sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Das casas e do habitar


«Entre as muitas crises que no nosso tempo se sucedem e se atropelam como a multidão em hora de maior afluência — crises para todos os gostos e de grande utilidade na arte da governação, também chamada “governança” — há uma pesada como o betão: a crise da habitação (a rima que aqui ocorre é fraca, mas justa). É uma crise transnacional, em expansão, atravessa fronteiras e oceanos. E alastra em sentido inverso ao da demografia: a população diminui, mas a falta de casas aumenta.
A especulação imobiliária e a concentração dos habitantes nos grandes centros urbanos são as duas principais causas geralmente apontadas. Mas devemos pôr a hipótese de que para tal contradição contribui uma outra causa menos calculável por governos, urbanistas e economistas: a tendência contemporânea para uma hegemónica cultura do single. Cada indivíduo, e já não a família, procura o seu espaço vital mínimo
».

Excerto do artigo de António Guerreiro no Público de hoje, que vale a pena ler na íntegra. Mobilizando um conjunto de referências importantes na história da arquitetura, Guerreiro junta - ao efeito decisivo da especulação e, em segunda linha, da concentração urbana - a questão da «individualização» do habitar. Não deixando ainda de aludir, oportunamente, ao retrocesso que a nova lei dos solos representa, e que é ainda mais absurdo neste contexto, ao nível dos compromissos com a sua não impermeabilização.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

A saúde é uma causa pública


Depois do estudo sobre fiscalidade, divulgado em novembro de 2023, e do recente relatório sobre a crise de habitação (novembro de 2024), a Causa Pública divulgou recentemente o estudo «Saúde em Portugal - Opções para uma causa pública», coordenado por Joana Mira Godinho, João Durão Carvalho, João Oliveira e Manuela Silva.

Reconhecendo os desafios decorrentes do «envelhecimento da população, impacto da pandemia e da Troika, evolução tecnológica, suborçamentação do SNS e erosão de recursos humanos», bem como o «crescente investimento privado e uma narrativa de degradação do SNS que incentiva a privatização», os autores assumem a defesa do «fortalecimento do SNS», rejeitando «a sua redução a um modelo minimalista e assistencialista». O estudo apresenta recomendações em 15 domínios, incluindo as questões associadas ao «financiamento, valorização dos profissionais, sustentabilidade e organização dos cuidados».

Simplicidade

O capitalismo sem freios e contrapesos torna o marxismo mais simples no melhor quadro de análise disponível: a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, por exemplo. Os mecanismos são claros. Tem a palavra Jeff Bezos para elucidar quem ainda tenha dúvidas: 


Na ideologia neoliberal dominante, o “mercado livre”, mencionado por este oligarca liberticida, é simplesmente a configuração regulatória que dê mais liberdade, entendida como poder, a quem já é mais forte à partida, aumentando ainda mais a vulnerabilidade dos restantes.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Uma «indústria» para alimentar


De acordo com o Jornal de Notícias, 2024 não foi só o ano «mais rentável da história para as imobiliárias que atuam em Portugal», como o recorde foi alcançado graças às «vendas a estrangeiros». Citando dados da APEMI, foram transacionados cerca de 150 mil imóveis entre janeiro e dezembro, com receitas a rondar os 30 mil M€ (subida de 20% face a 2023). No caso da Quintela + Penalva | Knight Frank, uma das imobiliárias dedicadas ao segmento de luxo consultada pelo JN, a fatia de clientes internacionais «representou 60% da faturação».

Com o valor médio de vendas a oscilar entre 165 mil€ e 1.200 mil€, constata-se uma diferença clara entre a oferta de luxo e a oferta transversal. O valor mais elevado nas imobiliárias auscultadas pelo JN que não se dedicam ao segmento premium ronda os 207 mil€, sendo de 800 mil€ o mais baixo entre as imobiliárias de luxo. O efeito de arrastamento que estas diferenças estabelecem não é, evidentemente, negligenciável. De outro modo, e entre outros fatores, seria difícil compreender que o desfasamento entre rendimentos e preços não resultasse numa descida de valores.

