segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Como se o blogue fosse um diário: haja rostos, haja povos


Vila Franca de Xira, 17 de agosto de 2025

Acordo cedo, com boas notícias no meio da catástrofe: o fogo de Penedono foi extinto, salvou-se a encosta, o lugar inicial e final, mas tudo à volta é negro, incluindo em concelhos limítrofes – de São João da Pesqueira a Sernancelhe, passando pela Mêda. Estou com medo de ir lá, confesso. Estava tudo tão bonito e produtivo. Há-de voltar a ficar, com tempo, com trabalho paciente. Haja plano e apoio públicos.

Por razões familiares, vim para sul ontem à noite. Hoje, decidimos ir passear. Fomos pela nacional dez, passámos por Alverca, ali onde era a Mague, uma grande empresa metalomecânica, parte de um grupo que empregava mais de quatro mil trabalhadores nos anos 1980 (2700 só nas instalações de Alverca, segundo os Restos de Colecção). Foi vendida a uma multinacional holandesa que acabou por encerrá-la nos fatídicos anos 1990. 

Os antigos terrenos, onde o trabalho criava valor, são hoje um condomínio com elevada densidade de construção: do salário e do lucro à renda fundiária, do capitalismo industrial ao imobiliário. A financeirização do capitalismo em Portugal passou por aqui na desgraçada viragem do milénio, quando nos trancaram no euro. Sobrou uma placa de cimento comemorativa. Pobre país. 


Passeamos à beira Tejo e embrenhamo-nos numas ruínas industriais em busca de arte, alertados pelo vislumbre de um rosto com um keffiyeh, o heróico lenço palestiniano. Descobrimos Lénine para lá chegar. Tivemos uma imensa surpresa estética e ético-política, que em breve será revelada. Há luz no meio das trevas para quem procura desejosamente, posso garantir-vos. 


Para lá dessa antiga fábrica, o Museu do Neorrealismo, lugar de referência de VFX, a par da sua biblioteca pública, tem uma maravilhosa retrospetiva do pintor comunista Rogério Ribeiro. David Santos, o curador, fala e bem “no assombro do real que as cores e as formas da arte alcançam quando nos lembram o rosto de um povo”. 

 Haja rostos, haja povos.

domingo, 17 de agosto de 2025

Como se o blogue fosse um diário: haja vida


Coimbra, 16 de agosto de 2025

“Não vás para Penedono, só lá vais atrapalhar, além disso não há comunicações, ainda há para lá estradas cortadas e a circulação é de evitar neste contexto.” 

Sou um cidadão obediente. Fico por Coimbra. Refugio-me no meu lugar à sombra no Jardim Botânico. O banco estava ocupado, felizmente por pouco tempo. Dois turistas deixaram um mapa de Coimbra, repararei depois. Estava assinalado com alguns dos monumentos a visitar ou já vistos, não sei. Lá estava o meu jardim marcado. 

Tento concentrar-me na leitura dos capítulos finais de um livro sobre o “fascismo tardio” que comprei em Espanha, da autoria de Alberto Toscano. Ignora a tradição antifascista de Dimitrov, Cunhal e tutti quanti. Ou melhor, não ignora, refere-a caricaturalmente de passagem, literalmente numa linha. 

Fez mal, mas em compensação tem uma excelente síntese do fascismo a partir dos “marxistas negros” – “o capitalismo requer a desigualdade e o racismo entroniza-a”, sendo que o fascismo “pugna violentamente por entronizar a desigualdade em condições de crise capitalista, criando simulacros de igualdade para alguns”. 

Contém ademais uma estimulante interpretação histórica dos “tempos para o fascismo, dentro do fascismo e do fascismo”. Os tempos para o fascismo são os do “vírus capitalista” e das suas mutações, denunciado por Karl Polanyi, citado, mas pouco escalpelizado. 


A verdade é que estou com dificuldade em concentrar-me. Informam-me, pelo WhatsApp da família, que tenho familiares heróicos a impedir que as chamas saltem a estrada. 

São os tais “populares” de que fala uma certa televisão, tão arrogante quanto desconhecedora do país e das suas gentes, totalmente desorientada, ou melhor orientada pela transformação do fogo em espetáculo monetarizável para gáudio de pirómanos. E há nas televisões uns idiotas a dizer mal do povo do interior, ouço dizer. É o mesmo capitalismo televisivo que não hesita em televisionar, em promover, o fascismo. 

Enervado, recebo uma foto de um souto por onde o fogo passou. Tinha sido capinado e só ficou chamuscado, há-de voltar a florescer. O castanheiro resiste, como o povo de um concelho pequeno, Penedono, onde, segundo a Presidente da Câmara Municipal, ardeu 90% da sua bela área verde, com prejuízos óbvios para a cultura mais rentável, a da castanha. 


Levanto-me e caminho sem mapa. Passo ao lado da maternidade onde nasceu o meu filho e encontro um camarada, daqueles imprescindíveis. Eu sou um democrata e patriota, não sou militante do Partido. Considero camaradas todos aqueles com quem partilho um longo caminho, sejam ou não militantes. Tinha acabado de ser avô, felicito-o e afasto-me emocionado. Haja vida.

