quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Mudança de rumo?

O governo alemão apresentou recentemente a Estratégia Nacional para a Indústria 2030. Entre outras medidas, pretende criar um fundo público para assumir o controlo de empresas do setor industrial, em “circunstâncias excecionais” e “por um período limitado de tempo”, procurando garantir a sua capacidade para competir com empresas estrangeiras. Esta estratégia de nacionalizações parciais seria justificada em “casos muito importantes”.

A preocupação com a capacidade competitiva da indústria europeia esteve também na base do megaprojeto de fusão das empresas ferroviárias Siemens (multinacional alemã) e Alstom (francesa), anunciado em 2017 com o objetivo de criar um gigante europeu na ferrovia, capaz de concorrer com a chinesa CRRC e a canadiana Bombardier. O projeto foi agora chumbado pela Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia, sob o argumento de que “as outras empresas [europeias] não iriam conseguir acompanhar a concorrência criada pela fusão”.

As reações não tardaram: Joe Kaeser, presidente executivo da Siemens que já apelidara os técnicos da Comissão de “tecnocratas retrógrados”, apressou-se a pedir uma “reestruturação urgente” da política industrial europeia, à semelhança de Peter Altmaier, ministro da Economia alemão. Também o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, considerou "obsoletas" as regras europeias e criticou o "erro político” da Comissão. Já o The Economist condenou as intenções dos políticos europeus e defendeu que estas deveriam fazer “soar os alarmes” da ortodoxia, o que, de resto, teve eco na opinião dos seus representantes por cá.

Na verdade, tanto o plano de investimento público anunciado pelo governo alemão como o projeto de fusão contrariam a ortodoxia económica, inscrita no funcionamento da União Europeia, segundo a qual o desenvolvimento dos países apenas é possível se adotarem medidas como a privatização de empresas públicas, a promoção da iniciativa privada e da concorrência (combatendo os monopólios), a liberalização do comércio internacional, entre outras. O sucesso dos países deve-se, segundo esta linha de raciocínio neoliberal, à sua integração na economia internacional, sem interferências do Estado. É esse o esquema teórico que sustenta as regras da concorrência da União Europeia, desenhadas de forma a promover a livre iniciativa privada e impedir qualquer forma de intervenção dos Estados em empresas naconais.

No entanto, estas regras são erradas e as ideias em que assentam são fundamentalmente falsas. Como já foi descrito no livro Bad Samaritans, escrito pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang e resumido de forma brilhante aqui, a história mostra-nos que todas as grandes potências mundiais recorreram a formas de protecionismo e intervenção estatal de forma a desenvolver a sua indústria e capacidade produtiva antes da abertura ao comércio externo. Foi esse o caso do império britânico na construção do seu domínio industrial no início do século XIX, através de subsídios à produção nacional ou de tarifas aduaneiras, antes da revogação das Corn Laws (impostos alfandegários que protegiam os cereais britânicos da concorrência estrangeira) em 1846.

A imposição do comércio livre aos países mais fracos foi acompanhada da implementação de tarifas aduaneiras, subsídios à produção e apoios públicos à inovação em países como a Alemanha e os EUA, que conseguiram desenvolver a sua indústria e ultrapassar o poderio do Reino Unido, tornando-se líderes tecnológicos. Esta estratégia de desenvolvimento foi seguida também pelo Japão e, mais recentemente, por vários países asiáticos – Coreia do Sul, Taiwan, Índia ou China – cujas medidas de proteção aduaneira, investimento público robusto, apoios estatais às empresas e controlo público do setor financeiro e dos movimentos de capitais têm permitido sustentar o seu desenvolvimento industrial.

Percebe-se, por isso, o empenho de Peter Altmaier em alterar a política industrial do país e promover o seu desenvolvimento tecnológico e produtivo através do apoio do Estado, sobretudo numa altura em que aumentam os receios de desaceleração do crescimento alemão.