Temos pois, uma vez mais, o imobiliário na sua bolha, indiferente à dificuldade das famílias em aceder a uma habitação compatível com os seus rendimentos, com as empresas do setor confiantes de que «o mercado imobiliário de luxo continue a valorizar-se em 2025, impulsionado pela procura», como referiu um dos CEO ouvidos pelo JN, estimando a vice-presidente da APEMI que 2025 será «um ano [ainda] melhor do que 2024».

Ou seja, não só não faltará procura com alto poder aquisitivo, como os preços (e lucros) se manterão elevados, a bem do setor. E, no horizonte, com as alterações à «lei dos solos» a abrir portas à conversão de rústicos em urbanos, a alimentação deste pipeline está ainda mais assegurada em termos de oferta. Percebem porque é insistem em dizer, a todo o momento, que o problema se resume a uma simples «falta de casas»?

Adenda: Absolutamente insuspeito, pois foi um dos grandes defensores das alterações ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), Isaltino Morais veio recentemente assinalar o óbvio: «a desafetação, a alteração de terreno rústico em urbano, não vai resolver o problema do preço da habitação. Tirem o cavalinho da chuva, não vai. Se não se fizer alguma coisa, mais dois, três, quatro, cinco anos, a Área Metropolitana de Lisboa fica inundada de barracas outra vez. As famílias pobres, a classe média empobrecida, não encontra no mercado casas a preços compatíveis».

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Triste fim


Outrora, nos anos fundadores da Segunda Internacional, tinha por objectivo o derrube do capitalismo. Depois tentou realizar reformas parciais, concebidas como passos graduais para o socialismo. Finalmente, passou ser favorável ao Estado-Providência e ao pleno emprego no quadro do capitalismo. Se agora aceita a destruição do primeiro e o abandono do segundo, em que tipo de movimento se irá a social-democracia tornar? 

Em 1994, o historiador Perry Anderson colocava uma questão a que sabemos responder cada vez melhor, ainda para mais com o recente resultado na Alemanha: a social-democracia aceitou o consenso neoliberal e tornou-se crescentemente irrelevante nesse longo processo. 

Da redução dos direitos laborais na viragem do milénio, e correlativo aumento dos direitos patronais, a decisões geopolíticas que aceleram a desindustrialização alemã com a guerra, passando pela constitucionalização de uma visão pré-keynesiana das finanças, quebrando o investimento público, a social-democracia abandonou as classes populares, deixando-as à mercê da insegurança social e da extrema-direita. 

Agora, vai entregar-se a uma direita cada vez mais extremada, para quem as crises do capitalismo se resolvem com cada vez mais capitalismo, ou seja, com cada vez mais desigualdades e armas e crises, projeto que a social-democracia acaba a partilhar por toda uma UE que a destruiu como força de reforma progressista na economia política. Triste fim.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Assumi-vos

A The Economist tem a virtude de ser brutalmente clara no seu imperialismo liberal: para se rearmar “a Europa tem de cortar no bem-estar”. Os novos renegados, que defendem, à esquerda, a corrida armamentista, devem assumir toda a brutalidade do seu programa.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Livres de verdes com bombas


Sem surpresas, Rui Tavares converge plenamente com os verdes com bombas alemães, chegando ao ponto de defender as virtudes da europeização das armas nucleares francesas para “mudar o jogo”. Autoproclamados ecologistas defendem agora armas de destruição maciça. Há toda uma história de luta pela paz e pelo desarmamento que é espezinhada.

Enfim, a esquerda otanizada sente-se agora traída pelos EUA, que trata como se fossem aliados. Ameaça ridiculamente com a Comunidade Europeia de Defesa, enterrada por comunistas e gaulistas franceses na década de 1950. Entretanto, faz a vontade a Trump e defende o investimento no desperdício militarista. 