Ler


Se Nuno Teles não vem ao blogue, o blogue vai até ao professor de economia da Universidade Federal da Bahia e às suas revelações de economia política internacional. É caso para dizer: vê-se melhor do outro lado.

sábado, 16 de agosto de 2025

O que fazer?


O que fazer quando tudo arde? O que escrever quando tudo arde? É fraco consolo saber que está tudo limpo à volta da casa cercada por castanheiros, árvore resistente, árvore protetora. É só um lugar, ainda que seja o nosso lugar familiar, mas e o resto? A Presidente da Câmara Municipal de Penedono, do PSD, denunciou: fomos deixados ao abandono. 

Socorro-me de outros para escrever, dependemos sempre de outros. “A resposta que pode ser dada à degradação por vezes violenta do estado da natureza depende, em última instância, da natureza do Estado”, esclarece Pierre Blanc em Géopolitique et Climat

Portugal já não é bem um Estado. Sem instrumentos de política económica decentes, carcomido pela austeridade permanente, dominado por interesses de classe predadores, de resto apoiantes do processo de fascização em curso, o Estado nem uma frota robusta de aviões de combate a incêndios detém. 

É claro que podemos ter todos os aviões, mas o território ou é ocupado por gente e pelo seu trabalho, na terra e outro, ou haverá sempre, e cada vez mais, combustível em vez de território nacional. 

O Governo acabou de inscrever mais mil milhões de euros no Orçamento este ano para o desperdício armamentista, note-se. Luís Montenegro, um videirinho, anunciou em plena catástrofe o regresso de carros a fazer barulho, vulgo Fórmula 1, essa expressão cultural do capitalismo fóssil que nos conduziu a este estado da natureza. 

Entretanto, lembro-me de Susana Moreira Marques, da sua definição de patriotismo que falta às elites do poder, as que abandonam o país: 

 “Desiludo-me mais quando é o meu país. A negligência, a desorganização, o abandono, os contrastes entre belo e feio, triste e alegre, pobre e menos pobre, que observo quando ando na estrada, ferem-me como não acontece se viajo em países distantes em que as falhas me podem suscitar curiosidade ou até mesmo emoção, mas não me interpelam directamente. Pergunto-me, inevitavelmente, o que posso fazer. Pergunto-me o que diz sobre mim o facto de amar esta paisagem.”

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Maquete


Chama-se “Maquette for a monument to the contemplation of the possibility of mending a hole in a sock” [Maquete para um monumento à contemplação da possibilidade de remendar um buraco numa meia] e é da autoria de Jeff Wall, fotógrafo que tem uma retrospetiva no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), junto ao Tejo, em Lisboa. Não há tradução na exposição, ouça.

O MAAT, juntamente com a revista Electra e assim, é parte do branqueamento cultural da EDP, uma empresa criada pelo Estado português e que acabou na mão de estrangeiros, parte da cultura antipatriótica e logo antidemocrática da elite do poder. 

E que tal uma maquete para um monumento à contemplação de um país esburacado pelos superlucros de uma EDP ruinosamente privada?

Ler João Leal Amado e vir para a rua lutar


quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A esquerda brâmane em Portugal


Um diz que o povo é racista, o outro que a sociedade portuguesa, nem mais, nem menos, está doente por causa de situações em caixas de comentários e ainda outro afiança que ouve constantes boçalidades racistas em cafés, naturalmente representativas de milhões. Ainda ninguém usou o método Fátima Bonifácio e fingiu escutar a empregada doméstica para daí confirmar uma previamente tirada lição histórico-filosófica reacionária, mas já faltou mais.

Tenho andado a colecionar as frequentes tiradas elitistas da «esquerda brâmane» em Portugal, termo cunhado por Thomas Piketty e coautores para dar a ver o afastamento em relação às classes populares maioritárias daquilo que passa por elite diplomada, cada vez mais dominante na social-democracia ou nos ecologistas com bombas e sem luta de classes nos países do Atlântico Norte. Em Portugal, o Livre é o partido da esquerda brâmane por excelência.

O resto do artigo pode ser lido no AbrilAbril.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Da falência moral


A Al Jazeera oferece o espelho onde a comunicação social dominante no Atlântico Norte pode mirar a sua falência moral: “nos campos de morte de Gaza, o jornalismo enfrenta a sua hora mais negra”. 238 jornalistas foram assassinados por “Israel” na Palestina. 

Abaixo deste importante artigo de Asef Hamidi, diretor de informação da Al Jazeera, está uma banal “notícia” do jornal Público, onde a tal falência moral está patente em pleno genocídio, a começar na palavra “Israel”. 

Como comentou Raquel Ribeiro: “Até o Guardian e o Financial Times, usando o mesmo texto-base da Reuters, têm títulos mais decentes. Isto são escolhas conscientes.”
 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Descobrir


Um livro sobre o fascismo tardio, que comecei agora a ler, tem em epígrafe uma frase, daquelas que nunca mais se esquecem, retirada de um discurso proferido por Langston Hughes no Terceiro Congresso dos EUA contra a Guerra e o Fascismo, realizado em 1936: 

“O fascismo é o novo nome para o tipo de terror que o negro enfrentou desde sempre na América.” 