No entanto, esta decisão do governo alemão contraria toda a orientação da União Europeia ao longo dos anos, cuja obsessão com as regras da concorrência ordoliberais levou a que impusesse severos limites ao intervencionismo público na economia, impedindo a prossecução de políticas industriais ativas pelos Estados-membro e beneficiando apenas as empresas que já eram fortes à partida.

Um plano de investimentos alemão que beneficie apenas os seus interesses é politicamente insustentável, pelo que este teria de ser pensado a nível comunitário. No entanto, uma viragem radical da política industrial europeia parece muito pouco provável, devido à resistência da ortodoxia nas instituições (reveladora de um projeto europeu visivelmente desorientado). Além disso, uma década de austeridade enfraqueceu substancialmente as condições para o desenvolvimento europeu. Os riscos serão suficientes para que a UE mude de rumo?

12 comentários:

Anónimo disse...

Exacto. "...(reveladora de um projeto europeu visivelmente desorientado)...".
O projecto europeu está ainda na fase de um projecto em curso para uma, mais ou menos plausível, União Europeia.
Como aplicar regras de ou protecionismo ou liberalismo a um todo ainda não existente ?.
O que transparece é apenas uma burocracia subserviente e ao serviço dos interesses do mais poderoso dos elementos. Óbvio.
Primeiro defina-se e organise-se o todo. Depois ...

vitor disse...

Que remédio. Só os burros não mudam de ideias.

vitor disse...

Não é só em Portugal que a China vem às compras.

aires esteves disse...

Uma vez mais a UE procura resolver os seus interesses (e da sua classe), e neste caso do imperialismos alemão e dos seus capitalistas!
Perguntar-se-ia ao governo do PS do António Costa, apoiado pelas suas muletas o que é que têm a dizer sobre esta estratégia politica e económica da chamada UE? NADA?!
Por outro lado, e não fugindo muito ao assunto: O que fizeram às "nossas empresas", que produziam este tipo de materiais?
E onde andavam os senhores do PC do Barreirinhas Cunhal e do PS do Mário Soares da UDP do Tomé, hoje BE!? Já não vou falar na INTERSINDICAL, nem na UGT, por que a maioria dessa gente(para não dizer outro nome) traíram ao longo dos anos os operários e demais trabalhadores. Se tem duvidas, vejam como esta o movimento sindical: Os Sindicatos as Comissões de Trabalhadores e delegados sindicais.. é só contar pelos dedos!!! Como podem observar no meu comentário, não vou perder o meu precioso tempo em falar no PPD/PSD Cavaco/Santa Lopes/Barroso, nem tão pouco no CDS/PP Portas/Cristas porque essa gente nunca se preocupou como o País e muito menos comos os operários e de mais trabalhadores, visto pertenceram na sua maioria a uma classe de exploradores...

S.T. disse...

A tectónica política mundial está a sofrer grandes convulsões como resultado de fenómenos, uns mais recentes como a eleição de Trump e outros mais longínquos mas prenhes de resultados no presente.

Entre os acontecimentos mais longínquos eu situaria dois gambitos falhados da diplomacia dos USA. O primeiro traduziu-se na travagem da desagregação da Rússia e o seu renascimento politico-militar. O segundo foi a integração da China na OMC que era suposto redundar na sua democratização e afinal o PC chinês conseguiu o feito de modernizar o país mas preservando-o de interferências políticas ocidentais.

A estratégia chinesa tem-se traduzido em aquisições de empresas de alta tecnologia visando deitar mão essencialmente à propriedade intelectual e know-how tecnológico. Para os chineses faz sentido porque já têm base tecnológica e formação cientifica que lhes permite absorver e integrar esses conhecimentos sem terem que investir tanto em pesquisa.

Trump, que me lembre, foi o primeiro (desta vez) a tomar medidas protectoras instado por conselheiros como Peter Navarro. Curiosamente o caso assemelha-se à fase final da URSS em que Reagan chegou à brilhante conclusão que os USA estavam a competir consigo próprios no despique com a URSS porque esta espiava muito eficazmente as indústrias militares e tecnológicas americanas.