A nova austeridade europeísta seria inevitável se a luta dos trabalhadores e a luta pela paz não se intersectassem por todo o lado, ao mesmo tempo.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Ofuscar, revelar


Nuno Severiano Teixeira é historiador e garante-nos no Público: “Desde a Segunda Guerra que os EUA promoveram um sistema internacional assente no livre comércio, na democracia liberal e numa rede de instituições multilaterais que asseguraram a cooperação internacional, a segurança e a paz.” Em resposta, deixo-vos apenas uma lista de intervenções dos EUA, tantas vezes brutalmente violentas, ajudando a distinguir a ideologia da paz liberal da realidade imperialista liberal.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

A cada crise, a tentação do federalismo europeu

Após meio século de transformações institucionais profundas, a resposta que muitos anseiam continua a ser a mesma: ainda maior transferência de poder para Bruxelas. Como se as alterações marginais que ainda se possam introduzir conseguissem fazer o que décadas de integração política, económica e financeira não fizeram.

Entretanto, a pulsão federalizadora continua sem responder às falhas na arquitectura económica da UE, que têm vindo a penalizar a coesão política dentro de cada país europeu e entre Estados. É reconhecido que as regras orçamentais da UE dificultam a resposta às crises económicas e conduzem ao sub-investimento público em todo o continente.

A crise da zona euro de 2010-2012 tornou claro o problema de submeter às mesmas regras economias nacionais com características tão distintas. Sobre aquele viés recessivo, ou a necessidade de reforçar a convergência entre capacidades produtivas de diferentes países e regiões, pouco ou nada nos dizem as soluções agora propostas.

A sua preocupação é alinhar cada vez mais as acções e recursos de cada Estado com as prioridades europeias, identificadas a partir das capitais dos países mais poderosos. Já seria altura de assumirmos que a UE não é nem nunca será o que os EUA ou a China são: nações de enormes dimensões, com populações razoavelmente homogéneas, ligadas pela mesma língua, história e instituições comuns de longa data. A tentativa de competir directamente com aquelas potências, forçando uma unidade política e cultural que não existe, seria a receita para o desastre.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

Ligações decentes


Está em curso há muito uma maciça operação de propaganda europeísta em que todos os desenvolvimentos da situação internacional, mesmo aqueles que agora apontam para um potencial desanuviamento, são usados para justificar um aumento do desperdício militarista, implicando naturalmente um sacríficio dos Estados sociais. 

Se para estes últimos vinga o argumento do “não há dinheiro”, já o fomento de complexos militares-industriais favoráveis à guerra é pretexto brutalmente revelador para exceções às regras austeritárias europeias. Há sempre dinheiro para o que os dominantes querem fazer: o constrangimento não é financeiro, mas sim de recursos reais e de poder para os mobilizar. 

Realmente, as forças políticas decentes têm apenas de sublinhar as ligações constitucionais democráticas entre a defesa da paz internacional, incluindo pelo fim dos blocos político-militares, e a defesa do nosso Estado social e democrático.

Quarta-feira, em Lisboa: «Habitação e Liberdade», de Helena Roseta


«A habitação era encarada sobretudo como um problema de mercado, que as pessoas tinham que resolver por herança, por compra ou por aluguer. Houve sempre muita legislação sobre rendas de casa, sobre juros dos empréstimos para habitação, mas muito pouca sobre a necessidade de o Estado fazer mais casas. (...) [Com a Lei de Bases] quisemos deixar claro que a habitação não é só um problema de mercado, é um direito. E é um direito que tem uma função social importante para garantir a vida em comunidade. Por isso insistimos em incluir na lei a chamada "função social da habitação". Aí é que foi o cabo dos trabalhos! Os partidos à direita diziam que não há nenhuma função social da habitação, que a função social cabe ao Estado e que as pessoas pagam impostos para que o Estado faça casas para quem não as pode pagar. E nós respondemos que todas as casas são feitas para serem habitadas, que a função social da habitação é precisamente ser habitada e não servir como mero produto de investimento. Foi este o ponto que nos dividiu e provavelmente nos continua a dividir».

