Nas últimas três décadas, Portugal registou uma redução significativa da pobreza. A taxa de pobreza passou de 23% em meados da década de 1990 para 16,6% em 2023, correspondendo a um período de convergência com a média europeia. É impossível ignorar o papel do Estado neste percurso: a aprovação de medidas como o Rendimento Social de Inserção (RSI) ou o Complemento Solidário para Idosos (CSI) contribuiu em grande medida para combater a incidência da pobreza entre os grupos mais vulneráveis.
No entanto, os indicadores contam apenas uma parte da história. Além de continuarmos a ter cerca de dois milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza, é preciso perceber como é que este fenómeno se manifesta hoje em mais do que uma dimensão. A pobreza não é apenas consequência de salários ou pensões baixas; é, cada vez mais, um reflexo do custo de vida. Atualmente, a pobreza esconde-se atrás de rendas incomportáveis e da inflação de bens essenciais, de uma forma que escapa aos indicadores que usamos para a medir.
Como se mede a pobreza?
O indicador mais utilizado para medir a pobreza é a taxa de risco de pobreza, que define a linha de pobreza como 60% do rendimento mediano nacional líquido (após impostos e transferências sociais). Ou seja, não se trata de um valor fixo, mas sim de um limiar que varia com o rendimento mediano: quando este aumenta, a linha de pobreza sobe na mesma proporção, e vice-versa.
Isto significa que a pobreza é medida em termos relativos: ser pobre significa estar significativamente abaixo do padrão de vida médio do país. Nas estatísticas, a definição de pobreza depende do rendimento e do contexto do agregado familiar. Em 2023, uma pessoa que vivesse sozinha seria considerada pobre se tivesse menos de €632 de rendimento mensal; já um casal com dois filhos seria pobre se vivesse com menos de €1328 por mês.
É possível medir a taxa de pobreza antes e depois de transferências sociais. O INE calcula três taxas diferentes: a taxa de risco de pobreza antes de qualquer transferência social, a taxa após transferências relativas a pensões e, finalmente, a taxa após todas as transferências sociais. A primeira mede a pobreza apenas com base apenas nos rendimentos do trabalho e do capital, a segunda inclui as pensões de reforma e a terceira avalia a pobreza após todas as transferências do Estado, como o abono de família, o subsídio de desemprego, o Rendimento Social de Inserção (RSI), etc. A comparação destas taxas permite avaliar a eficácia do Estado no combate à pobreza.
Apesar das melhorias referidas anteriormente, há alguns problemas associados a estes cálculos, como explica o economista Carlos Farinha Rodrigues numa entrevista recente. Por um lado, medir a taxa de pobreza antes de todas as transferências (incluindo pensões) pode levar a conclusões enganadoras. Em países com uma população envelhecida, é natural que a taxa de pobreza “antes de pensões” seja elevada. Em Portugal, quase metade da população é considerada pobre de acordo com esta definição. No entanto, as pensões de reforma não são um apoio do Estado para quem se encontra em dificuldades, são o resultado dos descontos feitos por quem se reforma ao longo da sua carreira. Calcular a taxa de pobreza “se não houvesse pensões” é uma abstração que faz pouco sentido, tal como seria pouco útil calcular a taxa de pobreza “se não houvesse salários”.
Por outro lado, definir a linha de pobreza em termos relativos também tem consequências para as conclusões que se retiram, sobretudo em períodos de crise. Entre 2010 e 2012, quando Portugal foi atingido pela crise financeira e se começaram a implementar medidas de austeridade, a taxa de pobreza manteve-se inicialmente inalterada, não porque as medidas aplicadas não estivessem a afetar as pessoas com salários e pensões mais baixas, mas simplesmente porque a crise também levou a uma diminuição do salário mediano na economia.
Além disso, o rendimento ao fim do mês não é o único fator que determina as condições de vida de uma pessoa. Com a crise da habitação, têm aumentado os casos de pessoas que se encontram acima do limiar de pobreza mas são incapazes de pagar as contas. Ao medirmos a pobreza apenas com base no rendimento, deixamos de fora da análise uma dimensão que afeta de forma decisiva a qualidade de vida e a capacidade de assegurar as despesas indispensáveis: o poder de compra associado ao rendimento.
