quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Não há jovens globais, não há política global


A propósito de Greta Thunberg, Rui Tavares (RT) escreveu hoje no Público que toda a política é global. Mas está errado. Na política, como em toda a realidade, há diferentes escalas, e interdependências entre elas com intensidade variável. A política é multinível (local, regional, nacional). O que existe de político acima do nacional é do domínio das relações inter-nacionais. Uma coisa é o activismo de Greta que, sendo actividade política, tomou uma dimensão internacional. Outra coisa é a deliberação, legislação e execução das políticas e, essas, são nacionais porque é a esse nível que estão institucionalizadas.

RT mistura tudo, de tão deslumbrado que está com a campanha de Greta (e da equipa que tem por trás) que, é preciso reconhecer, acelerou a consciencialização dos cidadãos quanto à urgência da mudança, embora de uma forma muito vaga, recuperável pelos interesses instalados enquanto “capitalismo verde” que é a lógica da UE. Na segurança que lhe dá o credo cosmopolita, RT afirma que os argumentos dos soberanistas de esquerda, no meu caso portanto, “são repetições de um dogma que não se preocupavam em demonstrar, requentando teses direitistas do período de entre-guerras”. Não sei a que dogma e teses RT se refere, mas parece-me que a sua fé cosmopolita lhe filtra a realidade e o impede de ver algo bem concreto, algo que os soberanistas de esquerda tomam a sério: não há – e nunca houve – democracia sem soberania. Quando os povos colonizados lutaram pela sua independência, lutaram pela condição básica de poderem decidir livremente da sua organização social, lutaram e morreram pelo direito de exercerem a soberania, pelo direito de poderem fazer escolhas autónomas, e de assumirem as suas consequências, boas ou más.

Pelo contrário, RT não tem nenhuma base histórica para dar força ao seu argumento de que à escala nacional “pouco se poderia fazer”. A fé de RT na escala global é tão grande que nem se dá conta (ou dá, mas recalca) da impotência da ONU e do seu Secretário-Geral para acelerar o processo da transição energética. Nem dá conta de que o que pouco, e demasiado lentamente, se vai decidindo resulta de compromissos ao nível inter-nacional (por este dias em Madrid), exactamente àquele nível que RT apaga com a palavra “global”. Aliás, a campanha de Greta não terá sido mais do que espectáculo mediático – onde os interesses dominantes gostariam de a aprisionar – se não houver uma pressão muito maior dos cidadãos nacionais – só na cabeça de um globalista é que há cidadãos globais – sobre os seus governos.

Sim, há interdependências entre escalas. Portanto, quanto maior for o número de jovens por todo o mundo a manifestar-se, maior é a expressão mediática da pressão política e, esperemos, mais mobilizáveis serão os jovens portugueses para a concretizarem em Portugal. Mas RT tem a obrigação de perceber que as manifestações que se fazem fora de Portugal não exercem pressão significativa sobre o nosso governo. Essa pressão vem/virá dos portugueses (na rua e nas redes sociais), dos nossos partidos (na Assembleia da República e nos media tradicionais) e, eventualmente, de alguma diplomacia europeia. Em última análise, será na escala nacional que as políticas de resposta à emergência climática se concretizarão, melhor ou pior.

Quando RT nos diz neste artigo que, no caso de Greta (como no de Malala com a educação das meninas), estamos perante uma “política global”, está a usar o termo “política” num sentido que omite a natureza institucional da política; o termo “global” oculta o enraizamento da política em sistemas socioculturais concretos, aí onde se joga a eficácia de toda esta mobilização. Os jovens de que fala RT, “já nascidos numa cultura e numa esfera de comunicação muito integrada”, quando emigram, ainda têm saudades da família, da terra onde cresceram e dos amigos que deixaram para trás. Pelos testemunhos que tenho lido e ouvido, incluindo o de familiares, percebo que não lhes é indiferente a sorte da comunidade que foram obrigados a abandonar. São jovens abertos a outras culturas, com vontade de conhecer mais mundo, mas são jovens com raízes. Não são “jovens globais” porque isso não existe.

Eu, enquanto soberanista de esquerda, vejo esse activismo como algo positivo, algo que dá força aos que lutam pelos mesmos valores nas comunidades onde vivem, onde elegem quem os representa e que, eventualmente, executarão as políticas que respondem aos seus anseios. É simplesmente isto que RT desvaloriza: a soberania do povo exercida democraticamente. Em nome de uma "política global" sem povo, sem parlamento e sem governo, vem dizer-nos que o problema só pode ser resolvido à escala “da humanidade inteira”. À escala de um todo, “do único auditório que o pode resolver”. Nisto, RT assume com muita clareza o seu ‘holismo’, aquilo que, em filosofia das ciências, é uma forma de reducionismo: as partes ficam subsumidas no todo (neste caso, imaginário). Um reducionismo pós-moderno, típico de neoliberais progressistas que, dizendo-se de esquerda, analiticamente depreciam a única fonte que pode legitimar o poder político, um povo que vive num território delimitado. A “política global” de RT é uma ilusão. E uma lástima.