Da entrevista a Helena Roseta, conduzida por Sara Nunes, cuja transcrição integra o livro «Habitação & Liberdade», recentemente editado pela Caleidoscópio e que será apresentado na próxima quarta-feira, dia 19, a partir das 17h30. Participarei na mesa redonda de apresentação da obra, que conta com a presença da autora e de Fernando Nunes da Silva, com moderação de Sílvia Jorge. A sessão tem lugar no Museu DECivil (Instituto Superior Técnico), em Lisboa. Apareçam.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

O mesmo padrão


«Netanyahu e o presidente Trump dizem ao Hamas e aos palestinianos em geral que recuperam todos os prisioneiros e reativam a guerra. Netanyahu diz que não porá fim à guerra. Os palestinianos percebem que se entregarem todos os reféns israelitas ou prisioneiros, o próximo passo será outra guerra. O crime de guerra da limpeza étnica de Gaza. E agora, tal como ele disse na conferência de imprensa com o rei da Jordânia, é a anexação da Cisjordânia por Israel. Terceiro, declarou a sua intenção de perpetrar o roubo de Gaza, de roubar Gaza ao seu povo e usá-la para os seus planos de construção.
Sei que muitos políticos não se atrevem a dizer a verdade de forma clara e aberta, mas eu tenho que fazer isso. Porque do que estamos aqui a falar são três crimes de guerra ao mesmo tempo. Na minha opinião, qualquer Estado, qualquer governo, que fale sobre a solução dos dois Estados, sem exigirem o fim da ocupação israelita e a remoção total de todos os colonatos ilegais de Israel, para além do reconhecimento da Palestina – se não fizerem essas três coisas, então apenas fomentam a hipocrisia.
Como podemos aceitar ser apagados etnicamente de novo, tal como aconteceu em 1948? A questão aqui seria, não porque é que os palestinianos resistem, mas sim porque é que não resistem. Tal como muitos judeus fazem essa pergunta. Porque é que durante o Holocausto, alguns judeus não resistiram? Dizem que deviam ter resistido. Apliquem o mesmo padrão ao povo palestiniano
».

Da entrevista a Mustafa Barghouti, líder da Iniciativa Nacional Palestiniana, pelo enviado especial da RTP ao Médio Oriente, José Manuel Rosendo.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

E o enorme elefante no meio da sala?

1. Em editorial no Público, Andreia Sanches criticou a recente recomendação do Conselho Nacional de Educação (CNE), no sentido de evitar «quaisquer processos conducentes à produção de qualquer espécie de rankings das escolas» com os resultados das novas provas de aferição. Por si só, como lembra o CNE, a circunstância de estas provas (tal como as anteriores) apenas visarem «contribuir para a melhoria das aprendizagens dos alunos e para a regulação do processo pedagógico», deveria bastar, de facto, para reprimir a tentação de viabilizar rankings.

2. A diretora-adjunta do Público concluiu, no entanto, que no CNE «vinga a ideia de que não importa ter comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas», sugerindo assim, implicitamente, que o Ministério da Educação não altere o seu propósito de divulgar os resultado das provas de aferição, permitindo o «escrutínio público» através da comunicação social, à semelhança do que já acontece, desde 2001, com os rankings dos exames finais do básico e secundário (9º e 12º ano).

