«A grande calamidade foi precedida por uma época na qual se perdeu todo o sentido das proporções e se banalizou o discurso de que os direitos sociais é que eram o grande problema do país porque estavam a ser implementados» (Rui Tavares)No Público de ontem Rui Tavares escreve um texto essencial para os dias que correm. Nele se conta «uma história exemplar sobre quando se perde o sentido das proporções», recomendando-se vivamente a sua leitura (transcrição na íntegra no final do post). É claro que é um texto muito útil para enquadrar os oportunismos calculistas e as equivalências absurdas com que muitos têm procurado disfarçar, e relativizar, a gravidade do Acordo entre o PSD e o Chega, a propósito dos Açores. Mas é também um texto sobre a importância da História e da memória, permitindo perceber que as conquistas sociais (como o horário das 40 horas e o direito a férias) não caíram do céu.
Uma história sobre a perda do sentido das proporções
Rui Tavares (Público, 16 novembro 2020)
Quando os nazis invadiram a França, um amigo deu um conselho ao ex-primeiro-ministro Léon Blum: fuja e exile-se. “Eles atacarão os socialistas, eles degradarão os judeus, e você é socialista, é judeu e, mais que isso: você é você.”
Quem era Léon Blum? O primeiro chefe de Governo socialista de França, líder da Frente Popular, coligação de esquerda que governou aquele país entre 1936 e 1938, hoje conhecida por ter limitado a semana de trabalho às 40 horas semanais e garantido aos trabalhadores o direito a 15 dias de férias pagas, sou seja, “dar um pouco de bem-estar e de tranquilidade àqueles que através do seu trabalho criam a verdadeira riqueza”, como disse no seu discurso de tomada de posse.
Ao abrir-se o debate parlamentar nessa mesma ocasião, tomou a palavra um deputado chamado Xavier Vallat, que disse assim: “Senhores, há uma razão pela qual não posso votar no Governo do sr. Blum: é o próprio sr. Blum. Pela primeira vez, este valho país galo-romano será governado por um judeu. Se o nosso antigo colega Georges Weill estivesse aqui, não deixaria de me acusar, mais uma vez, de antissemitismo, ao estilo de Hitler. Mas, mais uma vez, ele estaria errado… Digo, porque penso assim – e tenho essa originalidade que por vezes me faz assumir a tarefa ingrata de dizer em voz alta o que todos pensam em voz baixa -, que para governar esta nação camponesa que é a França, é melhor ter alguém cujas origens, por mais modestas que sejam, se percam nas entranhas do nosso solo.”
Xavier Vallat, um veterano que perdera uma perna em combate e usava uma pala no olho direito, era um orador temível, mas não era levado a sério. Há anos que insistia que os judeus não se queriam assimilar em França e que só poderiam “ser tolerados em doses homeopáticas”. Mas era tido por um palhaço e um fanfarrão e, como o próprio Vallat dizia, não era nenhum Hitler; apenas alguém que dizia “em voz alta o que os outros pensam em voz baixa”…
Léon Blum não fugiu e não se exilou. E, por isso, quando os nazis chegaram, Léon Blum foi preso e metido em tribunal pelo Governo do antes respeitável marechal Pétain – no qual Xavier Vallat era agora ministro.
Mas Léon Blum não foi preso, nem condenado por ser judeu. Isso viria mais tarde. Os “crimes” de que foi acusado foi ter instituído a semana das 40 horas e as férias pagas (além de ter permitido a atividade sindical, a propaganda dos trabalhadores e ter nacionalizado a indústria militar). Esses cinco “crimes” tinham duas vantagens: eram impossíveis de negar e tinham sido estabelecidos retroativamente, no quadro de leis feitas à medida. Mas o mais importante é isto: os direitos sociais conquistados durante o Governo da Frente Popular só puderam vir a ser considerados crimes porque foram precedidos de anos de intensa retórica política, defendendo a tese de que a semana das 40 horas e os 15 dias de férias tinham “enfraquecido a França” e levado à sua ruína.
Por outro lado, a razão por que Léon Blum foi atacado com tais argumentos durante anos, ao passo que Xavier Vallat pôde ir fazendo descansado os seus discursos antissemitas, era ainda outra: é que a semana das 40 horas e os 15 dias de férias eram agora uma realidade, ao passo que os delírios de Vallat, acreditava-se, não teriam a mínima hipótese de alguma vez virem a ser implementados.
O julgamento foi um fiasco porque Pétain cometeu um erro: deixou Léon Blum defender-se em tribunal. Os argumentos da acusação foram rebatidos um a um com a sua lógica implacável e a recordação dos factos de que tinha sido o próprio atual chefe de Estado, o marechal Pétain, enquanto fora ministro da Defesa, a cortar o orçamento da Defesa em 20%. A imprensa internacional noticiou e até Hitler se irritou com a vergonha, mandando o seu embaixador em França interromper a fantochada e cortar a direito. Léon Blum foi simplesmente deportado para a Alemanha, onde escapou a 150 metros da morte, distância que separava a casa-prisão do campo de extermínio de Buchenwald. Quanto a Xavier Vallat, o antissemita que antes não era levado a sério, foi substituído por outro antissemita mais eficaz em 1942, e veio a morrer tranquilamente em 1972, sobrevivendo a Léon Blum em mais de 20 anos.