O salário não chega
De acordo com as estatísticas, 9,2% de trabalhadores em Portugal são pobres. Isto significa que 1 em cada 10 pessoas que têm emprego recebem um salário que as coloca abaixo do limiar de pobreza. Este valor valor tem-se mantido relativamente estável na última década, o que significa que mesmo num período em que a economia tem crescido a um ritmo superior, ter um emprego continua a ser insuficiente para sair da pobreza.
A pobreza é indissociável do modelo de crescimento do país. A economia portuguesa é caracterizada pela prevalência de salários baixos. Nos setores que mais têm contribuído para o crescimento da economia e do emprego - o turismo, o alojamento, a restauração e a construção -, mais de um quinto dos trabalhadores vive em risco de pobreza devido aos salários muito baixos que são pagos. Além do rendimento, o tipo de emprego que tem sido criado também influencia esta dinâmica: a taxa de risco de pobreza entre quem tem contratos precários é de 18,2%, quase o triplo da de quem tem contratos permanentes (7%).
Contudo, é preciso ter em conta que a taxa de pobreza se mede apenas tendo em conta o salário que as pessoas recebem, o que torna o indicador limitado, uma vez que não é possível analisar a pobreza sem ter em conta o custo de vida. Isso é particularmente visível no caso da habitação. A renda paga ao senhorio, no caso de quem arrenda, ou a prestação paga ao banco, no caso de quem tem casa própria, corresponde à maior fatia das despesas mensais das famílias. Em média, esta despesa representa quase 40% dos gastos mensais, de acordo com o INE, superando este valor em muitos casos. Na área metropolitana de Lisboa, há estimativas que indicam que mais de 70% dos inquilinos estão em sobrecarga financeira com as despesas de habitação.
Este cenário reflete a crise da habitação que Portugal tem atravessado na última década. Entre 2014 e 2024, o preço das casas no país subiu mais de 135%, enquanto o salário médio dos residentes cresceu apenas 36%. Portugal foi o país da OCDE em que o fosso entre os salários e os preços da habitação mais se alargou na última década, o que explica porque é que a habitação passou a representar uma fatia cada vez mais importante das despesas das pessoas.
A escalada dos preços da habitação tem contribuído para uma crise do custo de vida que não surge nas estatísticas, como tem sido discutido nesta página (aqui ou aqui). O indicador da inflação, que é usado para medir o poder de compra das pessoas, subestima de forma significativa o impacto dos preços das casas, uma vez que não inclui a despesa das famílias com prestações de empréstimos e atribui um peso muito pequeno às despesas com rendas. Como as prestações e as rendas têm subido a um ritmo bastante superior ao da média dos preços na economia (medida pela inflação), há uma parte importante do custo de vida que está a ser subestimada pelos indicadores.
Esta dinâmica também tem consequências que não são captadas pelas estatísticas da pobreza. Como a taxa de pobreza é medida apenas com base no rendimento, o indicador não tem em conta o poder de compra associado. Por outras palavras, não basta saber quanto é que as pessoas recebem, mas também o que é que conseguem pagar com o rendimento que recebem. Em muitos casos, os salários ou as pensões podem estar acima do limiar de pobreza definido estatisticamente, mas não serem suficientes para pagar as despesas com a renda, a alimentação, a luz ou a água (sobretudo no caso de pessoas que vivem sozinhas ou famílias monoparentais).
O aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo e dos bairros de auto-construção nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Na periferia das zonas urbanas, são frequentes os relatos de pessoas que trabalham, recebem o salário mínimo - €860/mês, o que as coloca estatisticamente acima do limiar de pobreza - mas são empurradas para este tipo de condições precárias pelo facto do salário não chegar para pagar uma renda de €600 ou €700 e assegurar as outras despesas essenciais.
