domingo, 13 de setembro de 2020

Dança de cegos

Há quem se pergunte sobre que unidade popular se quer assim tão urgente.

É que as próximas eleições presidenciais arriscam-se a um autêntico desastre. E, ainda por cima, não são irrelevantes. 

Já com três candidatos que se posicionam à esquerda, o resultado final – a julgar pelo que se sabe hoje - entronará o candidato da direita e arrisca-se a catapultar o candidato da extrema-direita. Isso contribuirá, primeiro, para uma reformatação da direita e, segundo – e pior - para um recentramento à direita da iniciativa política e da política económica e social. E não se esqueça que Marcelo Rebelo de Sousa quererá deixar, no segundo mandato, o seu dedo na História de Portugal.  

Não sei que diligências foram tomadas em busca de uma solução conjunta, capaz de criar um élan à esquerda e galvanizar a maioria do eleitorado - que, na verdade, vota à esquerda. Para isso, António Costa não ajudou, mas isso não deveria ter sido um entrave. Se houve alguma iniciativa, parece todavia que não surtiu efeito.

Pior: parece que todas as forças políticas estão apostadas em estilhaçar esse eleitorado de esquerda, ao levar os seus candidatos "até ao fim", com base naquele argumento – nada aritmético e algo voluntarista – de que, na primeira volta, convém que haja o máximo de candidatos para tocar o máximo de eleitores. No fundo, é como se as eleições fossem a feijões e, assim sendo, quantos mais levarem ao voto, melhor. Mais: parece convir desdramatizar as eleições, para que não se retirem ilações políticas da vitória dada como certa do candidato da direita. Mas trata-se de um risco imenso: o de cada uma das candidaturas à esquerda ser ultrapassada pela da extrema-direita, risco que seria agravado se houvesse segunda volta. Já vimos isso noutros países. E isto tudo sem que haja ainda qualquer acordo político entre a esquerda para uma política governamental mais consistente e duradoura, com uma visão a prazo, que não seja a colagem de pequenas políticas. 

Ora, os casos portugueses do passado - como na eleição de Mário Soares e Jorge Sampaio - são instrutivos.

Relembre-se as eleições presidenciais de 1986. Havia o candidato à direita Freitas do Amaral, contra vários candidatos à esquerda: Salgado Zenha (apoiado por parte do PS e pelo PCP, cuja candidatura de Ângelo Veloso estava disposta a desistir na primeira volta), havia a hipótese de Maria de Lurdes Pintasilgo (apoiado pela ala eanista) e a vontade pessoal de Mário Soares (que nem era apoiado pelo PS). O PCP aprovara no seu X Congresso de meados de Dezembro de 1983 que nunca votaria em Mário Soares por ser “uma e a mais provável candidatura de direita". Soares partia, pois, com uma expressão mínima de eleitorado. O que fez Mário Soares? 

Em Janeiro de 1985 - como conta Rui Mateus no seu livro Contos Proibidos - Mário Soares pediu-lhe para que falasse com Frank Carlucci – ex-embaixador dos Estados Unidos (EUA) em Lisboa no verão quente de 1975, ex-director adjunto da CIA, ex-secretário de Estado adjunto de Defesa dos EUA - sobre o apoio técnico de uma empresa especializada em eleições. Carlucci - com quem Rui Mateus admite que “mantinha contactos regulares” - chegara antes a defender que Soares “era mais importante enquanto secretário-geral do PS do que como PR”, mas nesta fase desavinda com o PS, acabou por o ajudar na sua candidatura. 

Carlucci colocou-o em contacto com “uns homens do Reagan que eram the best that money can buy: Lee Atwater (vice-director de campanha de Reagan e, de 1981/83, assistente especial do presidente e em 1986 do presidente do Partido Republicano) e Paul Manafort (advogado e principal operacional da empresa), da empresa de RP Black, Manafort, Stone & Kelly. Os dois chegaram a Lisboa num voo da TWA às 7h30 de 3/3/1985. Nessa tarde, foram conversar com a casa de Soares, em Nafarros. 

“Os americanos explicaram como trabalhavam e que tudo era possível desde que houvesse meios”. A candidatura de Lourdes Pintassilgo chamou desde logo a atenção dos especialistas dos EUA como forma de dividir votos à esquerda. Para eles, “era possível eleger Mário Soares desde que tudo fosse feito para manter Maria de Lourdes Pintasilgo na corrida” (na biografia escrita por Teresa de Sousa, Soares – segundo Rui Mateus – disse que os técnicos norte-americanos lhe teriam dito que era impossível, uma versão que valorizaria ainda mais o seu papel político...)