Langston Hughes (1901-1967), que até a este momento desconhecia, foi um poeta e militante antifascista norte-americano, aparentemente uma das referências do chamado Renascimento de Harlem

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Aposta, fim, começo


Esta fotografia mostra uma idosa de mais de oitenta anos a ser carregada pela polícia para ser presa. Pode ser acusada de terrorismo e condenada a 14 anos de prisão por ter exibido um cartaz numa concentração. Apelava ao fim do genocídio e dizia Palestine Action, nome de uma brava organização. Ontem, a polícia prendeu mais de quinhentas pessoas em Londres, metade com mais de sessenta anos. 

Mas esta fotografia revela também uma aposta política plausível: o ignominioso partido trabalhista, tão representativo da deriva com décadas da social-democracia europeia, acabou. O seu último ato foi de ativa cumplicidade com o genocídio cometido pelo colonialismo sionista, estando de resto bem acompanhado pela social-democracia alemã, em modo 1914, em modo de apoio a crimes contra a humanidade. Também os há assim em Portugal, por ação e omissão.

No ano passado, a atual ministra da administração interna britânica, Yvette Cooper, responsável pela ilegalização da Palestine Action, sob acusações falsas de ser uma organização terrorista, recebeu um financiamento de campanha de mais de duzentas mil libras por parte de sionistas. O dinheiro é quem mais ordena no capitalismo puro e duro, sempre prenhe do imperialismo genocida. 

Ontem foi o dia em que Jeremy Corbyn e Zarah Sultana chamaram os manifestantes londrinos pelo nome que mereceram: heróis. O seu partido em formação, já com mais de meio milhão de aderentes, é a alternativa que vai acabar com as últimas encarnações do duradouro triunfo de Thatcher, os criminosos Blair, Starmer e companha limitada. Sem apostas esperançosas é como se tivéssemos desistido.

domingo, 10 de agosto de 2025

Grande


No seu último livro – The Road to Freedom: Economics and the Good Society –, Joseph Stiglitz, economista social-democrata de matriz neoclássica (“Prémio Nobel” de Economia), refere o grande Antonio Gramsci, mas omite a sua estatura marxista gigantesca. 

Esta omissão conveniente não é o pior que tem acontecido intelectualmente a este criativo discípulo de Lénine (a quem não podemos dizer adeus, afinal), fundador, com o tantos vezes esquecido Palmiro Togliatti e outros, do Partido Comunista Italiano. 

Morreu nas prisões do fascismo, não sem antes nos deixar vários cadernos aí escritos, disponíveis na íntegra em língua portuguesa, graças à sua popularidade no Brasil, onde estão grandes estudiosos do seu pensamento. Estes não evitaram, pelo menos desde os terríveis anos 1980, que Gramsci fosse alvo das piores sevicias intelectuais às mãos de certa “teoria crítica”, incluindo nas suas cada vez mais frequentes declinações euro-liberais

Insisto, porque muitos insistem em ignorar uma das principais mensagens de Gramsci: é preciso encontrar os sinais deixados pelos subalternos nas peculiares e contraditórias tradições nacionais. 

Trata-se de uma condição político-cultural necessária para criar o que designava por vontade geral nacional-popular hegemónica, capaz de saltar das sempre parciais lutas económicas para o plano mais abrangente da liderança ético-política, criadora de uma nova ordem, de uma sociedade regulada de cariz socialista. 

Hegemonia é em Gramsci a articulação entre coerção minimizada e consenso maximizado, uma congruência consciente, obra de um bloco histórico, entre as sempre interligadas relações sociais de produção e superestruturas político-ideológicas, digamos. 

E é para a mudança progressiva, mas radical, que serve o “novo príncipe”, o intelectual coletivo, o Partido, segundo o particularmente atento leitor de Maquiavel. Tudo tem de ser pensado e organizado no fluxo da história: leninismo para guerra de posição, em suma.

sábado, 9 de agosto de 2025

Contrariar a corrosão de caráter


John Burn-Murdoch, responsável por dados e colunista do Financial Times, compilou dados impressionantes para os EUA e perguntou: “Será que a internet está a mudar as nossas personalidades para pior?”. Não sabia que o capitalismo sem freios e contrapesos se chamava internet agora.

Repito-me, porque as crenças são para ser reafirmadas: as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são a suas, a tarefa da política socialista é desenvolver as capacidades e humanizar as circunstâncias.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Várias bombas, várias medidas


Em 2022, um historiador liberal, agora militante do Livre, chamado Rui Bebiano afiançava, não o esqueçamos, que “enquanto alguém não inventar outra humanidade”, seria lamentavelmente natural que sentíssemos – esta mortífera primeira pessoa do plural – maior “proximidade” “por brancos, maioritariamente loiros e de olhos azuis, educados numa cultura com pontos de contacto com a ‘nossa’, vivendo praticamente como ‘nós’”. 