Além da habitação, a alimentação é outro exemplo de como em que o aumento do custo de vida está a atingir de forma desproporcional as pessoas com menos rendimentos. Tipicamente, as pessoas com salários ou pensões mais baixas gastam uma parte maior do seu rendimento com a alimentação. Os dados do INE confirmam-no: as despesas com alimentos representam mais de 17% do orçamento das pessoas com rendimentos mais baixos, mas apenas 10% do orçamento dos mais ricos.
O que isto significa é que a mesma taxa de inflação alimentar tem impactos diferentes em grupos sociais diferentes. Neste caso, representa um aumento mais acentuado do custo de vida para quem gasta uma percentagem maior do seu rendimento nestes produtos. Por outras palavras, a subida dos preços dos alimentos pesa mais na carteira de quem ganha menos, sobretudo num contexto em que a subida dos preços foi mais acentuada nos produtos que eram mais baratos à partida.

Para as famílias com menos rendimentos, as estratégias de contenção de gastos não são opcionais. O inquérito mostra que muitas têm sido forçadas a diminuir a quantidade de ingredientes que usam para cozinhar refeições e a cortar no consumo de proteínas como a carne. Em paralelo, tem-se registado um “retraimento acentuado das sociabilidades”, com quase 30% das pessoas a convidar menos amigos e familiares para a sua casa e a reduzir as celebrações fora de casa (o que, novamente, se verifica sobretudo entre quem ganha menos).
Portugal tem Estado a menos
Se é verdade que as prestações sociais tiveram um papel decisivo para reduzir a pobreza no país, não deixa de ser verdade que a eficácia das transferências do Estado é baixa quando comparamos Portugal com o resto da União Europeia. O impacto das transferências sociais - com exceção das pensões - na redução da pobreza é de 22,4% em Portugal, significativamente abaixo da média europeia (34,15%).
Enquanto os países da UE, em média, conseguem retirar da pobreza 1 em cada 3 cidadãos que estariam nessa situação sem apoios sociais, em Portugal essa proporção é de apenas 1 em cada 5. Muitas prestações continuam a ter valores manifestamente insuficientes. Ao contrário do que se costuma ouvir no debate público, prestações como o RSI só pecam por defeito: cada beneficiário recebe, em média, €155 por mês com este apoio, o que os deixa muito longe de um rendimento digno.
Além disso, a crise do custo de vida reflete o subinvestimento público que marcou a última década. A oferta pública de serviços como a educação, a saúde, a habitação ou os transportes a custos acessíveis é uma ferramenta eficaz de combate à pobreza. Os serviços públicos constituem uma forma de “rendimento indireto”: libertam uma parte significativa do orçamento das pessoas que, de outra forma, teria de ser gasto no mercado. Uma estimativa da Oxfam sugere que o “rendimento indireto” dos serviços públicos reduz a desigualdade em 20% nos países da OCDE.
Em Portugal, ao longo da última década, registaram-se os níveis mais baixos de investimento público da história recente. Esta política de compressão do investimento público foi uma condição necessária para a obtenção de excedentes orçamentais. Neste contexto, Portugal não só se destacou como um dos países da UE com mais baixos níveis de investimento público, como parece condenado a permanecer na cauda da Europa: de acordo com o plano orçamental do atual governo para os próximos anos, Portugal é o país que se compromete a financiar o menor nível de investimento público em toda a União Europeia até 2028.
Com a opção por um Estado Social subfinanciado, as prestações em dinheiro ainda são insuficientes e a falta de investimento em serviços públicos faz com que muitas das pessoas que estão acima do limiar de pobreza enfrentem dificuldades cada vez maiores para assegurar despesas essenciais. Compreender as limitações dos indicadores é uma condição necessária para evitar leituras simplistas sobre a evolução da pobreza e das condições de vida no país. O próximo texto será dedicado ao outro lado da moeda: a evolução da riqueza.
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7 comentários:
Concordo, no essencial. Mas há muita incompreensão e unilateralidade nas afirmações e justificações do post.
