domingo, 29 de julho de 2018

Portugal não é a Grécia? Não. Portugal é Moçambique


Em 2007, as Estradas de Portugal apresentavam uma situação financeira “preocupante”. Precisavam de cerca de 10 mil milhões para fazer face aos compromissos financeiros de médio e longo prazo. O objectivo do executivo de José Sócrates era resolver o problema de endividamento das Estradas de Portugal, tendo escolhido Almerindo Marques para liderar o novo modelo de gestão e financiamento da rede de infra-estruturas rodoviárias e da transformação da EP em sociedade anónima.

Em 2009, o governo de José Sócrates decidiu avançar com a adjudicação de 11 concessões rodoviárias, financiadas em regime de parcerias público privadas (PPPs). Esta modalidade de financiamento público tem a particularidade de conciliar o esforço de desorçamentação e contenção da dívida pública imposto pela União Europeia, mesmo que isso implique um custo mais elevado para o erário público, com a pressão da banca nacional e estrangeira e dos grupos económicos para criar oportunidade de acumulação de lucro, mercadorizando a criação de infraestruturas e a provisão pública de serviços.

Ditam as regras que nos concursos públicos existam duas fases, servindo a segunda para melhorar custos ou aspectos técnicos, contudo, sem ser possível aumentar o custo do financiamento. Acontece que a crise financeira 2007-2009 veio debilitar a banca nacional, dadas as perdas que a actividade da banca de investimento impôs sobre os balanços, e dificultar o acesso aos mercados financeiros, causando uma erosão de liquidez e aumentando substancialmente o seu custo de financiamento. Neste contexto, existia uma pressão imensa por parte dos vários envolvidos para avançar com as PPPs, mesmo que o momento não se afigurasse o melhor e a sua implementação representasse um agravamento dos custos. Entre a fase inicial e a fase final do concurso público, esta deterioração das condições de financiamento representava, para 7 das PPPs, um agravamento dos custos em €705 milhões, considerando, em 2009, o valor presente dos fluxos de remuneração futura ocultos.

É neste contexto que a viabilização do chumbo ao visto prévio do Tribunal de Contas para aqueles projectos passa pelo recurso à mais habilidosa e perigosa engenharia financeira: cartas de acompanhamento (side letters) assinadas entre as três partes (governo, concessionárias e banca) que estipulam os termos e as condições financeiras dos contratos paralelos de swap que agravam os juros e permitem aos bancos adquirir a remuneração desejada. Para que os concursos fossem aprovados pelo Tribunal de contas, os contratos foram revistos e “corrigidos”. O agravamento das condições financeiras foi remetido para um anexo que não foi entregue ao Tribunal de Contas, aspecto agora denunciado em relatório da polícia judiciária.

Trata-se de um expediente usado para camuflar o agravamento dos custos e impor uma solução contrária aos interesses dos cidadãos portugueses. Em suma, uma situação de dívida ilícita e ilegítima, que recorre a expedientes onerosos, ilegais e imorais, não muito diferente do que acontece em países em desenvolvimento em situação de sobreendividamento do soberano, que pode mesmo conduzir ao incumprimento, como no caso de Moçambique.

Moçambique tinha o reconhecimento dos parceiros bilaterais e multilaterais, sendo considerado um país que maximizava a ajuda e o financiamento ao desenvolvimento. A sua reputação foi fortemente abalada por episódios que reportam a 2013 e 2014. Naquele período, três empresas públicas moçambicanas contraíram dívida no valor de USD 2.2 mil milhões para financiar projectos ligados à proteção e segurança costeira. A Proindicus com USD 622 milhões, a Moçambique Asset Management (MAM) com USD 535 milhões e a Empresa Moçambicana de Atum (EMATUM) com USD 850 milhões. A colocação destes empréstimos bancários foi intermediada pelos bancos Credit Suisse e VTB Capital, dois bancos de investimento de nacionalidade Suíça e Russa, que receberam cerca de USD 60 milhões em comissões. No caso da ProIndicus e da EMATUM, foram ainda pagas “contractor fees”, que não eram mais nem menos que compensações a pagar aos bancos membros do sindicato para dessa forma manter a taxa de juro artificialmente baixa (Libor+3.2%/3.7%, contra Libor+7% no caso da MAM).

Para libertar o balanço dos bancos membros do sindicato, os bancos que montaram as operações, possivelmente porque ficaram com parte substancial da dívida, procederam, em conjunto com o BNP à securitização da dívida da EMATUM, colocando lotes fracionados de dívida titulada em investidores privados – entre eles, em bancos moçambicanos. Perante os maus resultados da EMATUM, o governo Moçambicano foi confrontado com a necessidade assumir a dívida garantida desta empresa. Para se refinanciar lançou, em Abril de 2016, um eurobond com vencimento em 2023, designado “tuna bond”, aumentado substancialmente o stock de dívida pública. Esta solução não daria grandes frutos dado que posteriormente, em Janeiro de 2017 e seis meses depois em Julho, o governo moçambicano foi incapaz de fazer o pagamento dos juros, entrando em incumprimento.