Falava da Ucrânia, onde desgraçadamente morreram cerca de setecentas crianças numa guerra já com mais de três anos. Na Palestina, onde, na realidade, estão pessoas e até uma civilização que nos são mais próximas, para usar o seu dúbio termo – dos olhos e cor da pele e do cabelo às oliveiras – foram mortas dezenas e dezenas de milhares de crianças num genocídio colonial. Mas a empatia das elites da “esquerda” e da direita não é a mesma e muito menos são as mesmas as implicações políticas que retiram. Eurocentrismo é isto, para não dizer pior. É no que dá falar em “conflito israelo-palestiniano”. 

O pai-fundador do Livre, outro historiador liberal, foi à embaixada do Estado colonial sionista que está a cometer o genocídio, não o esqueçamos também: a história não acabou e a memória também não. É o mesmo antimarxista que defende a europeização das armas nucleares francesas ou que incensou o racista Woodrow Wilson. Há uns meses atrás, não sabia se havia de chamar genocídio ao genocídio palestiniano. 

Isto está tudo ligado, passado e presente, quando se é consistente ideologicamente. E não me lembro de Rui Tavares ter sido criticado, muito menos de ter sido alvo de uma campanha mediática nesse contexto. Afinal de contas, que outro líder partidário, neste caso tão absoluto quanto informal, tem à “esquerda” o espaço mediático dele e logo no belicista Grupo Impresa? 

Várias bombas, várias medidas...

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Guerra e paz em Portugal


Escrito em coautoria com Paulo Coimbra o artigo Guerra e paz em Portugal saiu no Le Monde diplomatique de agosto e começa assim, com referências omitidas: 

O país está em guerra? A fazer fé no primeiro-ministro Luís Montenegro, está: «Nós estamos em guerra também às portas e dentro do nosso país. Nós todos os dias somos alvo de ataque nas nossas instituições públicas e nas nossas instituições privadas (…) Nós todos os dias, nomeadamente no ciberespaço, somos colocados sob ameaças reais que, se se concretizarem nos seus objetivos, colocam em grande dificuldade, em grande contrariedade, a nossa capacidade de criar riqueza». 

No Título II, Capítulo II, Artigo 135, alínea c), a Constituição da República Portuguesa é muito clara sobre as competências do presidente da República, bem como do governo e da Assembleia da República, nesta matéria: «Declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e fazer a paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República». Obviamente, não estamos em guerra, até porque não foram acionados os procedimentos que a Constituição prevê. Nunca saímos, isso sim, da cada vez mais intensa guerra de classes. 

Infelizmente, o marxismo mais simples fornece neste sombrio contexto histórico nacional e internacional enquadramento suficiente para compreender criticamente as declarações de Montenegro, bem como as suas implicações momentosas para a democracia e para o Estado social de base nacional. Estes estão internacionalmente ameaçados pela corrida armamentista, com a conivência de uma elite do poder com um intenso complexo de vira-lata. 

Pelo meio polemiza assim: 

Perante isto, o impulso antifascista pela paz exige o maior esforço político de unidade. Este terá de ser feito pela base, já que as elites políticas sociais-democratas, mesmo da chamada ala esquerda do PS, se deixaram enredar na armadilha belicista, parecendo que estão convencidas de que é possível ter tudo: desperdício militarista e Estado social. 

Um exemplo basta, ainda para mais de uma antiga diplomata como Ana Gomes, alguém que pelo seu percurso deveria dar toda a prioridade à resolução pacífica dos conflitos: «Importa que a Esquerda em Portugal (…) interiorize que a guerra é um assunto demasiado grave para ser deixado apenas aos militares, à direita e aos homens». 

No artigo em causa, a oposição a Trump é apenas nominal e as notícias da morte da OTAN são manifestamente exageradas, tudo em nome da autonomia militar de uma União Europeia crescentemente pós-democrática e sem rumo estratégico. E isto embora os tratados dessa União proíbam expressamente que o orçamento comum seja utilizado em «despesas decorrentes de operações com implicações militares ou de defesa». Fazendo tábua rasa da História, é como se o neoliberalismo que está no ADN da União Europeia desde a sua fundação em Maastricht, e ainda para mais agora armado, tivesse algo a ver com os valores da esquerda. Espelha as consequências de se imaginar no centro-leste europeu, entre os setores mais militaristas e federalistas da União Europeia. Na prática, e aí a teoria é outra, estes nunca passaram sem a OTAN, como se vê. 

É como se Ana Gomes estivesse em cima de uma qualquer fratura geopolítica. Não está. Está num país no extremo ocidental do continente, sem inimigos externos, onde a distância periférica se traduz numa vantagem (já bem bastam todas as outras desvantagens da inserção periférica), pelo menos a partir do momento em que a questão da fronteira com Espanha foi resolvida e que os militares de Abril e as lutas dos povos das colónias acabaram com a guerra colonial. Está um contexto geopolítico bem mais distendido, por muito que se tente negar tal padrão histórico. É preciso pensar o mundo a partir de Portugal. Não temos de ser arrastados pelo imperialismo. 