A taxa de risco de pobreza mede, como bem se afirma, a pobreza em termos relativos. De facto, esta taxa é mais uma medida das desigualdades, na distribuição do rendimento disponível, do que uma medida da dimensão absoluta da pobreza. Não traduz apropriadamente a evolução do nível de vida das camadas de menor rendimento da sociedade. Como fazia, de modo mais adequado, a taxa de risco de pobreza ancorada no tempo, que o INE publicava, nos seus destaques anuais sobre o risco de pobreza, até 2017. A taxa relativa serve para certos propósitos, mas as suas limitações são flagrantes. No limite, se todos os cidadão ganhassem o mesmo, mas apenas o suficiente para uma miséria absoluta (que deixo à imaginação dos leitores), essa sociedade, evidentemente de 100% de pobres, teria, segundo a convencionada definição, uma taxa de risco de pobreza de 0%, pois, auferindo igual, ninguém estaria abaixo dos 60% do rendimento mediano. Aliás, a taxa de pobreza (relativa) tem que ser obrigatoriamente inferior a 50%; em termos práticos, bastante inferior, pois a população em risco de pobreza, por definição de mediana, é apenas uma parte estritamente contida na metade da população com menores rendimentos.
Não cabem aqui as críticas, concetuais e metodológicas, que poderia fazer. Mas fico sempre surpreendido como, nestas discussões, certos progressistas são capazes de invocar seriamente as taxas (relativas) de risco de pobreza, até de consultar as respetivas estatísticas europeias (Eurostat, online code: ilc_li02), sem reparar, ou pior ainda deliberadamente ignorando, que o Luxemburgo, o país mais rico da União Europeia, com um PIB per capita cerca de cinco vezes superior a Portugal, tem, segundo a definição utilizada, uma taxa de risco de pobreza superior à do nosso país. Anedótico, mas verdadeiro!
«Definir a linha de pobreza em termos relativos» não tem apenas «consequências para as conclusões que se retiram» num sentido subestimador da real dimensão da pobreza, «sobretudo em períodos de crise», como, segundo argumentado no texto, entre 2010 e 2012. Vale para os dois lados. Se o rendimento mediano aumentar, a pobreza real pode, diminuindo, ver eventualmente a sua taxa (relativa, não absoluta) diminuir menos ou até aumentar, sobrestimando a sua verdadeira dimensão. Os últimos anos fornecem um exemplo.
Desembaraçando-nos das interpretações acríticas das taxas de risco da pobreza definidas em termos relativos, nada desconsidera ou desvaloriza a dimensão efetiva da pobreza em Portugal, que, embora efetivamente diminuindo, certamente a um ritmo muito mais lento do que se desejaria, permanece a níveis chocantes para um país que se quer desenvolvido. Nisso acho que podemos concordar.
E escusado será acrescentar, a talho de foice, que o pacote laboral proposto pelo governo, com o evidente propósito de desregulamentar, precarizar e fragilizar as relações laborais para combater o desagravamento da exploração alcançado pela luta dos trabalhadores nos últimos anos (dito de outra maneira, para aumentar os lucros do patronato à custa dos salários e condições de vida dos trabalhadores), é, no presente, a mais séria ameaça ao prosseguimento da redução da pobreza. Da pobreza e, já agora, para o que as taxas relativas de pobreza até fornecem indicadores úteis, das desigualdades. Porque é aí mesmo, na base, nas relações entre o capital e o trabalho, que assenta o edifício social das desigualdades e exclusões no nosso país.
Excelente post.
Só um reparo, relativamente ao que se ouve sobre o RSI: não se trata de debate público, são os neo-fascistas criminosos e mentirosos do Chega que largam esse embuste, perante o silêncio do extremo-centro-direita neo-liberal e governamental, e todos os outros que acham que não faz mal.
Há anos e anos que se ouve o que Vicente Ferreira refere sobre a ausência de participação da despesa com aquisição de habitação própria, e a irrisória participação da despesa com renda de casa, no indicador da inflação. É evidente a intenção de produzir resultados estatísticos selectivos para manipular a realidade e a vida concreta da maioria das pessoas. E também se percebe a quem isto interessa: à concertação patronato/governo.
Dia 11-12-2025: presente!
No final, o autor afirma que «compreender as limitações dos indicadores é uma condição necessária para evitar leituras simplistas sobre a evolução da pobreza e das condições de vida no país». É pena que nem sempre use essa máxima na sua análise.
