domingo, 23 de fevereiro de 2020

Das falhas do mercado


Em outubro de 2008, escassos dias depois do colapso do banco Lehman Brothers, Alan Greenspan, na qualidade de antigo governador (agosto de 1987 a janeiro de 2006) da Reserva Federal Americana, foi convocado pela Câmara dos Representantes dos Estados Unidos da América para depor na Comissão para Supervisão e Reforma do Governo e se pronunciar sobre o papel dos reguladores federais na crise financeira.

Alan Greenspan, depois de quarenta anos a defender que “mercados livres e competitivos são de longe o melhor, e sem rival à altura, modo de organizar economias”, lá descobriu uma “falha no modelo”. Afinal, aparentemente, para seu choque, o mundo não funciona de acordo com a sua ideologia.

Abaixo, um pequeno excerto, que traduzi, das suas eloquentes declarações.

"Henry Waxman: Deixe-me interrompê-lo, porque temos limitação de tempo, mas você disse na sua declaração que apresentou que todo o edifício intelectual da gestão moderna de risco colapsou. Você também disse “aqueles de nós que contaram com o interesse próprio das instituições de crédito para proteger o capital dos investidores, eu em especial, estamos em estado de choque, descrença.” Ora, isto soa-me a que você está a dizer que aqueles que confiaram que o mercado se autorregulasse, você incluído, cometeram um erro sério.

Alan Greenspan: Bem, eu penso que isso é verdade para certos produtos, mas não para todos. Penso que essa é a razão por que é importante distinguir a dimensão deste problema e a sua natureza. O que eu queria relevar é que – excluindo os credit default swaps, os mercados de derivativos estão a funcionar bem.

Henry Waxman: Bem, então onde é que você cometeu um erro?

Alan Greenspan: Eu cometi um erro ao assumir que o interesse próprio das organizações, especificamente bancos e outras, era tal que elas seriam as mais capazes de proteger os seus próprios acionistas e os seus capitais nas empresas. E tem sido minha experiência, tendo trabalhado como regulador por 18 anos e por tempo semelhante no sector privado, especificamente 10 anos num dos grandes bancos internacionais, que os trabalhadores com funções creditícias dessas instituições sabiam muito mais sobre os riscos inerentes, e sobre as pessoas a quem emprestavam dinheiro, do que os nossos melhores reguladores do Fed. Por isso o problema aqui é que algo que parecia ser um edifício muito sólido e, de facto, um pilar vital da competição de mercado e do mercado livre, se desmoronou. E eu penso que, como já disse, isto me chocou. Eu ainda não percebi inteiramente como isto aconteceu e, obviamente, na medida em que eu perceber onde aconteceu e porquê, eu mudarei as minhas opiniões. Se os factos mudam, eu mudarei. (...)

Henry Waxman: A questão que eu tenho para si, você tinha uma crença que livres, competitivos – e isto são as suas declarações – “Eu tenho uma ideologia. O meu julgamento é que mercados livres e competitivos são de longe o melhor, e sem rival à altura, modo de organizar economias. Nós tentámos a regulação. Nenhuma funcionou de forma significativa.” Estou a citá-lo. Você tinha a autoridade para impedir práticas de crédito irresponsável que originaram a crise hipotecária do subprime. Você foi aconselhado a fazê-lo por muitos outros. Agora, o conjunto da nossa economia está a pagar o preço. Você sente que a sua ideologia o levou a tomar decisões que preferia não ter tomado?

Alan Greenspan: Bem, lembre-se, embora, se é ou não ideologia, é um quadro conceptual com o qual as pessoas lidam com a realidade. Todos têm um. Temos que ter. Para existir, você precisa de uma ideologia. A questão é se existe se é certa ou não. O que estou a dizer-lhe é que, sim, encontrei uma falha. Não sei quão significativa ou permanente ela é, mas tenho estado muito perturbado com esse facto. Mas se posso, posso finalizar uma resposta à questão...

Henry Waxman: Encontrou uma falha?!

Alan Greenspan: Eu encontrei uma falha no modelo que eu percebia [como] sendo a estrutura crítica de funcionamento que define como funciona o mundo, por assim dizer.

Henry Waxman: Por outras palavras, você concluiu que a sua visão do mundo, a sua ideologia, não estava certa, não estava a funcionar?

Alan Greenspan: Precisamente! Essa é precisamente a razão por que fiquei chocado, porque tinha, durante 40 anos ou mais, evidência muito considerável que ela estava a funcionar excepcionalmente bem (...)."