Essa indicação dos homens dos EUA corroborou os esforços e contactos de Soares para encorajar Pintasilgo a avançar. Mas eles tinham ainda outras tácticas.

“Entre os truques que eles tinham possibilidade de plantar, caso fosse caso disso, para desacreditar um candidato como Freitas do Amaral, no momento decisivo da campanha, havia o lançamento de um artigo num grande jornal como o New York Times, através das duas toupeiras, que, embora descrevendo o candidato com 90% de informação rigorosa, incluiria 10% de ficção. Por exemplo, seria revelada uma associação secreta avassaladora com o KGB, que seria impossível de verificar em tempo útil. O feedback dessa informação correria mundo e adquiriria tal veracidade que acabaria por se transformar num elemento implacável de dúvida sobre a integridade do candidato. Mário Soares estava absolutamente eufórico”. 

Mário Soares apresentou os homens dos EUA ao seu think-tank: Gomes Mota, Vítor Constâncio, Jaime Gama, Vasco Pulido Valente. E no dia seguinte, à sua comissão técnica, com Serras Gago. Voltaram “inúmeras vezes” a Portugal. De Portugal, visitou-se a empresa em Washington. Trabalharam todos durante 3 meses. 

Depois, houve problemas porque a candidatura de Mário Soares não lhes pagou, mas isso pouco importa agora. 

 

Na visita dos norte-americanos de 11 a 14/6/85, estes lembraram que, de acordo com o contrato, era devido um pagamento de 180 mil dólares mais despesas. Mário Soares disse querer que trabalhassem, não directamente com a parte técnica da candidatura ou a comissão política, para evitar que “viesse a público a informação de que os homens de Reagan estavam a orientar a sua campanha”. E que seria pago, não pelo PS, mas que ele “já tinha falado com Almeida Santos e com Veiga Simão que resolveriam o problema através de um contrato de representação ou lobbying para o governo, nos EUA”. Isto é, o Estado estaria a envolver-se no assunto particular de uma candidatura, o que presentemente prefiguraria um crime. A 12/8/85, seria enviada ao ministro da Indústria uma proposta de acordo em língua portuguesa para ser assinada no dia 2/9/85 e cópias para o PM e para o ministro do Estado. No dia 27/8/85, Soares deu instruções a Rui Mateus para convencer Manafort a não vir a Lisboa a 2/9/85, com o pretexto de que Veiga Simão não tivera tempo de se ocupar do assunto. Manafort compreendeu que, com as legislativas a um mês de distância, que “tudo não passara de uma manobra de diversão” e, a 28/8/85, enviou carta a declarar não ser possível manter relação comercial... 

Mas parece que Soares tinha percebido à primeira. Com a divisão de votos à esquerda na primeira volta a 16/2/1986 - discutiu-se muito na altura quem tinha dividido quem, quem apresentara primeiro a candidatura... - Soares pôde passar à segunda volta e, pela pressão colocada no embate político, o PCP viu-se obrigado a reconvocar um Congresso para alterar a sua prévia decisão e votar em Soares. Soares foi eleito. Paul Manafort chegaria a ligar a Rui Mateus e lembrar-lhe: “Eu não te tinha dito...?” 

Soares que foi eleito com os votos da esquerda em 1986, acabaria, por sua vez, por conduzir em 1987 a direita ao poder, quando uma moção de censura do PRD, apoiada nomeadamente pelo PS e PCP, derrubou o Governo minoritário de Cavaco Silva; e Soares, em vez de se apoiar no Parlamento com uma maioria de esquerda, dissolveu o Parlamento, concedendo a maioria absoluta a Cavaco Silva, mas esmagando o PRD de Ramalho Eanes. Escusado será desenvolver qual a importância do mandato de Cavaco Silva - com o apoio do PS de Vítor Constãncio - no desmantelamento constitucional de 1976. 

Na eleição ganha por Jorge Sampaio contra Cavaco Silva, em Janeiro de 1996, Jerónimo de Sousa e o candidato da UDP desistiram igualmente antes da 1ª volta. 

Sabe-se, portanto, tudo. O que falta para se tentar evitar aquilo que parece ser bem mais grave: um cenário pintado com todas as cores da direita?

15 comentários:

Anónimo disse...

Mas de acordo com a sua perspectiva neste caso quais seriam as candidaturas que poderiam convergir numa candidatura comum? A de Marisa Matias com João Ferreira? Mas a impossibilidade dessa convergência na prática não se deve à impossibilidade de uma convergência programática e eleitoral entre o PCP e o BE e na verdade não se deve à inexistência de uma alternativa à esquerda do PS com uma agenda e estratégia para crescer à esquerda do PS e que queira não apenas pressionar este mas antes substituí-lo na liderança de um projecto autónomo que pudesse ser realmente de esquerda, socialista e de ruptura com o capitalismo?