Finalmente, faço notar que o artigo foi escrito antes de se conhecer a “capitulação”, a expressão é do circunspecto Financial Times, da UE aos EUA de Trump também em matéria comercial... 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Um jornal com memória


Todos os números da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, desde o primeiro, de abril de 1999, estão agora acessíveis no sítio Internet do jornal, em exclusivo para os assinantes. São mais de 26 anos, a que se acrescenta sempre o número do mês, com os artigos inéditos publicados online. São já mais de 300 edições completas, mais de 850 mapas e infografias detalhados, mais de 3200 autores de referência, mais de 5300 imagens e obras de arte, mais de 8800 artigos completos. Tudo acessível à leitura online, através de um motor de busca avançado, por temas, palavras-chave, datas, países, personalidades, entre outros. Tudo organizado cronologicamente, por temas e com ligações inteligentes entre eventos, regiões, autores e temas relacionados. 

Foi um trabalho de anos, que exigiu muito da equipa que, na cooperativa cultural Outro Modo, todos os meses leva este jornal às bancas e aos ecrãs.

Sandra Monteiro, Arquivo vivo, memória presente, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, agosto de 2025.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

No coração do Douro


Já perdi a conta ao número de vezes que fiz o percurso ferroviário entre o Pinhão e o Pocinho. Não conheço percurso mais belo, parte da linha do Douro que o serviço público de televisão, sempre ameaçado, documentou com realismo, ou seja, com beleza. O serviço público ferroviário também está ameaçado. Tudo o que é decente está sob ameaça do liberalismo até dizer chega.

É sempre como se fosse a primeira vez, até porque levo lá pessoas que o fazem pela primeira vez. Como defende Adam Smith em A Teoria dos Sentimentos Morais, infelizmente por traduzir, o princípio da simpatia permite-nos também olhar de novo para o mundo, colocando-nos nos sapatos de outrem, repetindo sensações, associações e ideias como se fosse a primeira vez, num exercício de imaginação benéfico para a mente e para o corpo, sem separações artificiais. 

Enfim, para quem está na fronteira entre o granito e o xisto, o castanheiro e a vinha, o carvalho e a oliveira ou a amendoeira, chegar ao Pinhão implica descer por encostas de vistas panorâmicas, parando em aldeias onde se notam as clivagens sociais profundas que marcam o Douro e que se inscrevem nos corpos. 

Chegamos ao coração do Douro, ao Pinhão, estamos numa “pousa” mais longa, de férias, graças a muitas lutas sociais. Nascemos com uma dívida social, não nos deixemos quebrar pelo individualismo. O comboio chega a horas, ficamos numa carruagem suíça de 1974. Não tenho recursos literários para descrever a paisagem. Cheira a figos e a comboios, cheira a Mediterrâneo, que só acaba onde acabam as oliveiras, como dizia Braudel. 


Mas, de repente, lembro-me da Palestina, onde o colonialismo sionista comete um genocídio, ali onde sempre arrancou oliveiras. 

Lembro-me da crise do Douro, das importações desregradas de vinho, obra do mercado único e da política liberal única. 

E imagino um país sem austeridade, liberto do liberalismo, um país que tivesse investido na ferrovia, com ligações a todas as capitais de distrito, um país que não estivesse mais de três décadas atrasado em relação a Espanha na alta velocidade, um país que tivesse um eixo vertical, de norte a sul, com ligação à Galiza e à Andaluzia, mais um eixo horizontal ao centro, com ligação a Madrid. Viseu, onde tenho raízes, é a maior capital de distrito europeia sem ligação ferroviária. 

Relembro um memorável ensaio sobre comboios escrito por Tony Judt, um historiador social-democrata já falecido, um sionista na juventude que se tornou crítico severo do colonialismo sionista. 

Não há alegria de verão que não venha misturada com tristeza outonal. Mas faz bem imaginar um país decente no meio do Douro, pátrias libertadas, com figos e azeite e vinho e frutos secos bons para todos. Uma abundância regrada, uma “sociedade regulada”, como dizia Gramsci.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Trabalhadores descartáveis como modelo de desenvolvimento


Nas últimas duas décadas, cada reforma laboral foi apresentada como um passo necessário para tornar a economia portuguesa mais dinâmica e atractiva para o investimento. Para sustentar essa ideia, refere-se muitas vezes um indicador da OCDE sobre a protecção do emprego, onde Portugal surge entre os países com maior grau de protecção.

Mas há coisas que nunca nos dizem sobre esse indicador. Primeiro, ele refere-se apenas à protecção contra o despedimento individual sem justa causa; se olharmos antes para a protecção do emprego em geral (que inclui, por exemplo, os despedimentos colectivos), os valores de Portugal são semelhantes aos de países como a República Checa, a Letónia ou a Holanda, que são frequentemente apontados como economias muito competitivas. Segundo, uma coisa é o que está na lei, outra é o que acontece de facto: a OCDE tem outro indicador que mede a eficácia da aplicação prática dessas regras, onde Portugal cai para um distante 16.º lugar. Por fim, os estudos disponíveis não mostram qualquer correlação robusta entre o grau de protecção no emprego e o desempenho das economias.