12 comentários:

Geringonço disse...

Um dos pontífices da religião "mercado livre" admitiu que, afinal, o "mercado livre" é uma ideologia criada pelo Homem, não por Deus e a sua "mão invisível"...

Se não estou enganado Alan Greenspan também afirmou que o Estado monetariamente soberano nunca pode ir à falência, ou talvez tenha sido o sucessor Ben Bernanke...

Jaime Santos disse...

Pelo menos, Greenspan é honesto. Tarde de mais, mas é capaz de admitir o erro. Gostava de ver quantos são os marxistas que, colocados em face do colapso absoluto da URSS e sendo suficientemente honestos para a admitir que esta era socialista (uma variante, claro, mas ainda assim socialista), teriam coragem para admitir o mesmo.

Vamos lá a ver. Não existem modelos matemáticos para a realidade no seu conjunto. Os indivíduos, em face da incerteza recorrem, pois clar,o à ideologia, um conjunto de axiomas mais ou menos consistentes que lhes permitem interpretar o mundo e fazer previsões acerca do futuro. Muito naturalmente, os interesses pessoais dos indivíduos influem no sistema de crenças que escolhem, que é apesar de tudo por vezes mais importante do que esses interesses (porque votam muitas pessoas da classe média alta à Esquerda, p.e?).

O problema que se coloca é que os indivíduos deveriam deixar a realidade afirmar ou infirmar esse conjunto de crenças e normalmente não é nada disto que acontece. Por obstinação ideológica (sunken cost fallacy) ou simplesmente porque é do seu interesse ater-se a essas crenças (suspeito que com Greenspan se trata de uma mistura das duas)...

Anónimo disse...

Sem querer ser ave agoirenta, mas já alguma alminha pensou que se os esforços de contenção do COVID-19 falharem, (e os surtos em Itália e na Coreia são mau prenûncio disso) o modelo português de crescimento baseado numa economia de turismo e serviços afunda instantâneamente?

Qualquer idiota com dois neurónios que ocupe um cargo de responsabilidade nesta colónia de férias do império neocolonial europeu deveria estar a pensar sériamente em alternativas.

Jose disse...

O que ele deveria ter percebido é que bancários pagos por promoverem transacções e não pelo seu efectivo resultado se equiparam a políticos à caça de votos e não de resultados efectivos.

É a canalha do 'já e agora', a ideologia do imediatismo, do exibicionismo em cima do aparente.
E lá está o jornalismo das 'caixas' para garantir o som.

João Ramos de Almeida disse...

Caro Jaime,

A sua atitude parece ser: "De facto, o mercado não funciona como instrumento de afectação de recursos, mas sendo sinceros, acho que podemos voltar a usá-lo".

Há-de concordar que isto não faz sentido.

E mais. Usa sempre o argumento da sinceridade para voltar ao seu tema de clivagem: o socialismo não funciona, e portanto se todos formos sinceros, nunca mais o usaremos. :-)

Há-de concordar que a sua atitude tem dois pesos e duas medidas. Porque apenas acha que a primeira é melhor que a segunda. E não vê que a segunda se verificou - mal ou bem - porque a primeira não funcionou. E - para mal dos seus pecados - a segunda estará sempre sobre a mesa porque haverá sempre pessoas que estão dispostos a dar o benefício da dúvida ao mercado para que o socialismo não venha.

Era tempo de começar a pensar no que poderia ser o socialismo, aquele bom socialismo, que acha estar disposto a aceitar - ainda que nãoo defenda -, contra a lógica do mercado. Sim, porque eu acho que lá chegaremos os dois.

Neste pequeno capítulo, podia lhe contar imensas histórias nacionais sobre o que se pensava do socialismo da URSS. Mas que nunca as ouvirá, tal como não ouve nenhum socialista nacional a criticar qualquer direcção de um país capitalista. Há irmandades. (Leia o livro do Varoufakis e verá, na introdução, esse conceito referido como os insiders e os outsiders. Aos insiders tudo é dito e discutido; aos outsiders, àqueles que vêm cá para fora contar, nenhuma informação é comunicada).

Possivelmente se deveria discutir mais e mais abertamente. Estou consigo. Mas o mundo vive em guerra. E mesmo a paz é uma guerra surda. E isso condiciona muito a abertura de uma tertúlia pública sobre os males dos sistemas. O que não quer dizer que não existam opiniões.