12 comentários:

Jaime Santos disse...

Rui Tavares é demasiado inteligente, Jorge Bateira, para que a sua posição se reduza à caricatura que deseja fazer dela.

A mobilização dos jovens é importante porque ela obriga os seus Governos a agirem e porque motiva jovens noutros locais a fazerem o mesmo. Mais, os jovens pressionam para que os seus Governos ajam em conjunto, porque aquilo que um País pode fazer sozinho é na verdade muito pouco, excepto talvez no caso das grandes potências como os EUA ou a China.

Na verdade, são os soberanistas que se esquecem que dado o grau de integração tecnológica das nossas economias, é o próprio conceito de soberania que está posto em causa e não vai conseguir que o génio volte à caixa, por mais que advogue o proteccionismo e o regresso a Economias nacionais.

Quero vê-lo a si e a outros a convencerem as novas gerações a abdicarem da tecnologia que os liga em rede, para bem e para mal. Boa sorte para isso...

De facto, a TINA manda. Uma TINA por falta de comparência da Esquerda que, perante a falência do modelo keynesiano nos anos 70 e da ascensão do neoliberalismo, continua a reciclar velhas receitas caducas...

Tavares pode não ter a resposta para os problemas actuais, mas pelo menos sabe isso...

Geringonço disse...

Não há neoliberais progressistas...

Rui Tavares é apenas um neoliberal que se julga progressista.

Rui Tavares é um idiota útil ao serviço dos interesses que detêm o Capital.

Ser pelo aborto e casamento gay não torna automaticamente alguém num progressista, muitos da direita são pelo mesmo...

Anónimo disse...

Não há nem nunca houve democracia sem soberania, nem democracia sem moeda soberana, a moeda determina uma realidade circunscrita, as trocas comerciais a condição de vida das populações.

Tornar global é equilibrar, erguer muros e barreiras não resolve os problemas de ninguém, pelo contrário, da forma como o mundo foi globalizado essa tentativa facilmente resultará em guerras onde os que vão perder são os que agora já perdem.

É urgente a democracia mas não é a nossa que é urgente são todas as que conhecemos e as que nos relacionamos, não é disfarçável o reducionismo que são hoje os parlamentos, olhe para a abstenção e veja quantos se sentem hoje representados.

O capitalismo "verde" é uma fraude, e os que advogam que o mundo tem de ser salvo por este modelo devem ser severamente questionados sobre o que estão na realidade a salvar. A postura intransigente e autoritária está de ambos os lados da barricada, o que temos de defender é a civilidade não o "planeta".

Obrigado Jorge Bateira por este texto, tem imenso substrato.

Paulo Marques disse...

Jorge,

Que raio tem a tecnologia a ver com a soberania? É a treta de associar o nacionalismo ao fechar fronteiras outra vez?
Epá, alguém explique aos países asiáticos que o proteccionismo é anti-trocas comerciais, que continuam sem perceber depois de se industrializarem graças a ele.
Falência do modelo Keynesiano? Aquele que demonstrava que o QE do BCE não tinha nenhum dos efeitos estimados? Que o Euro ia ser um desastre de estagnação económica? Epah, estou convencido.

Otto Paradis disse...

Bem haja professor. Agradeço sempre a sua dedicação à educação e à honestidade intelectual. Bem sei que deve ter um nível de tolerância à ignorância superior ao meu, mas permitir todo o tipo de comentários no blogue dos mesmos perfis falsos de sempre, transcende-me. Além disso, dar relevo a essas vozes é provavelmente contraproducente, pois são elas que alimentam a nova turba digital de cobardes raivosos. Se os deixarmos, sabemos que rapidamente se transformam nos maiores inimigos da humanidade. Tudo começa por santos que genuinamente se pensam inteligentes, cultos e que nunca têm dúvidas, até aos tavares que de desgraçadinhos sem graça se pensam engraçados.
No caso do segundo, é só o sinal da degradação criminosa da comunicação social que o promove juntamente com todo o tipo de deseducação e desumanidade.
Posto simplesmente, e só aqui é que tenho o atrevimento de pensar que poderei acrescentar alguma coisa de proveitosa ao excelente artigo do professor, é que os verdadeiros políticos profissionais têm como primeiro axioma, que a política é sempre local. E sempre que um político não o entendeu morreu (politicamente, claro).

Anónimo disse...

Dois artigos em defesa da justa perspectiva de Jorge Bateira em relação à impotência dos movimentos globais.