É interessante vermos o que pensam sobre isto os investidores estrangeiros que ponderam investir em Portugal. A consultora EY faz essa pergunta todos os anos no seu Attractiveness Survey (Inquérito à Atractividade). Sabem o que os executivos responderam no inquérito mais recente, no que respeita à protecção do emprego? Que, face a outros países concorrentes, “a facilidade de contratação e despedimento no mercado de trabalho português” é uma das vantagens do país, sugerindo que “a regulamentação laboral favorece a agilidade e a adaptabilidade das empresas” (p.36). Não é bem esta história que contam os partidos de direita, pois não?

Em resumo, o mercado de trabalho português é hoje muito mais flexível do que alguns sugerem (seria estranho que não fosse, depois de tantas revisões para o flexibilizar). E não é de todo evidente que as regras actuais prejudiquem a competitividade da economia nacional.

Mas há duas coisas que sabemos. Primeiro, sempre que se reduz a protecção dos trabalhadores, seja qual for o impacto económico, degradam-se as condições de vida de pessoas concretas e, com frequência, transferem-se rendimentos de quem tem menos para quem tem mais, tornando a sociedade ainda mais desigual. Segundo, esta obsessão com a liberalização do mercado de trabalho envia um sinal claro aos investidores sobre o tipo de economia que queremos desenvolver.

Se o objectivo é promover uma economia baseada na inovação, nas qualificações e na elevada produtividade, talvez estes não sejam os melhores incentivos. Um mercado de trabalho que privilegia a flexibilidade total e o despedimento fácil pode ser atractivo para algumas empresas no imediato. Para o conjunto do país, no médio e longo prazo, só favorece a especialização numa economia sem futuro.

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

O que vai para a guerra não vai para proteção social, salários e pensões

Neste contexto de que estamos a falar, da possibilidade de superação do défice para financiar a indústria da guerra, também foi decidido, na cimeira da NATO, em Haia, a contribuição de 5% para a organização até 2035. Que impacto é que isto pode ter num país como o nosso?


Parece-me importante levar a sério a afirmação de Mark Rutte, o atual secretário-geral da NATO, quando diz que nós, europeus, estamos confrontados com a necessidade de escolher entre proteção social, saúde pública e pensões, por um lado, e, por outro lado, essa opção.

Embora seja menos eficaz economicamente e moralmente repugnante, é verdade que este gasto adicional em armas pode funcionar como funcionam todos os estímulos em que o Estado coloca dinheiro na economia e a economia cresce.

Nesse sentido, esse crescimento pode, em teoria, ser usado para, na fase seguinte do ciclo económico, financiar esta despesa. Mas isto coloca-nos problemas muito complicados.

Por exemplo, seria assim se as regras da dívida e do défice para tudo o resto não permanecessem em vigor. Só que não é assim. Como permanecem - e apesar de algumas das despesas em armamento não contarem para o défice - isto de facto quer dizer que o que vai para a guerra não vai para proteção social, para salários e para pensões.

A Alemanha tem um modelo económico assente em exportações. A ideia de exportar indefinidamente é uma ideia absolutamente errada por várias razões.

As exportações, do ponto de vista mais essencial, são produção nacional. São o produto social do trabalho de quem o executa que não é consumido por quem produz esse trabalho.

Isto, na Alemanha, o que é que significa? Significa que as indústrias exportadoras acumulam lucros, mas que não se refletem nos salários, o que cria a primeira contradição interna.

Mas cria ainda outras contradições, como vemos agora no caso das tarifas de Trump: o que os Estados Unidos (EUA) estão a fazer, independentemente do carácter mais ou menos errático das decisões do Trump, é executar um plano que decorre da avaliação por parte de uma certa elite económica e política norte-americana, que diz que os déficits norte-americanos são outra face da moeda do superávite alemão. E o que as tarifas visam é precisamente impedir a continuação deste jogo.

E, portanto, agora a guerra serve à Alemanha nesse sentido; permite substituir parte das exportações da indústria automóvel por exportações e consumo interno de material de militar promovendo desta forma o reequilíbrio da sua balança corrente, ou seja, comprimindo os escandalosos superávites – que desrespeitam, aliás, o ordenamento económico da UE que proíbe superávites superiores a 6% do PIB e que a atual administração dos EUA denuncia como sendo comercialmente hostis e mercantilistas, usando-os como justificação para impor tarifas e vender armas.

Contudo, é importante salientar que, ao contrário do que se ouve e lê quase por todo o lado, a acusação à Alemanha de manter um comércio internacional injusto não é uma originalidade de Trump e remonta, pelo menos, à Administração Obama, que acusou reiteradamente aquele país de se esconder atrás de uma moeda para si subvalorizada, o euro, para exportar mais do que importa e, assim, obter vantagem indevida sobre os seus parceiros comerciais.

O excerto acima faz parte de uma entrevista que o jornal “A Voz do Operário” teve a generosidade de decidir fazer-me e que pode ser lida integralmente aqui. Agradeço ao Bruno Amaral de Carvalho e à Rita Morais o trabalho que tiveram.

domingo, 3 de agosto de 2025

Bens públicos a sério, liberdades a sério


A economia convencional fixou um conjunto de condições teóricas para que os mercados sejam considerados eficientes: da ausência de incerteza a agentes económicos omniscientes, passando pela ausência de interdependências sociais. A partir desta ficção, construiu uma tipologia de “falhas de mercado”, tão circunscritas quanto possível, que incumbiria ao Estado, qual caixa de ferramentas funcional, corrigir. 