Acrescento apenas mais um ponto, contudo crucial, pelas numerosas implicações, desde logo no que respeita ao poder de compra dos salários e dos rendimentos, e à evolução da incidência da pobreza.
É certo que, de modo muito controverso, de que veementemente discordo, embora consentâneo com a regras das metodologias internacionais, os gastos com a aquisição (ou construção e reabilitação) de habitação para residência própria são tratados como despesas de investimento e excluídos do cálculo da inflação.
No entanto, sem que me possa alongar, atente-se também no seguinte. Apenas cerca de um terço dos proprietários ainda não tem saldada a casa que habita (32,5%, em 2024; cf. Eurostat, código online ilc_lvho02), pagando prestações mensais ao banco. Num estudo do Banco de Portugal, que importava atualizar (BP, Boletim Económico de junho 2023, pp. 20-24, caixa 4), em que se considera o duplo impacto da inflação e do aumento das taxas de juro na despesa das famílias, mostra-se que as mais pobres (no quintil de menor rendimento) com algum tipo de dívida a taxa variável constituíam apenas 2,4% do total das famílias (p. 22, q. C4.1.). Nos últimos dois anos, a taxa implícita no crédito à habitação diminuiu significativamente e ajudou a compensar, em termos médios, o destravado aumento dos preços de aquisição; a prestação média mensal do stock de empréstimos para habitação própria permanente diminuiu ligeiramente (de 430 € em jan. de 2024 para 413 € em set. de 2025; cf. BPStat, 31/10/2025), contrastando com os significativos, embora obviamente insuficientes, aumentos médios dos salários – em termos reais, os maiores desde 1992 (cf. INE, CN, qs. A.1.2.4.1, «remunerações», e A.3.7, «remunerados», e INE, Base de Dados, IPC) – duramente conquistados pelos trabalhadores, enfrentando o conluio do grande patronato com os governos do PS e da AD.
(continua)
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É substancialmente incorreto afirmar que a despesa com a renda paga ao senhorio ou a prestação paga ao banco «representa quase 40% dos gastos mensais» das famílias. Esta percentagem, em rigor de 39,3% (Destaque do INE, Orçamentos Familiares 2022/2023, 19/6/2024, p. 11, q. 2), desdobra-se em vários itens relacionados com os encargos associados à habitação (incluindo manutenção, reparações, segurança, água e energia), dos quais a maior componente (27,4% dos 39,3%), são as chamadas «rendas subjetivas da habitação», a não confundir com as «rendas efetivas da habitação» (apenas 3,4% dos 39,3%), estas efetivamente pagas aos senhorios, sendo aquelas, também chamadas elucidativamente de arrendamento fictício, as rendas pagas ficticiamente pelos proprietários a si próprios, «aos quais se solicitou uma autoavaliação sobre o valor razoável de uma renda mensal, em termos hipotéticos, aplicada ao respetivo alojamento, a preços de mercado» (realces meus na formulação oficial do inquérito; acrescento, embora isso seja irrelevante para a minha crítica, que a «autoavaliação» geralmente exagera o «valor razoável»). Estas rendas ficticiamente auto-imputadas não existem, não representam nenhuma despesa real, não aquecem nem arrefecem o rendimento, o poder de compra, o consumo e o nível de vida das famílias, representam simultaneamente uma despesa (fictícia) e um rendimento (fictício), de saldo (fictício) nulo, dos proprietários alojados nas respetivas habitações. É triste ver economistas progressistas caírem nos alçapões das estatísticas e da contabilidade de inspiração neoclássica, ainda por cima acrescentando absurdo ao absurdo, de apenas considerarem um lado, o das “despesas” (subjetivamente sobreavaliadas), ignorando o outro, o dos “rendimentos”, no “saldo” zero de uma rubrica fictícia, a tal das «rendas subjetivas da habitação», inexistente na realidade, sem correspondência com qualquer transação ou pagamento.