Jaime Santos disse...

Eu até concordo que é necessária uma única candidatura à Esquerda, e deverá ser aquela que pode agregar mais apoios.

Mas a que propósito vem a história da candidatura de Mário Soares? É que não parece que ela dê quaisquer lições para o presente momento.

Só se for porque o PCP ainda não engoliu a derrota que lhe foi infligida por Soares em 1975, e porque depois Soares brilhantemente deixou Zenha para trás (e ninguém diz que os votos de Pintassilgo fossem todos para Zenha se ela tivesse desistido a favor deste, o que poderia até ter dado a vitória a Freitas logo na primeira volta), muito embora Salgado Zenha fosse alguém de uma dimensão humana e ética muito superior a Soares, e o João Ramos de Almeida limita-se a escrever isto por despeito...

Jose disse...

Há duas esquerdas: a que sabe que vive e viverá do capitalismo, e uma que faz de conta que pode passar sem ele.

Unidade de esquerda, uma ova!

Para a Posteridade e mais Além disse...

está muito escuro para comentar mas a escolha de um homem por parte do Pcp vai trazer-lhe maus resultados numa campanha predominantemente feminista à esquerda

João Ramos de Almeida disse...

Caro anónimo,
É verdade. Era necessário um plano de governo consistente e viável que pudesse ser a base de um programa de acção e, pela sua força, uma base de acordo político. A sua ausência redunda em pequenos acordos anuais, frágeis. Essa teria de ser a base da unidade. E isso tem faltado. Mas essas soluções, bem como a unidade, devem ser procuradas.

Manuel Galvão disse...

Foi com os votos do PS que Cavaco ganhou. Idem para Marcelo de hoje e Marcelo de Amanhã.
O eleitorado português que vai às urnas é de esquerda, mas não exagera!

estevesayres disse...

Pensar com a nossa própria cabeça



“Esta falsa esquerda, de braço dado com a extrema-direita que apresenta duas candidaturas a estas eleições presidenciais, mais não farão do que legitimar a candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa que se recandidata com o apoio de Costa e do aparelho do PS, bem como de largos sectores das forças militares e de segurança, que preferem a continuidade da política reaccionária de um governo cujas medidas políticas ele tem caucionado e acolhido.

O proletariado nunca deverá esquecer-se de que, sob o modo de produção capitalista, é a burguesia que possui os meios de produção, marketing e comunicação. Excepto a força de trabalho que pertence a cada operário que não tem outra escolha senão a de vender a sua propriedade, o seu tempo de trabalho, aos capitalistas e ao seu estado fetiche.

Reconhecer esta premissa, é reconhecer que é a classe capitalista que detém e controla todo o poder social nos órgãos económicos, políticos, mediáticos e ideológicos. O operário e o trabalhador podem recusar-se a serem alienados, dentro de limites estritos, a esta ditadura que se auto-intitula de “democracia”.

De 4 em 4, ou de 5 em 5 anos – como será o caso das eleições presidenciais que ocorrerão em Janeiro de 2021 – a burguesia “oferece” à classe operária, aos trabalhadores e ao povo uma autêntica indústria do circo eleitoral. E, no entanto, há mais de 40 anos, que essa alternância “esquerda-direita”, já não constitui mais uma alternativa, estando os fantoches cada vez mais desacreditados perante os eleitores”!

Retirado parte do texto de Luís Júdice, que me parece interessante

Anónimo disse...

Já quase toda a gente assumiu que a reeleição à primeira volta de MRS é certa, pelo que tudo se resume a marcar território para o que virá a seguir (o BE aumenta a sua "quota"?, o PCP continua a perder? o Ventura consegue atingir uma percentagem significativa da votação?, etc.).
A abstenção vai funcionar a favor de MRS e contra todos os outros, incluindo o ventura.
Ana Gomes até podia ser uma hipótese de evitar a reeleição à primeira volta mas, com tantos candidatos na segunda linha da grelha de partida, será pouco provável.
A falta de poderes do PR torna esta eleição pouco mais que decorativa e uma bandeira para a direita afirmar-se como alternativa de poder.

JE disse...

Coisas muito interessantes as postadas por João Ramos de Almeida.

Entretanto parece que nem na Holanda a posteridade tinha conhecimento disso, já que estava muito escuro. Ela estava indeciso entre assim uma coisa mais feminista e uma coisa mais,mais, à homem.

Também há o eleitorado que parece que é do PS ( está na certidão de nascimento) mas não exagera.Não se sabe se ser do PS é um exagero ou se o ir às urnas é que é

Mas repare-se na forma como João pimentel ferreira vai papagueando o que ouve nos recônditos da extrema-direita.

