sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Uma alternativa ao "normal verde"

 
 
Julho de 2021 foi o segundo mês com temperaturas mais elevadas no continente europeu desde que se fazem medições (Público, 31 Agosto). Sabemos que o uso de energias de origem fóssil produz gases com efeito de estufa, de que resultou um continuado aumento da temperatura da Terra. Quando for ultrapassado o aumento de 1,5 graus Celsius relativamente à temperatura do início da era industrial, estaremos perto de um limiar de grande risco. Para além de mais 2 graus, podem ocorrer alterações no clima que tornem muito difícil a vida numa parte importante da Terra. As migrações em grande escala tornar-se-iam inevitáveis.

Contudo, as energias fósseis só são responsáveis por 70% da emissão de gases com efeito de estufa. Há 30% de emissões com outras causas (destruição da floresta, degradação dos solos, gás metano produzido pela pecuária, produção de cimento, aço, plásticos, aterros de lixo, mineração de metais raros ...) e este conjunto variado de actividades tem vindo a crescer em importância. Ou seja, o aquecimento da Terra não será travado apenas com “energias verdes” se estas substituírem as fósseis mas forem usadas para reproduzir os modelos de produção e consumo do actual sistema socioeconómico, o capitalismo. Substituir os automóveis movidos a gasolina e gasóleo por outros tantos automóveis movidos a baterias de lítio, e continuar a aumentar a sua produção em nome da necessidade de manter o crescimento económico, isso não irá travar as alterações climáticas, pelo contrário. Na verdade, a retórica do “crescimento verde” não tem qualquer sustentação científica pois não existe evidência empírica que aponte para a possibilidade de um permanente crescimento económico global que não produza crescimento das emissões com efeito de estufa (ver mais aqui).

Esta trajectória de desastre não será evitada – os mais ricos julgam que podem salvar-se virando as costas ao resto da sociedade –, se pensarmos que a solução está na mudança individual, no consumo “consciente”, na separação do lixo doméstico para reciclagem, e na produção de cada vez mais do mesmo a partir das “tecnologias verdes”. Para mudar este sistema social-económico-cultural-político (o capitalismo) que destrói as condições de vida na Terra, que permite a acumulação obscena de rendimento, património e poder por uma minoria, que usa a hegemonia cultural e política para instilar uma ideologia promotora de individualismo hedonista e competição, culpabilizando os desempregados e o precariado (“incompetentes e preguiçosos”) pela sua sorte, precisamos de organizar uma luta em várias frentes e diferentes escalas. Precisamos de articular lutas sociais, ambientais, de defesa de minorias e de aprofundamento da democracia (ver mais aqui). Precisamos de movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos que se oponham ao financiamento dos projectos das indústrias do petróleo e do gás, que contestem um comércio global poluidor e destruidor do desenvolvimento local, que proponham alternativas ao turismo massificado e que exijam a proibição das actividades predadoras da biodiversidade e transmissoras de novos vírus. 

Se, à medida que a vacinação avança, ouvir falar na televisão de que estamos a voltar à normalidade, é natural que sinta que o pior já passou. Mas pode crer, esse discurso é muito perigoso (ver mais aqui). Ele significa que as elites não querem entender o que se passou na Europa neste Verão. Basta-lhes voltar a um “normal” com “tecnologias verdes” e “transição digital”, o que sugere que se está a combater as alterações climáticas, a criar um futuro próspero e, obviamente, a planear obter mais lucros com a mesma ou maior desigualdade ... pondo em causa a vida da maioria da população. Em vez desse “normal”, precisamos de um programa de desenvolvimento que crie empregos sustentáveis e dignos, reforce o Estado social, e mude com justiça o que for preciso para que se preservem as condições de sobrevivência e dignidade de todos. Precisamos mesmo de organizar a alternativa a esse “normal verde”, começando aqui e já.

10 comentários:

Lowlander disse...

Caro Jorge Bateira,

Excelente.
Apenas alguns pequenos reparos que em nada alteram a substancia do que escreveu:
1 - A pecuaria e talvez a principal fonte antropogenica de metano se considerarmos fermentacao enterica + gestao de estrumes mas tem a producao de arroz como num renhido segundo lugar)
2 - As emissoes de metano sao importantes so na medida em que uma reducao drastica nos permitiria "ganhar tempo" no verdadeiro objectivo que e a reducao nas emissoes de CO2. Isto porque o metano tem um tempo de residencia na atmosfera de 12 anos ao passo que o CO2 tem um tempo de residencia ate 200 anos.
3 - As emissoes dos sectores de producao de aco e cimento, apesar da actual tecnologia de producao estar indissocialvelmente associada ao uso de carvao para introduzir o carbono necessario nas reaccoes quimicas tem tambem um importante componente de uso de energia primaria fossil.

José M. Sousa disse...

A diferença entre a temperatura subir 1.5 graus Celsius ou 2 graus Celsius:

https://skepticalscience.com/1-point-5-2-degrees-C.html

Anónimo disse...

