O Rui Tavares apresentou ontem, em artigo no Público e em entrevista ao i, algumas ideias para retirar o país da crise. Devo confessar-me um pouco perplexo. Bem sei da cansativa conversa à esquerda de que uma coisa é a economia (coisa de marrões do Excel) e outra a política (coisa para vanguardas que conseguem ler a realidade social). Mas, ver estas propostas vindas de alguém que se rodeia de excelentes economistas, como Varoufakis ou James Galbraith, é um pouco penoso.
O Rui tem três diferentes propostas (na verdade, quatro) para resolver o problema da dívida e relançar o crescimento. Se bem percebo, na primeira, e mais substantiva, proposta sugere-se a criação de créditos ficais por parte do Estado como forma de angariar poupanças. Portanto, o Estado emite títulos que servirão no futuro para pagar impostos com um qualquer desconto que torne o produto apetecível a aforradores. Qual a diferença entre tais títulos e certificados de aforro? Nenhuma. Ambas são formas de dívida pública junto do público, mudando os termos de taxa de juro para desconto fiscal. Não se percebe muito bem.
No entanto, arrisco um pouco. Partindo da afirmação do Rui que tais títulos seriam transaccionáveis (usados como meio de pagamento?), parece-me que o que está a ser proposto é uma forma encapotada de circulação monetária paralela ao euro.
Uma ideia requentada de 2010 para a Grécia que pretende desvalorizar salários, pagos com estes títulos convertíveis em euros a uma taxa de desconto, mantendo os pagamentos externos e de impostos em euros (e assim pagar a dívida). Se esta proposta tem o mérito de aliviar os constrangimentos financeiros do Estado, ela consubstancia-se em pouco mais do que num corte salarial. Sim, neste caso, as mirabolantes críticas a quem defende a saída do euro fariam sentido, já que boa parte dos pagamentos internos continuariam a ser feitos em sobrevaliados euros (por exemplo, dívidas ao banco). De qualquer forma, posso estar enganado quanto à proposta do Rui Tavares, já que para tal sistema resultar, estes títulos só poderiam ser aceites como pagamento de impostos num futuro longínquo. Volto à casa de partida: não se percebe.
O que se percebe e não faz sentido é a segunda proposta: "O Governo proporia então pagar dívida com base no seguinte plano: por cada euro pago um euro seria perdoado. É um ‘corte de cabelo’, mas diferente do grego, por ser progressivo no tempo (...)". O que o Rui propõe aqui é um efectivo corte na dívida de 50% que os credores aceitariam "por ser progressivo no tempo". Ou o Rui acha que na reestruturação grega a dívida remanescente dos privados foi logo toda paga (quem lhes dera), ou o que aconteceu na Grécia corta os pagamentos a metade ao longo do tempo, logo é exactamente igual ao que o Rui propõe. Mais interessante era saber a opinião do Rui do que fazer no cenário em que os credores não aceitam a proposta nacional de corte...Fazer voz grossa, com votos parlamentares desafiantes e tudo, já foi tentado no Chipre.
Outra proposta: a criação de um fundo soberano de poupança para fazer frente a futuras crises. Ou o Rui sabe da existência de vastas reservas de petróleo ao largo do Algarve, ou não se sabe de onde vem esta poupança. Mais austeridade? Tem resultado bem como alavanca do crescimento... Fundos soberanos são coisa de países com vastos recursos, onde as oportunidades internas de investimento escasseiam, como o Qatar ou a Noruega.
Finalmente, chega a proposta de um vago "memorando de desenvolvimento" que una os mais variados sectores sociais portugueses. Tenho muita pena, ou se definem quais são esses sectores, quais os interesses que podem confluir e, sobretudo, qual o programa subjacente, e que instrumentos de política pode mobilizar, ou estamos a propor coisas parecidas com o fim da política, onde todos concordam numa grande união nacional. Estou certo que não é nada disto que propõe o Rui, mas acho que devemos ter cuidado com este tipo de formulações. É sobretudo necessário engajarmo-nos no debate da economia política à esquerda, sem pensar, cada um de nós, ter descoberto um qualquer Graal da saída para a crise a que os partidos só não aderem porque não querem. Caso contrário, arriscamos só a introduzir ruído e confusão no debate político.