O primeiro para aclarar as relações entre neoliberalismo e democracia e a sua evolução.

https://www.ineteconomics.org/perspectives/blog/how-neoliberal-thinkers-spawned-monsters-they-never-imagined

O segundo para mostrar como organizações supra-nacionais com pretensões a estados como a EU são extraordináriamente permeáveis ao lobbying e à currupção:

https://www.les-crises.fr/les-geants-du-petrole-ont-depense-250-millions-deuros-en-lobbying-aupres-de-lunion-europeenne-selon-des-ong/

E os escândalos sucedem-se: Foi o caso do "dieselgate", foi o caso do "roundup" e tantos outros que demonstram que a suposta democracia da EU é apenas um disfarce para um cartel corporativo que de facto comanda as instituições europeias.

Bem falantes como Rui Tavares apenas servem de parra para disfarçar a nudez de um capitalismo cartelizado.
E Rui Tavares desempenha bem o seu papel de arrebanha-tolos. Ao apontar para o espaço global onde não podem ser atribuidas responsabilidades politicas nem sufragadas acções, leva hábilmente a discussão para o domínio global onde garantidamente reinará a impotência e a impunidade.

Isto é, Rui Tavares fará muitas vascas e proferirá declarações tonitruantes mas que serão perfeitamente inconsequentes e inóquas para os poderes de facto dos conglomerados que dominam a energia ao nível planetar.

O espaço global é, devido à inexistência de um poder judicial e de uma representatividade global, uma terra sem lei em que o mais forte não é necessáriamente o mais sábio mas que no entanto impõe a sua vontade. Remeter portanto para o vazio global é a maneira mais segura de assegurar a ineficácia daquilo que se "jura" defender.

Anónimo disse...

Quanto a Jaime Santos, continua na senda da tolice, benza-o deus não o lamba o gato.

"Quero vê-lo a si e a outros a convencerem as novas gerações a abdicarem da tecnologia que os liga em rede, para bem e para mal." Diz ele.
Por alminha de quem, pergunto eu, teriam as novas gerações de abdicar "da tecnologia que os liga em rede"? Ganda "strawman"!

Quanto à falência do modelo keynesiano é uma noticia manifestamente exagerada como diria Mark Twain ("news of my death has been greatly exaggerated").
Para isso basta lembrar as recomendações de Mario Dragui ao abandonar a presidência do BCE, essencialmente corroborando aquilo que tantas vezes foi referido neste blogue, a saber, que no "zero lower bound" a polítiva monetária é ineficaz e só a politica fiscal pode resolver o problema. Se isto não é uma ressurreição keynesiana não sei o possa ser mais explícito.

Portanto Jaime Santos continua tolinho. Quoi de neuf? LOL

Anónimo disse...

Quanto ao "grau de integração das nossa economias", de que fala Jaime Santos, recomenda-se que consulte as últimas estatísticas do comércio mundial, para não dizer tantos disparates.

Em apoio da ideia de que o pico da globalização já ficou para tràs, queram ler este artigo da Bloomberg:

https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2019-06-16/huawei-phones-made-under-u-s-ban-would-be-fine-not-innovative

Isto é, Jaime Santos está uns anitos atrasado. Notem bem o esforço que fazemos para que ponha as leituras em dia, mas parece que a caixa dos pirolitos já não dá para mais. Temos pena.

Abraham Chevrolet disse...

Rui Tavares é demasiado inteligente,afirma um comentarista.
Até os mais inteligentes se enganam,está ns cara.
Deixemos a inteligência a quem isso basta,fiquemos maioritariamente com a experiência que de modo muito mais fiável mostra o caminho.

Lowlander disse...

Excelente texto Jorge Bateira. Para ler, reler, anotar e recordar.

OakWood disse...

Em total acordo com a análise. Acrescento apenas que o deslumbramento globalista do Rui Tavares tem raíz numa ilusão psicológica e ideológica que é a de querer resolver problemas que não se conseguem resolver na sua devida escala através de uma iluminada (a dele e a dos que pensam como ele - quando conseguem comunicar, claro está...) intervenção global por cima, que dispensaria esses engulhos que são as particularidades culturais, históricas e políticas do percurso dos povos.

É bom lembrar também que o senhor em causa não é inovador: as ilusões globalistas já pintalgaram e continuam a pintalgar a intervenção de muitos democratas com ou sem partido, e tem uma outra derivação que é a da convergência forçada de lutas e de causas, ou seja, a ilusão maniqueísta de que um movimento forte de um sector tem que forçosamente conduzir a um movimento forte de todos os sectores.

António Laúndes disse...

Mas o "globalista" RT não um exemplo de reduccionismo localista : Mas quem é RT senão alguém que é apenas dependente dos amplificadores e das lupas de localismos tão pouco "globais" como certos "canalzinhos" e "programinhas" dos ditos " Orgãos de Comunicação" de um país que se quer independente e se quer ser soberano( não por RT, claro).
António Laúndes