Na mesma altura do lançamento do Eurobond, uma auditoria do FMI descobriu USD 1.4 mil milhões de dívida oculta da ProIndicus e MAM, levando a uma crise de confiança entre o governo moçambicano, parceiros internacionais, doadores e investidores. Mediante pressão internacional e doméstica, numa tentativa de reposição da confiança, em Outubro de 2016 o governo aceita realizar uma auditoria à dívida ilícita, tendo contratado a Kroll, uma auditora internacional.

O relatório Kroll revela USD 2.2 mil milhões (20% da dívida pública) em dívida desaparecida que o povo moçambicano tem de pagar. O caso mais gritante é o da dívida contraída pela EMATUM, no valor de USD 850 milhões. Não só este valor é substancialmente superior às necessidades, tendo duplicado no espaço de seis meses, como existem suspeitas de “invoice mispricing”, relativos a uma sobrevalorização do valor dos activos em USD 700 milhões. Neste contexto o auditor não consegue esclarecer o destino dado a USD 550 milhões dadas a declarações contraditórias entre o ministério das finanças, defesa e o fornecedor do material.

A ilegalidade [1] e ilegitimidade [2] das operações é clara. A contratação desta dívida ilícita beneficiou da garantia ilimitada do Estado, sem, contudo, observar os procedimentos legais [3]. O parlamento moçambicano não aprovou as operações, os parceiros internacionais, FMI e BM entre outros, não foram informados, e a dívida contingente não foi contabilizada no Orçamento de Estado. A própria selecção dos bancos e das empresas de fornecimento violou as normas de contratação pública e a execução dos contratos não foi sujeita à aprovação do Tribunal Administrativo, encarregue da auditoria da despesa pública. Por outro lado, foi contratada dívida que não era necessária e para a qual o país não tinha capacidade de cumprir o serviço da dívida, havendo mesmo necessidade de camuflar o seu verdadeiro custo yield-to-maturity com o reembolso de “contractor fees” aos credores. Finalmente, os proceeds (desembolso de capital líquido) nunca chegaram a entrar no país dado que o dinheiro foi automaticamente transferido dos lead-managers da operação para o fornecedor de equipamento.

Este parece ser também o entendimento das autoridades. O governador do Banco de Moçambique, Rogério Zandamela referiu ao Jornal Verdade a 27 de fevereiro que a dívida era ilícita e ilegal não devendo ser paga, enquanto o actual Presidente, Filipe Nyusi, criticou, na Chatam House, a 17 de Abril, o comportamento dos bancos, acusando-os de “loan pushing”, forçando a contratação de empréstimos que não eram necessários e para os quais Moçambique não comportava arcaboiço para proceder ao seu pagamento, e apelando a uma co-responsabilização da sua actuação predatória.

Voltando ao princípio e à privatização das Auto-estradas de Portugal recorrendo ao financiamento por PPPs, situação agora investigada pela polícia judiciária. Tal como em Moçambique, o processo de emissão desta onerosa dívida não seguiu os trâmites legais e regulamentares, violando as regras da contratação pública. O processo também não foi transparente nem responsável, e os lucros das empresas privadas e da banca foram ilícita e ilegitimamente obtidos resultando em despesa acrescida para o erário público. Como tal, à semelhança das autoridades moçambicanas, insta-se as autoridades portuguesas a proteger os contribuintes, denunciando a situação e anulando o acordo secreto que carece de legitimidade e validade legal e moral.
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[1] Dívida que não respeita o enquadramento legal nacional e internacional, os procedimentos regulamentares ou atenta contra a Constituição ou que resulta de má conduta por parte dos credores ou promotores da operação.

[2] De acordo com o Relatório Preliminar do Comité Grego para a Verdade sobre a Dívida Pública, trata-se de dívida viola os direitos humanos, que não beneficia o interesse da população ou que resulta da assunção de dívida privada por parte dos poderes públicos com o objectivo de resgatar esses credores privados. Por outro lado, o New Economic Foundation propõe uma tipologia que agrega, sob a designação de dívida ilegítima, a dívida ilegal, odiosa, onerosa, insustentável e mesmo dívida moral – dívidas ambientais e históricas devida pelos países do Norte aos do Sul.

[3] Algumas das garantias assinadas pelo Ministro das Finanças ou pela directora do Tesouro não apresentavam o montante máximo a que o estado se vinculava.

15 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom

É altura de começar a recusar a dívida ilegítima e ilegal

E denunciar todos os que ontem a promoveram e hoje aplaudem.

Jorge Cerqueira disse...