Há o eleitorado que vai às urnas, que é de esquerda.Mas que não exagera.

E o eleitorado que não vai às urnas....e que vota indubitavelmente na segunda derivada do Passos Coelho

Mais palavras para quê?

Tavisto disse...

O que falta para se tentar evitar aquilo que parece ser bem mais grave: um cenário pintado com todas as cores da direita?

Falta humildade democrática e vontade de convergir. Nem mesmo com o abismo à frente as forças de esquerda estancam e evitam dar o passo em frente.

Será que não há neste País uma personalidade de esquerda idónea e honesta, capaz de agregar o apoio de socialistas, bloquistas e comunistas? Estaremos mesmo condenados ao precipício!

A.R.A disse...

O exemplo do M.Soares serve na perfeição para explicar a máquina que existe por trás do crescimento da extrema direita na Europa e em Portugal.
A fragmentação do eleitorado terá o condão de se obter semelhante resultado das últimas legislativas contudo essa porta foi aberta pela excelente parceria do arco da governança estabelecido e cimentado em Portugal, PM e PR em uníssono e, fartas vezes, a uma só voz.
Tal fragmentação também servirá de barômetro para o derradeiro teste do combate político acente nos variados e distintas agendas de cada personalidade a eleição:
- João Feŕreira para demonstrar ao eleitorado comunista que, assim entenda o Comitê Central, poderá contar com ele para empunhar a nossa rubra bandeira
- Ana Gomes para liderar a ala contestatária interna do PS e preparar a sua verdadeira batalha no próximo congresso do partido onde irá prometer dar algo mais do que "uma violenta abstenção" na luta pelo lugar de secretário geral do partido. Será uma ideia assim tão rebuscada? Só o tempo o dirá.
- Marisa Matias, a eterna candidata bloquista...
- O Coiso do Chega ... bom, aqui será a prova dos nove da capacidade de aglutinação desta força política de um só indivíduo que terá uma verdadeira máquina de marketing político atrás de si que irá engolir o eleitorado do CDS ( noto que Mesquita Nunes demora a chegar-se a frente) restando saber que género de dentada dará ao eleitorado do PSD. Rio já se apercebeu tarde de mais que o Coiso nasceu de um ninho de Cuco laranja e que caso a direita democrata nada faça a camisa laranja rapidamente se tornará preta com o logo inscrito A bem da nação
Cabe a Rui Rio mobilizar o seu eleitorado em torno de Marcelo sem procurar a luz da ribalta que tantas vezes o parece queimar
- Marcelo sendo ele próprio terá esta reeleição ganha sem muito esforço com os votos do centro esquerda e direita ... desde que não vá por caminhos que o queiram levar ou que se ponha a jeito e se enrede por atalhos populistas que ele tao bem sabe mas não quer pois foram anos de preparação de opinion maker e selfies afins para largar a sua cadeira natural de mão beijada.
- O resto é uma fauna em busca de visibilidade

Anónimo disse...

Isso parece mais um ajuste de contas de um antigo militante do PCP, contra Maria de Lurdes Pintassilgo, que ela sim, teve o apoio de uma parte importante da ESQUERDA portuguesa. Sabemos como lidou o PCP com essa campanha, primeiro foi a reboque da candidatura de Zenha, o candidato , do homem do 25 de Novembro, Ramalho Eanes, e depois perante a derrota de Zenha, acabou por apoiar Soares.

Anónimo disse...

O Aires ou melhor o Ayres ê aquele que não posta

Faz transcrições que lhe parecem interessantes

Quando bota faladura por si próprio aparece como um empenhado defensor da burguesia social democrata ou mesmo neoliberal.

Para se manter como um verdadeiro Ayres tem que recorrer ao copy paste

Senão...

Vamos pensar pela nossa cabeça

JE disse...

Vindo da Holanda ficámos assim a saber que tudo se resume a marcar território para o que virá a seguir (o BE aumenta a sua "quota"?, o PCP continua a perder? o Ventura consegue atingir uma percentagem significativa da votação?, etc.

É pobre.É tosco. Mas deliciosamente tem a marca do próprio coiso


(O "ajuste de contas com pintassilgo mais o antigo militante é apenas a confirmação que a História ainda levanta ressabiados por entre os calhaus dos esgotos)

JE disse...

A profundidade do pensamento ideológico resume-se a isto?

"Há duas esquerdas: a que sabe que vive e viverá do capitalismo, e uma que faz de conta que pode passar sem ele?"

A sério...isso foi depois de ter lido algum discurso claro e lógico do outro ditador da voz de cana rachada

Também os senhorzecos feudais diziam o mesmo sobre os escravos. Por isso o ódio à Revolução Francesa?