Pense sempre que o facto de não as conhecer, não quer dizer que não existam. E que não se pense nelas.

Anónimo disse...

José mais uma vez patina na maionaise. LOL

Com que então, "É a canalha do 'já e agora', a ideologia do imediatismo, do exibicionismo em cima do aparente."?

Não se trata do imediatismo, são os resultados anuais e a necessidade de produzir lucros mesmo que isso signifique correr riscos e pôr em causa a sustentabilidade da empresa a longo prazo.

Porque:

Os resultados anuais sustentam os prémios das administrações.
Os prejuízos resultantes dos riscos assumidos nunca serão imputados às administrações que quando a coisa estoirar já terão empochado uma pipa de massa.
A partir de uma dimensão dita "sistémica", conceito propositadamente vago, existe a garantia que o estado não deixará cair o banco ou a empresa.
E como é difícil provar que o esvaziamento das empresas e o seu colapso a longo prazo sejam intencionais há a garantia de impunidade.

É o chamado crime perfeito.

A conclusão que deveria ser óbvia até para o José é que o capitalismo encontrou mais uma forma de lucrar à custa dos estados e dos cidadãos, obrigando-os a assumir os prejuízos dos riscos com que lucraram as administrações e accionistas dos grandes conglomerados financeiros porque são TBTF.

Anónimo disse...

Joé parece ainda não se ter apercebido que a figura do banqueiro que gere o seu próprio negócio há muito foi substituída por gestores altamente especializados e que se fazem pagar a peso de ouro.
Chamar-lhes "bancários" é uma tentativa saloia de evitar reconhecer o seu verdadeiro estatuto.

Jose disse...

"De facto, o mercado não funciona como instrumento de afectação de recursos…"

Espantoso!
Por milénios vêm funcionando os mercados, até que chegaram uns illuninati que sabem mais e melhor!

Sempre houve vigarista nos mercados e fora deles.

Jose disse...

«gestores altamente especializados e que se fazem pagar a peso de ouro»

São bancários que constroem a mais lucrativa carreira proletária à custa de esquemas de lotaria e fantasia, comprando e chantageando governos.

São também de grande utilidade aos ideólogos de esquerda, para quem são um emblemático símbolo de um capitalismo facilmente odiento, a par de utilíssimo instrumento de criação de moeda, substituindo-se à sanha impressora de papel que a sua ideologia ambiciona.

Anónimo disse...

ROTFL

Finalmente a costela jacobina de José acordou estremunhada.
Estaremos a assistir ao nascimento de um grande rebolucionário? Eu limito-me a rebolar-me de riso.
Agora José já só precisa entender que não é só na banca que foi criada uma nova casta de gestores que desde a revolução neoliberal de Tatcher, Reagan e Volker se apropriam de uma crescente fatia das mais-valias da economia global.
Dizer que "São bancários que constroem a mais lucrativa carreira proletária à custa de esquemas de lotaria e fantasia, comprando e chantageando governos." é uma dos mais criativos exercícios de fantasia ideológica. Realmente só este José para chamar proletários a um grupo que comanda metade da riqueza mundial. Genial! LOL

Anónimo disse...

Toca a acordar, pessoal!

Ainda não perceberam que a epidemia, quase, quase pandemia do COVID-19 é uma ameaça directa ao modelo de desenvolvimento imposto pela EU a Portugal?

Os fluxos de turismo estão a secar por todo o lado. Pensar que o nosso país será imune à propagação do virus é completamente fantasista.

A meu ver a época turistica de 2020 está já sériamente comprometida. Isso corresponde a um choque (mais outro!) assimétrico violentissimo. Estão à espera de que as receitas do turismo caiam a pique para exigir dos suseranos de Bruxelas a mudança de política?

Depois não digam que não foram avisados.

Anónimo disse...

José, enquanto troll direitolas está nitidamente a perder (¿ou melhor, a ganhar?) qualidades.

Agora até diz que (os "proletários-bancários") "São também de grande utilidade... ...a par de utilíssimo instrumento de criação de moeda".

E não é que o homem tem razão? Inacreditável! LOL
De facto todos os ciclos de expansão da história recente foram acelerados pela criação de moeda por meio da concessão de crédito. O segredo da abelhinha é para que fim é utilizada a massa monetária assim criada.

Em relação à direcção do crédito convém prestar atenção a uma das maiores autoridades em banca, o Professor Richard Werner:

https://www.youtube.com/watch?v=IzE038REw2k