Os responsáveis por toda esta trapalhada descrita, são basicamente os mesmos que governam hoje Portugal, os socialistas, hoje apoiados pela esquerda. Tirando José Sócrates e Teixeira dos Santos (para quando um inquérito ás responsabilidades deste ultimo?), os governantes atuais já lá estavam nessa altura, talvez a assobiar para o lado.

Os bancos colaboraram na fraude, porque talvez não tivessem alternativa. Eram eles os grandes financiadores do estado Portugues (BES e CGD completamente colados ao Estado, BCP a não querer ver a banda a passar) e colaboraram no esconder da tragedia anunciada, e do défice.


Acusação judicial? Não me parece. Os bancos vão á falência, os depósitos dos Portugueses desaparecem, resta a nacionalização da banca. Aí, quem financia o estado Portugues? Só mesmo a Troika. Então, vamos sair do Euro. Resta o FMI.

PS. Se os políticos Portugueses tivessem a coragem de nos dizer porque não podem nacionalizar o Novo Banco, talvez os Portugueses ficassem a perceber que »Não há mesmo dinheiro».

Alice disse...

Anónimo das 21h40, não é altura de recusar dívida ilegítima e ilegal. É altura mas é de a deixar de pagar!!!

Bom post!

Jose disse...

«...insta-se as autoridades portuguesas a proteger os contribuintes, denunciando a situação e anulando o acordo secreto que carece de legitimidade e validade legal e moral».

Essa é BOA!!!
A mesma camarilha (PS) que fez a manobra ilegal vinha agora invocar a ilegalidade para não pagar aos restantes contratantes.
E onde a responsabilização dos políticos e partidos que pratiquem essas ilegalidades?
Tudo A Bem da Nação?

Anónimo disse...

Assobiar para o lado e não só. A promover de forma activa a dívida ilegítima e ilegal. Olha-se para Cavaco, para Barroso, para Santana, para portas, para Coelho e sabemos que estamos no meio do gang

Ó Cerqueira deixa- te de fitás mais as tretas sobre os bancos e o FMI

Troikista escondido no bolso pequeno do Passos

Anónimo disse...

Cerqueira Vitor Pimentel Ferreira

Não é trapalhada. É saque. Promovido pelo Capital. E a tralha neoliberal toda metida no saque

Anónimo disse...

Bora agora lá ler de novo para ver se o Pimentel Cerqueira percebe que este post é um estalo de todo o tamanho no modus faciendi dos negócios privados dos blocos centrais de interesses neoliberais?

Anónimo disse...

E esta?

Alguém aí ensine a este José que os processos de fraude e ilegais devem ser deitados para o lixo, não valendo a pena os cúmplices virem choramingar ou falar nas pobres viúvas dos mafiosos

Era o que mais faltava que a ilegalidade e o roubo tivessem o patrocínio dos que andaram a saquear as colónias e se sumiram para herdar as fortunas que se sabem. Sem darem Cavaco a ninguém

Jose disse...

Cuco, até para treteiros há limites para a indecência.
O nome de Sócrates não te diz nada, trafulha?

Anónimo disse...

Não

O josé está fora de si e em crise. Vamos respirar fundo e abandonar os pesadelos quer com Sócrates, quer com esse inestimável cuco.

Já está? Agora passemos à tentativa de fazer passar os roubos e as ilegalidades deste jeito tão conivente, beneficiando os cúmplices

Valeu?

(O papã não o ensinou a não ser “ trafulha” como diz assim desta forma esquentada? )

Anónimo disse...

Quanto ao Sócrates.. aí um sujeito qualquer já tinha despejado para cima dele o que era de tantos

Colocar os pontos nos is é sempre proveitoso

Não tanto como os negócios com os cadáveres, claro está. Que deixaram o pobre josé ser educado com as consequências a que agora assistimos.

São as heranças putrefactas

Anónimo disse...

Um excelente post.

Anónimo disse...

Incrível como o autor, perante o maior corrupto da história da democracia portuguesa, ainda consegue dar uma bicada às "imposições da União Europeia", como se a UE fosse a responsável pelas malfeitorias de José Pinto de Sousa.

Não é governo do PS que agora governa, tendo ainda muitos ministros do tempo de Sócrates?

Anónimo disse...

Não digas asneiras ó Pimentel Ferreira.
O maior corrupto é a horda neoliberal, com ligações filiais com os sociais- liberais e os liberais sociais

Não tens vergonha do trabalho que fazes?
Trata de abordar o tema em concreto em vez de fazeres esse trabalho de lambe/botas dos eurocratas da ordem

Anónimo disse...

Identificado como militante do PSD, Pimentel Ferreira faz a espargata, o pino, uma plástica às francas adiposidades e serventia
Desde que não se aborde com rigor os negócios que enriqueceram quem enriqueceu e que desviou dinheiro directamente para o centro da Europa
Uma miséria desonesta e serventuária