quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Mercado único, política única

Esta semana, Jeremy Corbyn cedeu à pressão da ala liberal do Labour e anunciou o apoio do partido a um novo referendo sobre o Brexit. O apoio ao referendo agrada sobretudo aos que votaram pela permanência do Reino Unido na União Europeia e preferem evitar a rutura. No entanto, a manutenção do Reino Unido no Mercado Único implica o cumprimento de regras de concorrência que dificilmente são compatíveis com o Manifesto progressista do Labour. É isso que argumenta o economista grego Costas Lapavitsas, num artigo publicado na revista Jacobin em Agosto do ano passado.

Lapavitsas escreve sobre três pontos do programa de Corbyn que contrariam normas do Mercado Único europeu: (1) a política industrial, (2) as linhas da contratação pública e (3) o programa de nacionalizações.

A mudança radical da política industrial inscrita no Manifesto inclui um aumento significativo do investimento público para apoiar a produção nacional, o que enfrenta enormes dificuldades no quadro das regras da concorrência da UE. Como explica Lapavitsas: “As regras referentes ao apoio público da União Europeia centram-se em todas as intervenções que visem a indústria doméstica se estas constituírem uma “distorção” da competição. De forma geral, as regras permitem que os governos definam o enquadramento do apoio público, mas impedem-nos de determinar as orientações de uma indústria, setor ou da economia como um todo.”

Embora estejam previstas algumas exceções (para apoio a PME’s, a diferentes regiões, a investigação, etc.), o seu alcance é limitado e dependente do cumprimento de critérios como a não afetação de atividades exportadoras. Por outro lado, a utilização da contratação pública (public procurement) como forma de definir alguns critérios a cumprir pelos fornecedores do Estado – ao nível da desigualdade salarial, por exemplo – dificilmente cumpre os requisitos europeus de defesa da concorrência e do tratamento igual de todos os contratantes.

Além disso, o programa de nacionalizações proposto por Corbyn – que inclui os caminhos-de-ferro, os correios, a energia e a água – viola toda a orientação da UE, que ao longo dos anos tem promovido as privatizações como norma da integração. Na prática, recuperar estes setores e “trazê-los de volta ao controlo público” implica enfrentar a hostilidade das instituições europeias, nas quais os monopólios públicos são vistos como obstáculos ao crescimento e se definem limites para o peso dos Estados nas economias, além de se forçar as empresas públicas a serem regidas pelas mesmas regras do setor privado.

Há ainda um quarto aspeto, não referido por Lapavitsas: a constituição do Mercado Único esteve associada à abolição dos controlos de capitais e à liberalização do sistema financeiro, pilares do projeto neoliberal europeu que enfraqueceu as democracias nacionais e a sua capacidade de planear o desenvolvimento do país e fazer face a crises. Não é possível construir uma economia ao serviço de todos sem uma rutura com este consenso que pretende deixar o futuro das populações entregue aos mercados.

É por isso que o programa do Labour contraria, e bem, grande parte das normas do Mercado Único da UE, o que por si só é revelador da natureza do projeto europeu. A construção da União Europeia assentou não só na constituição do Mercado Único mas também na institucionalização da política única, inicialmente através das regras de concorrência e mais tarde confirmada com a moeda única (controlada por um banco central não sujeito à decisão democrática) e com a assinatura do Tratado Orçamental pelos países da Zona Euro. É por estas vias que a UE estabelece as linhas da política legítima e exclui as alternativas.

William Mitchell e Thomas Fazi escreveram recentemente que o Brexit abriu “uma janela de oportunidade única para a esquerda britânica (…) para mostrar que é possível levar a cabo uma rutura com o neoliberalismo e com as instituições que o suportam”. Ao apoiar um novo referendo, Corbyn pode estar a fechar esta janela. Se o fizer, confirma a ideia de que na União Europeia o voto popular é sempre reversível, sobretudo quando coloca em causa a primazia dos mercados.

13 comentários:

Anónimo disse...

Por mais complexa que possa ser a abordagem haverá sempre falta de legitimidade num novo referendo, qual é o sentido desta consulta publica? Garantir que o cidadão faz a opção correcta? Se isto é fazer politica na actualidade, lamento dizê-lo, fazer politica não serve para rigorosamente nada.

