seus lacaios da política ) e arredores

Bruno Silva disse...

A economia pode não ser o centro da vida, mas é certamente o centro deste blog, portanto, se esse é o seu único argumento.. tenho a dizer que é descabido..

Natália Santos disse...

Esqueçamos quem está a dar a receita do empreendedorismo,e concentremo-nos neste - é mau, porquê ? Só se pode trabalhar por conta de outrem? Esses que dão emprego não são empreendededores ?
Por um lado odeiam-se os patrões, mas só é correcto se se for assalariado ?

Natália Santos disse...

Somos como peixes num aquário, uns são de esquerda,outros de extrema esquerda, outros de direita, outros nem assim nem assado, mas há quem nos queira convencer que consegue respirar fora do aquário. Porque é que os economistas de esquerda também não dizem a verdade? Eu olho e vejo, não ao nível das palavras e das teorias, mas ao nível dos actos, como a esquerda parece respirar bem dentro do aquário do qual não sai!

LPedroMachado disse...

Quem tem mente de proletário não consegue perceber o capitalismo, por mais cursos universitários que tire.

nina disse...

Simples Natália , os economistas , sejam de esquerda ou direita , ainda não conseguiram sair do mito do crescimento e ainda não perceberam que todas as teorias anteriores assentavam em sociedades com guerras periódicas que destruiam tudo.
Pense lá , por exemplo , no sector de construção civil ( materiais de construção incluídos) europeu a par da demografia : acha que se vão continuar a construir casas?