Resulta ainda de uma incompreensão fundamental do Inquérito às Despesas das Famílias 2022/2023 do INE, do seu âmbito, da sua metodologia, dos seus propósitos, sobretudo das suas limitações e deficiências, a afirmação de que o indicador da inflação (no caso, o IPC) «atribui um peso muito pequeno às despesas com rendas» (efetivas) pagas aos senhorios. Eu já nem chamo a atenção para o peso pequeno, acima referido, destas rendas (realmente pagas a senhorios) nos encargos com a «habitação, água, eletricidade, gás e outros combustíveis», revelados no próprio Inquérito, pois isso seria alinhar com os mal-entendidos já expostos.
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Entre outros motivos, pela maior abrangência, fiabilidade e rigor, em Portugal e na generalidade dos países europeus, utiliza-se primariamente no cálculo do índice de preços do consumidor, aos níveis mais agregados, as Contas Nacionais, em vez dos inquéritos às despesas das famílias [cf. Eurostat, Harmonised Index of Consumer Prices (HICP), Methodological Manual, 2024 ed., por ex., pp. 42-43]. Desta forma, evitam-se também enviesamentos bem conhecidos dos estatísticos, nomeadamente quanto à subavaliação de consumos de menor valor, menor frequência, menor documentação (contrariamente às rendas) ou de maior sensibilidade (ex. tabaco e as bebidas alcoólicas), que subestimam a despesa total e, desse modo, empolam artificialmente o peso do arrendamento (já excluindo o «arrendamento fictício») na despesa do consumo das famílias.
Argumentar com base nos inquéritos às despesas familiares, sem compreender as suas limitações e a superioridade metodológica das Contas Nacionais (que aliás recorrem àqueles, bem como a múltiplas outras fontes, a níveis mais desagregados), revela desconhecimento do processo de apuramento concreto da inflação e, colateralmente, enfraquece a defesa de outras observações essencialmente justas.
Quanto às rendas (efetivas), sublinhe-se ainda, finalmente, que, mesmo que se duplicasse o peso relativo do ponderador das despesas associadas à habitação no cálculo da inflação, a correspondente alteração na inflação total – e quem quiser que faça as contas –, arredondada às décimas, ficaria na mesma, em 2023 (para o que contribui as taxas de variação média do índice de preços no consumidor no total e no total exceto habitação serem, nesse ano, praticamente iguais), ou aumentaria duas décimas, em 2024. Ou seja, praticamente não beliscaria a dimensão dos aumentos reais médios dos salários conquistados desde 2023. Contra a vontade dos governos e dos patrões, convém sempre recordá-lo.
Obrigado pelo feedback. É verdade que o debate público tem estado cada vez mais dominado pelas opiniões reacionárias e pela desinformação, que contribuem para generalizar ideias erradas sobre este assunto
Agradeço o comentário. Normalmente não respondo a intervenções marcadas por um tom condescendente e altivo, mas abro uma exceção apenas porque há um ponto válido que justifica o esclarecimento.
As limitações da taxa de pobreza relativa estão implícitas no próprio texto, pelo que exemplos adicionais sobre consequências conhecidas da definição não eram necessários para efeitos da discussão. Quanto à questão da habitação: o conceito de renda subjetiva e os problemas metodológicos são conhecidos e o comentário é válido. No entanto, o motivo de ter usado dados do Inquérito às Despesas das Famílias é que, apesar dessas limitações, oferece uma aproximação mais realista do que a que resulta dos ponderadores do IPC. Não se conhecendo diretamente o peso das prestações bancárias no orçamento das famílias, é razoável assumir que se encontra mais próximo dos 39% do que dos 10%.
Importa sublinhar um ponto em que este comentário dá a sensação de transmitir uma ideia incorreta: os aumentos salariais ditos "significativos" ficaram manifestamente aquém da evolução da prestação média do crédito à habitação, que aumentou mais de 80% no período analisado. A diminuição dos últimos meses — de €430 para €413 — não altera em nada o choque que representou para o poder de compra de quem as paga. Se se apresentassem os números publicamente acessíveis sobre o aumento do salário médio, facilmente se perceberia que não tem comparação com o ritmo de subida da prestação dos empréstimos e, por isso, não altera em nada o argumento apresentado no texto.
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