Jaime Santos disse...

No essencial concordo com a análise, só que o problema é de Corbyn e do RU, não da UE. O Labour é livre de implementar um Hard-Brexit se estiver disposto a prescindir do acesso ao Mercado Único e à União Aduaneira, coisa que May e a Direita Tory querem, por outras razões, para diluir ainda mais a regulamentação na produção, no ambiente, etc.

A Esquerda anti-UE quer prescindir das regras do MU mas não quer prescindir do acesso ao mesmo, porque sabe que no dia em que isso acontecesse, a indústria nacional que existe nos diferentes países iria pelo cano abaixo muito antes da nova visão do 'Socialismo num só País', a la Corbyn, estar implementada.

Poder vender produtos em 27 países sem estes terem que pagar direitos aduaneiros dá muito jeito...

Para mais, e para evitar a cisão entre centristas e radicais, Corbyn optou pela ambiguidade, prometendo tudo a todos. Controle da imigração, nacionalização das 'utilities' (sem um chavo para isso, mas está bem), permanência pelo menos na União Aduaneira, e até um segundo referendo.

Agora, 'the chickens are coming home to roost'... Com sorte, ele não dura muito e será substituído por alguém mais capaz, talvez o (igualmente) esquerdista John McDonnell... If only!

Não se pode, Vicente Ferreira, querer sol na eira e chuva no nabal. A Esquerda que queira romper com a UE vai ter que apresentar um plano bem detalhado sobre como pretende fazê-lo incluindo, pois claro, os sacrifícios que se devem fazer para recuperar a 'soberania nacional' depois de 40 anos de integração económica.

Aquilo justamente que Varoufakis e Tsipras não conseguiram fazer, porque nestas questões a ideologia e as boas intenções não contam para nada e as relações de força para tudo.

Boa sorte a vender isso ao eleitorado...

Finalmente, não deixa de ser irónico que o mais provável em caso de saída do RU da UE (o no-deal parece mais distante porque os Tories estão cheios de medo dele, mas pode ainda bem acontecer) é que o RU se transforme numa Singapura 'on the Thames', porque para baixo é sempre possível, ou seja pisar ainda mais nos direitos laborais, ambientais, etc.

E aí, a Esquerda anti-UE vai finalmente perceber que andou a jogar o jogo da Direita pura e dura... Em países como a Venezuela ou o Brasil, o regresso ao poder da Direita ocorreu ou vai ocorrer depois do falhanço pela enésima vez do modelo de desenvolvimento nacional. No RU, a Esquerda nem sequer vai conseguir saborear o poder...

Irónico, sim, mas inteiramente previsível...

Vicente Ferreira disse...

Caro Jaime, estamos de acordo quanto à necessidade de planeamento sério de alternativas ao atual modelo de integração europeia. Neste caso, creio que o caminho de uma esquerda crítica da UE deve ser a defesa de um regresso dos mecanismos de decisão democrática ao espaço nacional, o que implica recuperar os instrumentos de política monetária e orçamental. Isto não impede que se procurem coordenar esforços entre países nos grandes desafios do nosso tempo (como a crise ambiental). Mas uma coisa parece certa: não é nesta UE que se fará algum caminho interessante na defesa dos direitos laborais, no combate às desigualdades ou na urgente transição energética. A desorientação e o fracasso do projeto europeu na última década deixam poucas dúvidas a esse respeito.

Jose disse...

A questão do voto popular em democracia não é estranha à questão da qualidade das elites.

À medida que as elites se abandalham não é estranho que o voto popular perca valor.

José disse...

O Jaime já desistiu da democracia ou, então, está como a rã na panela de água quente - tão confortável que vai acabar cozido!

Anónimo disse...

Verificamos actualmente que o processo de integração Europeia se transformou no monolitismo politico e em estagnação economica.








































ilitismo político e no caso portugues numa estagnação economica.








































































































































































S.T. disse...

Planos detalhados a apresentar ao eleitorado seria de um cretinismo atroz, e Jaime Santos deveria sabe-lo.