A existência de bens públicos seria uma dessas falhas. Tudo se avalia por uma bitola imaginária. Sob a aparência de condições técnicas – não é possível excluir ninguém do acesso ao bem (não-exclusão) e o “consumo” do bem por alguém não diminui a quantidade disponível para outrem (não-rivalidade) – esconde-se a inevitável deliberação política valorativa: que bens, que serviços, devem ser públicos? 

Aliás, um dos economistas convencionais que fixou as tais condições teóricas, Kenneth Arrow, um socialista cauteloso, dizia o seguinte: “A definição de direitos de propriedade assente no sistema de preços depende precisamente da ausência de universalidade da propriedade privada e do sistema de preços”. 

Serve esta conversa para dizer, em primeiro lugar, que a distinção público-privado não é tanto técnica quanto profundamente política, atravessada por relações de poder. Todos os feixes de direitos e de deveres, incluindo os que configuram relações sociais de propriedade, são parte de um processo politicamente instituído prévio. Por definição, este não pode ser orientado pelo irrealista critério de eficiência, tal como a economia convencional o define. Os tais feixes dependem de facto de formas de ação coletiva, sem as quais não há ação individual em sociedades marcadas pela interdependência social generalizada. 

Em segundo lugar, serve esta conversa para falar de parques públicos, dado que li um artigo na Jacobin sobre o papel dos socialistas na sua defesa e expansão, tendo por referência sobretudo a história dos EUA. 

Os parques públicos fazem parte da tantas vezes invisibilizada infraestrutura social da vida decente. Ninguém deve ser excluído, sendo um espaço de fruição coletiva, uma ilha de socialização igualitária saudável contra a mortífera pulsão mercadorizadora do capitalismo sem freios e contrapesos, um sistema que cria mecanismos de exclusão e opera pela promoção da rivalidade. 

Na ausência de ação coletiva robusta impera a previsão do economista keynesiano John Kenneth Galbraith: “opulência privada, esqualidez pública”. Impera o seletivo porno-riquismo das Paulas Amorins para menos de 1%, no fundo.

Repito-me, bem sei, mas é preciso insistir que a liberdade a sério está para lá do liberalismo

Só a ação pública socialista pode libertar os cidadãos da submissão aos mercados, que colocam obstáculos liberticidas no acesso a uma série de bens essenciais, procurando inscrever institucionalmente um princípio distributivo que casa liberdade com justiça social, duas ideias distintas, mas na prática ligadas: de cada um segundo as suas possibilidades a cada um segundo as suas necessidades. 

A provisão pública e os impostos progressivos são um dos meios coletivos para a maioria aceder à liberdade por via do acesso a bens e serviços cuja natureza muda para melhor, até porque não há barreiras pecuniárias: de facto, um parque público não é um centro comercial, uma reserva natural não é um jardim zoológico, uma biblioteca pública não é uma livraria, uma escola pública não é uma escola privada e assim sucessivamente. 

E não é a chamada “tirania das pequenas decisões” individuais pelos mercados que nos pode dar acesso às infraestruturas públicas, em sentido amplo, e às liberdades que só nelas, e através delas, se podem usufruir, incluindo pela deliberação coletiva na gestão do que é de todos. 

Aliás, qualquer feixe de liberdades só se alcança coletivamente, também graças a impostos, havendo liberdades que só se usufruem coletivamente, incluindo a liberdade de ser cidadão de um país com capacidade para decidir sobre o seu futuro de forma independente, o que pressupõe o controlo público da moeda e do crédito ou o controlo público de sectores estratégicos. Em mãos privadas, como se vê com a EDP, estes transformam-se em autênticos governos privados, concentrações de poder estrangeiro que colocam em causa a autoridade do grande garante das liberdades, o Estado democrático nacional. 

 E, já agora, o que dizer da liberdade de viver uma vida longa e saudável, num ambiente respirável, com ar limpo, água potável, uma rede de energia sustentável ou transportes públicos acessíveis? Só a ação coletiva liberta.

sábado, 2 de agosto de 2025

Haja esperança


Tenho andando a ler aos poucos a sua magnífica biografia e ainda não estou em condições de escrever sobre ela, naturalmente. Mas só a história inicial da viagem com os pais de Itália para a Argentina é todo um programa de sorte grata, de memória filial, concreta e logo universal, empática e logo humanista, de que carecemos tanto. 

Estava a concluir a introdução ao meu último livro, que acabou de sair da gráfica, quando faleceu o Papa Francisco. Quis fazer uma singela homenagem a um homem bom e que me tocou profundamente, pela palavra lida e relida, pelo exemplo visto e revisto. Foi de resto responsável por uma alteração na visão de algumas coisas relevantes deste mundo e de outros. 

Reproduzi então no fecho da introdução de A economia política do antifascismo e outros ensaios um texto sobre a economia moral de Francisco que escrevi no infelizmente desaparecido Setenta e Quatro, aquando da sua marcante visita ao nosso país, no Verão de 2023. 