3. Andreia Sanches tem acompanhado, com conhecimento e argúcia, as questões da educação, conhecendo bem a fraude que são os rankings, desde logo por privilegiarem a mera ordenação dos resultados, secundarizando (ou simplesmente ignorando) a sua ponderação pelo perfil socioeconómicos dos alunos. Mesmo o Público, que é dos poucos a fazer regularmente esse exercício (ranking alternativo), não resiste a fazer parangomas de capa com os valores resultantes da simplista ordenação de médias.

4. Ora, quando se calibram os resultados obtidos com a informação de contexto (perfil socioeconómico dos alunos), a ordenação de partida transfigura-se. As escolas que alteram a sua posição inicial (ordenação das médias) em mais de 25 lugares (descendo ou subindo) representam cerca de 60% do total, sendo apenas 7% as que mantém a sua posição e que sobem ou descem até 3 posições. O que diz tudo, ou quase tudo, sobre a capacidade dos rankings para termos «comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas».


5. Mas mais grave ainda é a complacência da comunicação social, que continua a incluir as escolas privadas nos rankings, mesmo quando estas se recusam, reiteradamente, a fornecer dados sobre o perfil dos seus alunos (escolaridade dos pais e alunos com apoios sociais), impedindo qualquer leitura minimamente séria dos resultados que obtém e que as colocam no topo. Não, não é por acaso que Rodrigo Queiroz e Melo, diretor da Associação de Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEP), votou contra o parecer do CNE, por discordar «de forma veemente da inclusão de uma condenação do uso dos dados para elaborar rankings de escolas».

6. Em matéria de publicitação de resultados, no âmbito da avaliação externa, este é o enorme elefante que se encontra no meio da sala. E seria por isso conveniente que tanto o governo como a comunicação social assegurassem condições mínimas de equidade, exaustividade e comparabilidade de dados, antes de promover novos rankings. De modo a que, justamente, possamos «ter comunidades devidamente informadas sobre o que se passa nas suas escolas». Para enviesamentos fraudulentos - nomeadamente em termos de público e privado - já bem basta o que existe.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Dois gráficos, um genocídio

O gráfico da esquerda ilustra a história do crucial apoio militar norte-americano a Israel. O gráfico da direita, tirado de um estudo saído na Lancet, ilustra o genocídio perpetrado pelo colonialismo sionista em Gaza, através da catastrófica evolução da esperança de vida no território palestiniano. A ligação entre os dois é demasiado evidente.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Melhor aluno dos piores mestres


O país também terá de estar preparado para aumentar a sua despesa em defesa. Fazê-lo sem comprometer o Estado social é um dos desafios mais exigentes que o país vai ter do ponto de vista da gestão económica e da estabilidade financeira (...) Quando se fala em 3% do PIB afecto a despesas de defesa, face à realidade que o país tem hoje, estamos a falar de qualquer coisa como um reforço permanente de 4500 milhões de euros. Isto é mais de metade do que custa o SNS. 

Fernando Medina confirma em entrevista que tenta sempre ser o melhor aluno dos piores mestres, para adaptar o saudoso José Medeiros Ferreira

Não havia dinheiro para proteger e recuperar o poder de compra dos funcionários públicos, para tirar o investimento público socialmente útil dos níveis mais baixos da UE, mas já há dinheiro para o desperdício armamentista. É tudo o que a aparentemente atarantada, e sempre ultrapassada, elite da UE quiser. 

Da austeridade ao militarismo, vale tudo para ir erodindo o Estado social, de maneira aberta ou sonsa: “desafios”, diz, com o imenso topete do pensamento sempre único, num mundo cada vez mais diverso. 

Num mundo em desglobalização, é este quadro político-ideológico social-liberal anacrónico, agora a armar-se, que entrega o poder à direita assim cada vez mais extremada, de Portugal à Alemanha. 

Adenda. Naturalmente, apoia o nome de António Vitorino para Presidente da República, um dos facilitadores do bloco central dos interesses, o Marques Mendes do P sem S. Felizmente, há sempre alternativa.