Qualquer "plano detalhado" que seja do domínio público é contraproducente, um empecilho e um claro enfraquecimento da posição negocial de um estado numa qualquer negociação. Não é possível conduzir negociações na praça pública através dos jornais e da televisão. Nem de blogs...

A prova disso é a negociação do Brexit, onde até o simples facto de se conhecer o objectivo final enfraquece brutalmente a posição negocial do UK.

A diplomacia por natureza não pode ser transparente. Tem que ser baseada na confiança dos eleitores nos seus eleitos com base na vontade expressa em referendo ou em programas sufragados em eleições mas nunca em "planos detalhados". Precisamente uma das fraquezas inevitáveis das democracias é a lealdade (ou falta dela!) dos eleitos para com a vontade dos seus eleitores e para com os estados que representam. O caso é particularmente delicado quando o estado em questão enfrente negociações decisivas, inadiáveis e irreversíveis. É aí que os grandes políticos brilham e os medíocres borregam.

Até por isso a sua exigência de "planos detalhados" é de uma infantilidade inominável.
O que não impede que se discutam as políticas e as suas consequências. Mas "planos"? Não me faça rir!

S.T.

António Vaz disse...

Caro Vicente Ferreira, li ontem o seu artigo e, não querendo ceder à tentação de o comentar de imediato, a quente, Hoje cá estou de novo... e começo por dizer que do muito que haveria para dizer, vou limitar-me a isto: globalmente, acho o seu artigo um exercício intelectual exótico onde a abordagem teórica até pode ser considerada curiosa, interessante e sei-lá-mais-o-quê nessa direcção semântica mas, infelizmente, esse exercício - na minha ignorante opinião! - esbarra com aquela "coisa" a que chamam de Realidade... eu explico-me:
a) «Jeremy Corbyn cedeu à pressão da ala liberal do Labour e anunciou o apoio do partido a um novo referendo sobre o Brexit», escreve V. - bom, confesso que não faço imagino qual a sua ideia de como funciona o "Labour"!?! Lendo-o, nas entrelinhas, Corbyn aparece-me descrito por si, como uma sub-espécie "mole", "frouxa" do Stalin («Corbyn CEDEU à pressão da ala liberal do Labour»), num "Labour" transfigurado numa esécie de PCUS ainda longe das chamadas "expurgações" (é que não é que, por si, até existe ainda uma "ala liberal"...) - mas essa até deve ser a versão, devidamente traduzida e codificada para o linguajar dos pro-"exit", a que é utilizada nos "pubs" da Inglaterra profunda...
b) «William Mitchell e Thomas Fazi escreveram recentemente que o Brexit abriu “uma janela de oportunidade única para a esquerda britânica» - é claro que sim e porque não: a) qual? A de nela, «a esquerda britânica» se poder misturar com a vasta maioria dos que no RU votaram "brexit"? E quem foram eles? Os que votaram no "Labour"? b) independentemente de toda a possível recriação de cenários a que se assistiu nos média de uma certa esquerda, liberal ou não e a opção até pode ser sua, que nada tenho contra isso, a verdade é que, com ou sem "brexit", os Trabalhistas são e, nada indica que o deixarão ser, apenas os actuais líderes da oposição... e, evidentemente, não estou apenas a falar de questões partidárias mas sim de que os Conservadores continuarão a dirigir essa obtusa entidade que é o RU... c) deduzo que todas as suas palavras tiveram como premissa que os Trabalhistas - ou se preferir, o Corbin! - vão(ai) chegar ao poder... e se tal não acontecer? Que tal um artigo da sua autoria a explicar o que os britânicos têm a esperar?

Aónio Eliphis disse...

Análise certeira. Aliás não há tópico mais evidente onde a esquerda eurofóbica joga o jogo da direita, como nas matérias europeias, desde a questão da xenofobia disfarçada de soberania das fronteiras, até à questão dos regulamentos ambientais impostos por decretos europeus, dos mais restritivos do mundo, que os neoliberais europeus mais radicais criticam amiúde.

José disse...

Esta Europa é a panela de água quente e quem vive do seu trabalho é a rã!

Anónimo disse...