É mais do que evidente que o que põe em risco as condições de vida na Terra é a desigualdade, a proposta dos "dominantes" é privar os restantes dos recursos que são de todos. O termo "ecologia" tem sido separado do seu mais importante elemento, o carácter social implícito e é por isso que se ouve tanta vacuidade dos "guardiões" do planeta. Um projecto global e colectivo é um projecto participativo e "horizontal", não existe salvar o planeta sem salvar as pessoas, isso é uma fraude, é conveniente mas é uma fraude. O exercício é simples substituam as palavras "alterações climáticas" pelo termo "desigualdade" e vamos todos gritar a urgência e a necessidade.

Jaime Santos disse...

A alternativa a esse normal verde chama-se decrescimento e vem com um preço, Jorge Bateira, o de ficarmos todos mais pobres. Assuma isso e eu considerarei que está a falar a sério. De outro modo, é só mais do mesmo, embrulhar a alternativa socialista na alternativa verde e a primeira sabemos que falhou cem vezes.

Não, as coisas não vão ficar melhores, com o capitalismo ou com aquilo que nos anda a tentar vender... Aliás, se alguma coisa caracterizou as experiências socialistas foi uma obsessão desenvolvimentista que só levou ao desastre ambiental... E um endividamento crescente só pode ser sustido com um crescimento contínuo e isso não é compatível com a preservação do planeta.

O progressismo de todas as cores esbarra com os limites do crescimento e não há nada a fazer em relação a isso...

Manuel Galvão disse...

É o Homem que faz a História, mas não sabe a História que faz...

per saecula saeculorum

Anónimo disse...

Jaime Santos, a alternativa verde não é desacreditar o socialismo, porque este incentiva o progresso e a educação, de modo que o ser humano se esclareça e entenda o melhor que deve fazer para salvar o planeta.
A alternativa, antes, é desacreditar o capitalismo, pois este conduz não só ao consumo excessivo, como também ao desperdício em alta escala.
O capitalismo é um inimigo que deve ser combatido em todo o planeta.

Hélder Rocha disse...

De facto, não podia estar mais de acordo com isso de os comportamentos individuais contarem pouco na questão climática, embora isso não nos dispense de continuar a reciclar e comprar uma bicilceta.

Além disso, também acho queos carros a baterias de lítio não podem ser solução. Se tivermos em conta o impacto ambiental da extração do lítio e o facto de ainda não ter sido apresentada grande solução para reciclar as baterias, temos de nos perguntar se é esse o caminho.

Lowlander disse...

@ Jaime Santos - 3 de setembro de 2021 às 18:18

O comentario do Jaime Santos e de uma pobreza intelectual, um impensamento, confrangedores. Tenho duvidas que este triste troll-residente tenha sequer lido o texto de Jorge Bateira antes de teclar (ou mais provavelmente: ter feito copy/paste apos ler o titulo e o autor) mais uma das suas, ignorantes, maniqueistas, pavlovianas, diatribes acerca da "experiencia socialista sovietica", copy/paste de um qualquer panfleto internautico.
A isto chama-se substituir ideias e pensamento proprio por slogans alheios. A colossal preguica intelectual de Jaime Santos tao proeminentemente demonstrada neste comentario so e talvez superada pelo topete (lata, em bom portugues) de como aqui se arroga de avaliar a producao intelectual de outros quando ele proprio se demite de pensar.

Compare-se o comentario em estilo refeicao-rapida-pronto-a-comer com este breve trecho de Jorge Bateira:

"Na verdade, a retórica do “crescimento verde” não tem qualquer sustentação científica pois não existe evidência empírica que aponte para a possibilidade de um permanente crescimento económico global que não produza crescimento das emissões com efeito de estufa (ver mais aqui)."

Convido outros leitores a tirar as suas proprias conclusoes.

José M. Sousa disse...

Em relação ao Jaime Santos, sugiro o seguinte:

«The richest one percent of the world’s population are responsible for more than twice as much carbon pollution as the 3.1 billion people who made up the poorest half of humanity during a critical 25-year period of unprecedented emissions growth.» in https://www.oxfam.org/en/press-releases/carbon-emissions-richest-1-percent-more-double-emissions-poorest-half-humanity

A maior parte das pessoas teria uma maior qualidade de vida (o que não é empobrecer, muito pelo contrário), se fossem implementadas muitas das medidas de combate às alterações climáticas. Isto porque, muitas dessas medidas valorizam os bens públicos, retirando da esfera do mercado, a provisão de muitos bens e serviços essenciais a uma vida com qualidade. Um exemplo, são os transportes públicos vs o automóvel.

José M. Sousa disse...

Recomendo este artigo ao Jaime Santos

One weird trick to fix climate change: Close the offshore wealth loophole

https://www.vox.com/2021/3/5/22310179/carbon-tax-climate-change-wealth-tax

e este https://skepticalscience.com/show-me-the-money-a-new-slogan-for-the-climate-movement.html com um comentário meu no final.