Comuns


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Não é o tik-tok

A oferta política televisionada cria a sua própria procura política. Esta sempre foi a aposta dos capitalistas televisivos sem freios e contrapesos à altura. Quem não quer falar de capitalismo televisivo, não pode falar deste fascismo tão televisionado. Não, não é o tik-tok, de facto.

Amanhã, debate da Causa Pública, em Lisboa


A partir das 18h30, na livraria Almedina (Atrium Saldanha), a Causa Pública discute o regresso de Trump, com a participação de Ana Gomes, Pedro Ponte e Sousa e Viriato Soromenho Marques. Moderação a cargo de Daniel Oliveira. A entrada é livre, apareçam

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Previsível


Entre as medidas recentemente aprovadas pelo governo espanhol para responder de forma consequente à crise de habitação, consta o desincentivo à compra de casas por parte de estrangeiros não comunitários (foram cerca de 27 mil as adquiridas em 2023), agravando fiscalmente a aquisição até 100%.

De acordo com o Jornal Económico, que ouviu agentes do setor, é de prever que muitos estrangeiros passem a olhar para Portugal como alternativa ao travão espanhol à compra de casas, reorientando os seus investimentos para a parte ocidental da península e reforçando, assim, a procura externa que já existe (e o seu previsível aumento), amplificando o efeito de arrastamento dos preços (para cima) em que a mesma se traduz.

Dado que a atual crise de habitação resulta, precisamente, do surgimento de novas procuras (internas e externas), que encaram as casas como meros ativos de investimento, a medida no sentido certo que Espanha tomou constitui uma má notícia para Portugal. Contudo, como era também de prever, os «especialistas» do setor consideram que a decisão de Espanha tem um «efeito positivo», desejando que estes estrangeiros «queiram investir do lado de cá da fronteira».

Pouco importa, portanto, que esta pressão acrescida contribua para que os preços da habitação continuem a aumentar e a distanciar-se, ainda mais, dos rendimentos das famílias. O que é preciso é construir sem fim, por esses solos fora, para vender sem limites a uma procura que é potencialmente inesgotável. E continuar a insistir, com toda a lata imobiliária, que o problema se resume a uma mera falta de casas, a par da ideia de que não é o mercado de luxo «que rouba a habitação que faz falta aos portugueses», como defende Hugo Santos Ferreira. Pois não, claro que não

Adenda: Para lembrar este texto de Ricardo Paes Mamede no Público, a assinalar, oportunamente, que os impactos da crise de habitação vão muito para lá da questão do acesso em sentido estrito, atingindo a própria economia, a mobilidade social e os serviços públicos, sobretudo nos territórios onde a pressão é mais expressiva. E, também, a certeira metáfora a que recorreu nesse texto, sobre o efeito das novas procuras: «Num oásis do deserto onde as fontes de água secaram, o cantil de um viajante que por ali passa vale ouro. Se o número de viajantes aumentar de um para cinco, mas os habitantes do oásis forem 100, o valor do cantil até pode baixar um pouco, mas a grande maioria da população continuará sem água».

Um jornal contra a militarização em curso


Na encruzilhada entre Estado social e militarização, a escolha da segunda já encerra a extrema-direitização dos partidos neoliberais e sociais-liberais, como aliás vai sendo visível na contaminação de discursos e práticas entre todos. Quebram-se cordões sanitários, aprovam-se as mesmas medidas, usam-se iguais expressões, apregoam-se idênticas inevitabilidades. Mesmo que entre murros na mesa e algumas discórdias, que a comunicação social aproveita e amplifica. Concretizadas as derivas autoritárias, apressar-se-ão a culpar os povos por si levados ao desespero da fome e da guerra. Possivelmente, mesmo então, os media evitarão refletir sobre como infantilizaram a cidadania e alimentaram monstros com a sua aversão ao complexo, a sua ignorância da história, a sua redução dos interesses geopolíticos aos bons e aos maus, a sua eliminação do espaço mediático dos pontos de vista que questionavam as oligarquias e ortodoxias dominantes.