Em relação à democracia na EU recomendo o texto:

https://www.veraveritas.eu/2019/01/the-european-union-is-as-democratic-as.html

S.T. disse...

Aproveito ainda para divulgar um excelente texto de Cornelius Castoriadis:

https://www.les-crises.fr/stopper-la-montee-de-linsignifiance-par-cornelius-castoriadis/

Mereceria uma tradução integral, mas aqui ficam alguns excertos:

"La politique est un métier bizarre. Parce qu’elle présuppose deux capacités qui n’ont aucun rapport intrinsèque. La première, c’est d’accéder au pouvoir. Si on n’accède pas au pouvoir, on peut avoir les meilleures idées du monde, cela ne sert à rien ; ce qui implique donc un art de l’accession au pouvoir. La seconde capacité, c’est, une fois qu’on est au pouvoir, de savoir gouverner."



"A política é uma profissão bizarra, porque pressupõe duas capacidades que não têm relação intrínseca. A primeira é chegar ao poder. Se não chegarmos ao poder, poderemos ter as melhores idéias do mundo, mas isso é inútil, o que implica uma arte de ascensão ao poder. A segunda capacidade é, uma vez no poder, saber governar."

"Je dis « pseudo-démocratie » parce que j’ai toujours pensé que la démocratie dite représentative n’est pas une vraie démocratie. Jean-Jacques Rousseau le disait déjà : les Anglais croient qu’ils sont libres parce qu’ils élisent des représentants tous les cinq ans, mais ils sont libres un jour pendant cinq ans, le jour de l’élection, c’est tout. Non pas que l’élection soit pipée, non pas qu’on triche dans les urnes. Elle est pipée parce que les options sont définies d’avance. Personne n’a demandé au peuple sur quoi il veut voter. On lui dit : « Votez pour ou contre Maastricht ». Mais qui a fait Maastricht ? Ce n’est pas le peuple qui a élaboré ce traité."

"Eu digo" pseudo-democracia "porque sempre pensei que a chamada democracia representativa não é uma verdadeira democracia. Jean-Jacques Rousseau já disse: Os britânicos acreditam que são livres porque elegem representantes a cada cinco anos, mas eles são livres um dia durante cinco anos, o dia da eleição. Não é que a eleição seja fraudalenta, não é que haja chapelada nas urnas. As eleições são falseadas porque as opções são definidas com antecedência. Ninguém perguntou ao povo o que ele quer votar. Dizem-lhe: "Votem a favor ou contra Maastricht." Mas quem fez Maastricht? Não foi o povo que elaborou esse tratado."

"Il y a la merveilleuse phrase d’Aristote : « Qui est citoyen ? Est citoyen quelqu’un qui est capable de gouverner et d’être gouverné. » Il y a des millions de citoyens en France. Pourquoi ne seraient-ils pas capables de gouverner ? Parce que toute la vie politique vise précisément à le leur désapprendre, à les convaincre qu’il y a des experts à qui il faut confier les affaires. Il y a donc une contre-éducation politique. Alors que les gens devraient s’habituer à exercer toutes sortes de responsabilités et à prendre des initiatives, ils s’habituent à suivre ou à voter pour des options que d’autres leur présentent. Et comme les gens sont loin d’être idiots, le résultat, c’est qu’ils y croient de moins en moins et qu’ils deviennent cyniques."

"Há a frase maravilhosa de Aristóteles:" Quem é um cidadão? É um cidadão alguém que é capaz de governar e de ser governado ". Há milhões de cidadãos em França. Por que é que não seriam capazes de governar? porque toda a vida política visa precisamente a "desaprendê-los" (ensiná-los ao contrário NdT), convencendo-os de que há peritos a quem há que confiar os assuntos. Há portanto, uma contra-educação política. Quando as pessoas se deveriam acostumar com todos os tipos de responsabilidades e a tomar iniciativas, pelo contrário são habituados a seguir ou votar em opções que os outros lhes apresentam. E como as pessoas estão longe de serem idiotas, o resultado é que eles acreditam nisso cada vez menos e se tornam cínicos."

S.T.

S.T. disse...

Cuidado com links manhosos para blogs manhosos.

S.T.