Toda a presente guerra comercial deve ser vista muito mais no prisma do domínio tecnológico e militar de longo prazo. A Alemanha e a França acordaram com o sururu que Trump levantou.
Curiosamente a França tem serviços de protecção contra espionagem industrial e guerra económica bem organizados, mas aparentemente o poder político não fazia o devido uso desses dados.

As movimentações alemãs vão no mesmo sentido. Não se trata portanto de nacionalizar empresas, nem a CDU-SPD se converteram ao marxismo, mas trata-se de blindar o tecido empresarial alemão contra aquisições "indesejadas".

E voltamos à lógica dos blocos, com os USA a usarem descaradamente o ser poder por meio de sanções à esquerda e à direita, obrigando os aliados e parceiros comerciais a contorcionismos e acrobacias para se aguentarem no balanço. É assim em relação ao Irão, mas também em relação à Russia e à China.

A Alemanha teve que invocar e defender firmemente os seus interesses energéticos sob a forma do gasoduto Northstream2 contra os propósitos estratégicos dos USA que pretendiam a todo o custo isolar a Rússia, mesmo que isso prejudicasse gravemente a sua antiga aliada.

Portanto é natural que se veja uma certa desorientação porque se entrechocam vários imperativos e se assiste a uma mudança importante de paradigma no que concerne ao comércio mundial e à globalização.

S.T.

S.T. disse...

E claro, quero deixar o meu aplauso ao Vicente Ferreira que nos trás mais um texto interessante e bem fundamentado.

Noto também uma tendência para aparecerem cada vez mais comentadores com conhecimento de causa, o que melhora a qualidade geral. Esperemos.

S.T.

Anónimo disse...

"Como podem observar no meu comentário, não vou perder o meu precioso tempo em falar no PPD/PSD Cavaco/Santa Lopes/Barroso..."

Claro que não. O Sr Aires prefere falar no que nos idos tempos de 75 também falavam aqueles trastes do MRPP. A direita sempre teve a mão untada por estes indivíduos. O coitado do Garcia Pereira já recebeu a paga por não obedecer incondicionalmente a um tal de Arnaldo Matos. O Sr Aires retoma apenas os tiques dos tempos do Barroso de outrora

S.T. disse...

Em todo o caso faço notar um detalhe a respeito destas medidas de protecção contra aquisições indesejadas: É que são tomadas por um estado, sem qualquer consulta das instituições comunitárias numa lógica de defesa dos seus interesses directos. E o mesmo estado não se coíbe de desenvolver lógicas predadoras no próprio seio da EU. Os "sócios" da EU que se danem! LOL

Quando é que os lorpas europeístas tugas abrem a pestana?

Outra questão são os "ruídos" que se ouvem sobre um suposto futuro investimento alemão em pesquisa. Primeiro porque já vem tarde. E segundo porque os números avançados são ainda ridiculamente pequenos.

S.T.

S.T. disse...

Aproveito para introduzir aqui a bucha de uma publicação que mereceria ser tratada ao nível de um post dedicado. Por isso aqui fica só o desafio e o link:

http://bostonreview.net/class-inequality/suresh-naidu-dani-rodrik-gabriel-zucman-economics-after-neoliberalism

S.T.

S.T. disse...

Este é o site do colectivo de economistas referido:

https://econfip.org/#

Com pdfs para as contribuições de cada um deles.

S.T.

Vicente Ferreira disse...

Caro S.T., agradeço novamente as interessantes sugestões de leitura.

Aónio Eliphis disse...

Pena o ST não recomendar David Ricardo ou Adam Smith, que nos demonstram que o protecionismo a longo prazo é sempre prejudicial para ambas as partes. A esquerda sempre teve um fascínio pelo aforismo salazarista do "orgulhamente sós".