segunda-feira, 10 de junho de 2019

Apontamentos sobre política externa (ou será interna?)


Devo dizer que apreciei particularmente as tomadas de posição frontais do Presidente da República e, em nome do Governo, do Ministro dos Negócios Estrangeiros sobre os trinta anos dos terríveis acontecimentos no centro da capital chinesa e para lá dela; afinal, sempre afoitos na promoção da visão liberal dos direitos humanos.

Enfim, a visão liberal dos direitos humanos foi pensada para ser selectivamente convocada, geralmente em função de uma vontade de ingerência externa, ao serviço da entrada de capitais, com consequências desastrosas. Face à Venezuela de Maduro, sim, face ao Egipto de Sisi, não, e por aí fora. Perante tal hipocrisia, o melhor mesmo é adoptar uma postura anti-liberal realista, modesta, defensiva e mais consistente, baseada no respeito pela autodeterminação dos povos, a linha colectiva de resto dominante antes da hegemonia liberal no que aos direitos humanos diz respeito, como se indica numa muito informativa história sobre o tema. E o mundo até era melhor em termos de possibilidades reais de emancipação.

Bom, por falar ou não de China e de política externa, devo dizer que fiquei, uma vez mais, banzado com um artigo do responsável do PSD por esta área, Tiago Moreira de Sá. Como bom cultor da sabedoria convencional, segundo a qual a melhor política externa é a que é definida algures entre Bruxelas e Washington, ou seja, a melhor política externa é a ausência de política externa, Sá está agora preocupado com a influência chinesa em Portugal. Quais foram os partidos que entregaram a nossa energia a empresas públicas chinesas, quais foram? As relações internacionais são impensáveis se as desligarmos da economia política (inter)nacional, afinal de contas.

Na realidade, o melhor que as elites conseguem fazer é multiplicar dependências e hipocrisias. Num mundo mais multipolar, tal vai gerar cada vez mais tensões e contradições, claro. Isto não é necessariamente mau. Para lá da economia, se há área condicionada e que precisa de mudar é a da política externa, resistindo aos alinhamentos com a confrontação imperial ensaiada pelos EUA e por algumas potências europeias face à Rússia ou face à China: nem papão, nem modelo, como já aqui defendi. Se no Financial Times estão a ver bem o cenário de uma espécie de nova Guerra Fria, vamos precisar de uma nova política de não alinhamento, baseada numa nova versão do chamado nacionalismo internacionalista.

No campo da integração europeia, o melhor é apostar numa geometria cada vez mais variável, já que este processo dirigido pelo directório vai ser cada vez mais justificado pela perigosa invenção de inimigos externos (e internos). Enquanto a variegação genuína não chega, num continente que sempre dependeu dela para prosperar, quanto mais paralisia e dispersão das instituições ditas europeias, melhor, como se viu nestes anos, onde o Brexit e outros processos democráticos evitaram males ainda maiores neste rectângulo. Vai ser preciso pensar a partir de uma desintegração europeia controlada e selectiva, a começar pelo mercado único e pela moeda única, ou seja, pela política fundamentalmente única. É por estas e por outras que é preciso acompanhar a situação italiana com todo o interesse.

A vantagem de sermos relativamente pequenos é que podemos conseguir passar pelos pingos da chuva, descobrindo os nossos nichos, como se defende neste artigo luminoso, sempre com um objetivo: recuperar e manter alguma margem de manobra nacional, base da democracia e do desenvolvimento nos nossos termos. Para isso, precisamos de recuperar instrumentos de política económica. Só assim podemos garantir pleno emprego com equilíbrio externo, condição necessária para não ficarmos nas mãos dos credores internacionais.

No actual contexto de dependência nacional, compreende-se que os nossos diplomatas estejam frustrados. As áreas básicas da soberania têm sido exauridas e esvaziadas. Mas o mundo que se avizinha vai tornar as suas missões cada vez mais relevantes, sabendo-se que não há mudança na política externa sem uma mudança profunda na política interna.

Adenda. Afinal, Augusto Santos Silva até escreveu um ensaio sobre a China ontem no Público. Fala vagamente de direitos humanos, sem qualquer especificação histórica. Os tais direitos estão clara e reveladoramente subordinados à vontade dita europeia de abrir mais mercados na China, apercebendo-se que afinal tem havido alguma assimetria neste processo político entre cá e lá. Creio que os chineses se lembram da forma como os imperialismos europeus abriram aí mercados no século XIX, desde as guerras do ópio. Espero que abram ou fechem nos seus termos, em função da melhor avaliação dos seus interesses, e que nós façamos o mesmo. O nós terá de voltar a ser nacional, claro. Enfim, para isto será preciso superar também as quadraturas do círculo, ou as circulaturas do quadrado, deste influente intelectual de todos os ismos da rendição da social-democracia desde o guterrismo. 

6 comentários:

S.T. disse...

Bom texto!

S.T.

Anónimo disse...

Concordo no geral mas existe um mas muito grande, Portugal deve 750 biliões de euros ao estrangeiro, obviamente seria óptimo reaver para o Estado o controlo estratégico da EDP, CTT, GALP , REN, PT, ANA, TAP... mas com a nossa divida publica e privada isso é impossível pelo menos no actual contexto de relações internacionais. Os socialistas têm de entender que não basta apregoar ideias, é necessário explicá-las e advertir para as suas consequências.


WW

Jose disse...

«seria óptimo reaver para o Estado o controlo estratégico»

Eufemismos para os dois grandes objectivos da esquerda:
- mais emprego público
- alimentar o orçamento alimenta o emprego público

José disse...

Trata-se, primeiro e acima de tudo, de reavermos o "controlo estratégico" do sentimento nacional popular.

Anónimo disse...

Nem dinheiro para a banca falida nem aumentos para a FP

Pedro disse...

Ó josé.

Tem de voltar ás aulas de história.

Quem construiu a função pública tal como é, não foi "a esquerda". Foi o Salazar.

E não, nunca houve nenhuma ditadura esquerdista em Portugal. O que houve foi quase 50 anos de ditadura de extrema direita.

Se tem queixas quanto ao estado do país, a extrema direita tem muito mais responsabilidades do que qualquer esquerda.