Sandra Monteiro, Estado social ou militarização, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Fevereiro de 2025. 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O trabalho é a política


A política começa e acaba nos direitos do trabalho, incluindo a possibilidade de convergência política. A herança da troika persiste. A inflação dos direitos patronais é a deflação dos direitos laborais.


A unidade contra o capitalismo neoliberal e as suas cada vez mais claras tendências policiais e militaristas deve ser primeiramente pensada em termos da substância programática, capaz de unir amplas forças sociais. Estas forças, por sua vez, estão primeiramente no mundo do trabalho, até porque a desdemocratização em curso começa e acaba nos locais onde se cria tudo o que tem valor. Sem movimento dos trabalhadores organizado e forte, a democracia soçobra, até porque o Estado social soçobra.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Obrigado, Richard Nelson

Uma das características da Economia convencional contemporânea é a tendência para ignorar a generalidade dos contributos científicos desenvolvidos a partir de perspectivas teóricas e metodológicas distintas da abordagem dominante. 

Um exemplo disto são os contributos cruciais de Richard Nelson para a teoria do crescimento económico, para a análise dos sistemas de inovação e para os processos de convergência entre países com níveis de desenvolvimento distintos. 

Não vale a pena perguntarem à generalidade dos economistas académicos de quem se trata: não saberão quem foi ou o que escreveu este economista que estudou e ensinou nas universidades de Yale, MIT e Columbia, trabalhou na influente RAND Corporation, foi conselheiro económico da Administração Kennedy, e esteve no centro de uma miríade iniciativas académicas de referência ao longo das últimas décadas. 

Entre muitos outros trabalhos, o livro “An Evolutionary Theory of Economic Change”, que publicou em 1982 em co-autoria com Sidney Winter, é uma referência indispensável para as abordagens evolucionistas e pós-schumpeterianas, e para todos aqueles que levam a sério a noção de que as economias são acima de tudo caracterizadas pela transformação permanente – e não por uma ideia abstracta de equilíbrio. 

Richard Nelson faleceu há dias (a 28 de Janeiro) com 94 anos. Deixa-nos um trabalho académico notável e as memórias de um ser humano generoso, afável e brilhante, como há poucos.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Oligarquia


Gabriel Zucman atualizou a sua estimativa da riqueza dos EUA detida pelos 19 norte-americanos mais ricos: 3,1 biliões de dólares (milhão de milhão), em 2024. 

A evolução percentual é toda uma história da redistribuição de baixo para cima operada pelo neoliberalismo: enfraquecimento dos sindicatos, redução da progressividade fiscal, favorecimento da globalização, com as maiores possibilidades de arbitragem laboral e fiscal associadas, etc. 

Se no seu discurso de despedida Eisenhower denunciou o complexo militar-industrial para o qual tinha contribuído, Biden denunciou a oligarquia que reforçou.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Tendências desglobalizadoras


Se o comércio dito livre é o protecionismo dos países que se sentem relativamente fortes, o protecionismo é geralmente o comércio libertado pelos que se sentem relativamente fracos. 

As fortes tendências protecionistas que vêm dos EUA confirmam que este país sempre geriu as suas relações comerciais, e as outras, em função de avaliações naturalmente políticas de força e de fraqueza económicas. 

Creio que isto encerra uma lição para os que, incluindo na social-democracia esvaziada, diziam que a globalização seria tão natural como as estações. Nada é natural na globalização ou na desglobalização.

A União Europeia, cada vez mais enfeudada aos EUA e há muito liderada por uma economia alemã que sempre fez dos superávites comerciais modo de vida, foi construída com base em hipóteses precárias sobre a necessidade de tornar a fronteira política cada dia mais irrelevante do ponto de vista económico. Estas hipóteses não servem a democracia, alimentando a extrema-direita.