Esta é a parte mais conhecida da história.
A menos conhecida é a que precisa ser recordada: a de que a grande calamidade foi precedida por uma época na qual se perdeu todo o sentido das proporções e se banalizou o discurso de que os direitos sociais é que eram o grande problema do país porque estavam a ser implementados, ao passo que as arengas de um antissemita como Xavier Vallat eram consideradas menos ameaçadoras porque o homem era ridículo e nada daquilo tinha a menor hipótese de vir a acontecer.
7 comentários:
Do Céu caiu o horário das 35 horas!
Quanto às 40 horas em 1938, só me ocorre pensar que decorridos mais de 80 anos e extraordinários avanços tecnológicos o dia continua com 24 horas e 3 turnos.
O princípio da penosidade do trabalho, mantém acérrimos cultores, apesar da ameaça de frustrantes ócios ser crescente.
Voltando às proporções, entre trabalho e ócio, benefícios e limites ao consumo, a determinação de um modelo economicamente exequível, saudável, ecológico e sustentável, anda por aí aos baldões de lutas do passado e ambições de sempre, ocupando a displicente imaginação da engenharia social.
Percebe-se que o patronato reles queira continuar a chupar o sangue da manada
Aos baldoes e a sonhar com os Chegas e os vivas a Salazar
Subscrevo. Uma boa critica ao extremo-centro que pretende dominar a opiniao publicada. Mas atencao que Rui Tavares e tambem ele participante activo desse extremo-centro.
"Mas Léon Blum não foi preso, nem condenado por ser judeu. Isso viria mais tarde. Os “crimes” de que foi acusado foi ter instituído a semana das 40 horas e as férias pagas "
Ainda hoje o patronato reles não perdoa este avanço civilizacional
É ver jose a proferir com esta espécie de rancor que lhe sai das entranhas:
"Do Céu caiu o horário das 35 horas!"
Este tipo tem a qualidade intrinseca dum Xavier Vallat. Embora não passe dum escrivinhador muito pouco temível
O dia continua com as mesmas 24 horas. Mas foram precisas lutas titânicas para alcançar a jornada de trabalho de 8 horas
Mas ao contrário do que a cabotinice quer fazer crer, cristalizando turnos de 8 horas como se de mandamento divino ou decreto salazarista se tratasse, a reivindicação pelas 40 horas vem de longe
Fez em 2017 duzentos anos uma das reivindicações históricas do movimento operário: a semana de trabalho de 40 horas. Dois séculos passados, tanto a semana como a jornada de trabalho poderiam ser muito inferiores ao que foi então reivindicado. Mas o que se verifica não é a redução mas o aumento. O capitalismo vai-se apossando não apenas das horas de trabalho, mas de todas as horas da vida das pessoas.
Em 1817, Robert Owen, um manufactureiro galês de sucesso, activista dos direitos do trabalho e fundador da comunidade utopista de New Harmony, confiava na divisão do dia em partes iguais de 8 horas – “Oito horas de trabalho, oito horas de recreação, oito horas de descanso.”
Foi muito diferente a implementação das 40 horas semanais de trabalho nos vários países.
Foi a URSS que foi o primeiro país a instaurar a jornada de trabalho das oito horas «depois de 1917», sendo seguido na "Finlândia, Noruega, Alemanha, Itália, Polónia, frança, Espanha, Checoslováquia, Áustria, Holanda, Portugal e Suécia"
Em 1930, o economista John Maynard Keynes predisse que no prazo de um século o incremento na produtividade significaria que todos estaríamos a trabalhar 15 horas semanais. Ao que parece, a sua predição não irá verificar-se.
O que se continua a verificar é a engenharia social com que nos querem continuar a impingir tretas sobre a ameaça de frustrantes ócios ser crescente ( um patronato rasca este que investe assim contra o direito ao lazer ou sobre a não penosidade do trabalho (reduzido a um princípio de acérrimos cultores do dito( um patronato rasca a investir assim na degradação das condições laborais)
Ao contrário do que se quer fazer crer,as lutas do passado são mesmo para serem conhecidas.
Vale a pena lembrar a extraordinária conquista vitoriosa do horário das 8 horas para o campo, em Maio de 1962. Em Portugal.Não foi oferecida pelo poder dominante mas sim conquistada pela luta corajosa, combativa e organizada do proletariado agrícola do Sul.
A conquista das 8 horas representou uma extraordinária melhoria das condições de vida e de trabalho de centenas de milhar de trabalhadores do campo e suas famílias.
A ambição dum certo patronato, medíocre e predador, é a mesma de sempre.Voltar atrás nos direitos sociais. E precisam de Xavier Vallat, mais os seus discursos de homenzinho ridículo
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