Fica aqui de novo, porque sim, porque, para lá dos comunistas, e dos social-democratas que reconhecem a soberania nacional como condição necessária para o seu projeto político, é junto dos, com os, católicos autênticos, mesmo que não se saibam comunistas, que sinto a fé e a esperança alimentadas. O catocomunismo é uma das sínteses ético-políticas possíveis, parte de um antifascismo militante mais amplo.

A economia moral de Francisco

“Reparai, quando alguém tem de levantar ou ajudar uma pessoa a levantar-se, que gesto faz? Olha-a de cima para baixo. Trata-se da única ocasião, do único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se.”

O conjunto das intervenções públicas do Papa Francisco nos dias que esteve em Portugal perfaz quase meia centena de páginas. Para lá do desatento mediatismo da entusiasmada Jornada Mundial da Juventude, vale a pena lê-las.

Escolhi este excerto porque reflete na perfeição o que julgo ser a economia moral de Francisco, vertida em várias Encíclicas: a provisão dos bens necessários à vida tem de ser a terra onde pode florescer um igualitarismo que se reflete primeira e ultimamente nas relações fraternas entre pessoas. A economia substantiva nunca é neutra: existe uma economia política neoliberal, “a economia que mata”, mas também existem alternativas que permitem o florescimento humano. A posição de Francisco é clara.

E destas páginas ficam a faltar as palavras que dirigiu no crucial encontro que teve com treze pessoas, vítimas de abusos por parte de membros do clero, onde terá escutado os testemunhos e pedido, uma vez mais, perdão, como foi relatado em pormenor pelo jornalista António Marujo no jornal digital Sete Margens. É abissal a diferença em relação ao “clericalismo” por si fustigado e que ainda domina a Igreja portuguesa, que nunca se dignou a semelhante encontro.

Sim, na economia moral de Francisco tudo está ligado e a verdade está mesmo na totalidade. As ligações ficaram patentes para quem quis verdadeiramente escutar o seu primeiro testemunho no Centro Cultural de Belém. Aí criticou uma Europa que aposta na corrida armamentista e na guerra, ao invés de defender o Estado social e a paz. Chamou também a atenção, uma vez mais, para o fenómeno da desigualdade económica – “o ambiente natural e o ambiente humano degradam-se em conjunto”, já tinha demonstrado na Carta Encíclica Laudato si’, de 2105, refletindo a melhor tradição da economia ecológica, a que sabe que os mecanismos de mercado por si só nos trancam em círculos viciosos.

Na sua intervenção na Universidade Católica Portuguesa (UCP), Francisco deu uma lição necessária: “À universidade que se comprometeu a formar as novas gerações, seria um desperdício pensá-la apenas para perpetuar o atual sistema elitista e desigual do mundo com o ensino superior que continua a ser um privilégio de poucos.”

Estas palavras foram ditas numa instituição de ensino rica, tão elitista quanto marcada pela influência da “economia que mata” e do pensamento neoconservador sempre belicista, patentes na sua Escola de Negócios e de Economia ou no seu Instituto de Estudos Políticos. Há, de resto, toda uma história de formação de Chicago Boys em Universidades ditas Católicas, que Francisco, sendo argentino, conhece bem. A página mais negra foi escrita, creio, em Santiago do Chile. A UCP teve a sorte de ter sido criada poucos anos antes de Abril, mas não deixou de contribuir para a hegemonia neoliberal em democracia.

A sua Reitora anunciou a boa notícia da criação de uma cátedra dedicada à “Economia de Francisco e de Clara”. No entanto, sabemos que não há nada menos fiel a este espírito do que uma instituição que tem, por exemplo, um “programa executivo de gestão do luxo”, portanto, um programa de promoção do consumo conspícuo, um dos justos alvos da economia moral de Francisco.

Na Carta Encíclica Fratelli Tutti, de 2020, entre tantos temas cruciais, Francisco fala de uma economia do cuidado, de “nos constituirmos como um ‘nós’ que habita a casa comum”, para logo a seguir identificar um obstáculo político de monta: “um tal cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam de um ganho rápido”.  Aliás, estes poderes vivem do “descarte”, traduzido, por exemplo, na “obsessão por reduzir os custos laborais”: “sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito direto alagar as fronteiras da pobreza”, afiança.

Este é um homem simples e direto, que se dirige a crentes e não-crentes, a todos, sem deixar de fazer distinções cruciais. Como já disse, é melhor ser-se ateu do que ir à missa e depois semear o ódio. Esta encarnação do cristianismo autêntico estava a pensar em políticos como André Ventura, certamente, nos vendilhões de todos os templos e de todos os tempos. Afinal de contas, Francisco já tinha defendido, em 2016, o seguinte:

“São os comunistas que pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade em que os pobres, os débeis e os excluídos é que decidem. Não os demagogos, os Barrabás, mas o povo, os pobres, tenham fé em Deus ou não”.

Prudentemente, um dos Barrabás nacionais decidiu evitar Francisco, indo para a Madeira. A verdade assusta-o. Os testemunhos de Francisco, a sua economia moral, são sempre um excelente antídoto contra os novos rostos do fascismo gerados pelo neoliberalismo.

Até à próxima, Francisco.