sexta-feira, 7 de abril de 2017

Uma péssima ideia


A minha atitude em relação ao Rendimento Básico Incondicional (RBI) tem sido a de abanar a cabeça de forma displicente, vociferando de vez em quando um “está tudo maluco”, deixando a outros, como Francisco Louçã, a desmontagem de uma ideia que realmente diz muito sobre estado de alguns sectores intelectuais da esquerda, de resto mais ou menos recorrente ao longo da história do capitalismo, felizmente com reduzida influência política.

No entanto, esta tendência política tem hoje raízes talvez mais profundas na impotência democrática dos Estados, nas derrotas do movimento popular e na fuga em frente que tal gera. Por isso, talvez seja aconselhável mudar de atitude. Um artigo no Público, da autoria de André Barata e de Renato Carmo, permite, pelo seu tom bem mais consciente e argumentativo, entrar neste debate por uma só vez com meia dúzia de notas.

Em primeiro lugar, os autores têm consciência que o RBI tem origens ideológicas diversas, sendo na sua versão ideológica e financeiramente mais consistente, digo eu, que é proposta por autores neoliberais, um mecanismo para eliminar a provisão pública associada ao Estado social, bem como, já agora, as políticas económicas orientadas para o pleno emprego. Não é aliás por acaso que capitalistas como Elon Musk, o famoso empresário da Tesla, defendem um RBI, enquanto perseguem os sindicatos nas sua empresas.

Em segundo lugar, os autores dão, infelizmente, para um peditório equivocado sobre o fim do pleno emprego, associado à robotização, aventando a “inevitabilidade” do RBI à boleia de uma análise incorrecta. Se fosse correcta, a Grécia, com um quarto da população desempregada, estaria na vanguarda do progresso tecnológico, enquanto que a Alemanha ou a Islândia, com 4% ou menos da população activa desempregada, estaria na retaguarda. Se fosse correcta, os trinta gloriosos anos a seguir à 2ªGM, o período de maior progresso tecnológico da história, medido pela evolução da produtividade, não seriam, como foram, um período de pleno emprego nas principais economias. Sim, hoje em dia, no regime neoliberal, o progresso tecnológico está mais nos discursos do que nas estatísticas, servindo para ocultar as tendências pesadas de estagnação. Hoje, o essencial da inovação tecnológica, que nunca pode ser desligada das relações sociais prevalecentes, serve para reduzir salários e aumentar o controlo sobre os trabalhadores, tendo um notório enviesamento de classe. Temos de mudar de regime, mas para isso não precisamos do RBI. Precisamos de falar, por exemplo, sobre desglobalização.

Em terceiro lugar, o argumento potencialmente mais interessante para o RBI, o da eventual redução da compulsão capitalista, melhorando a posição dos trabalhadores no contexto de uma correlação de forças desfavorável, torna verdadeiramente risível a esperança num eventual RBI como parte de um qualquer pilar social da UE, uma instituição cuja lógica assenta desde o início no aumento da compulsão capitalista. Seria como pedir ao imperialismo que liberte os povos. A escala é adequada à implausibilidade geral da ideia.

Em quarto lugar, o RBI tem boas e testadas alternativas, mais de acordo com um enraizado sentimento de reciprocidade: pleno emprego, promovido por políticas económicas que o garantam, incluindo através da expansão dos serviços públicos, uma combinação associada aos Estados sociais nacionais. O pleno emprego liga o rendimento ao trabalho, gerando inclusão e dignidade, cria comunidade, aumenta a confiança das classes trabalhadoras nas suas organizações sindicais, esteio de todas as transformações emancipadoras, incluindo as que estão relacionadas com o controlo do processo de trabalho e dos seus frutos. A esquerda que desista disto perde o seu sentido histórico.

Em quinto lugar, é o emprego e os seus direitos colectivos que estão na base da economia política e moral do Estado social, das suas instituições inclusivas, com a associada lógica desmercadorizadora na provisão, incluindo nas prestações sociais redutoras da compulsão para vender a força de trabalho à primeira procura que apareça, substituindo bem a principal função do RBI. Estas prestações estão e devem continuar a estar fundamentalmente vinculadas ao trabalho, enquanto salário indirecto.

Em sexto lugar, o RBI está associado a uma hipótese individualista, mais ou menos libertária, na sua versão mais consistente. Numa hipótese mais plausível, as pessoas, como seres em relação na sociedade, precisam de bem mais do que um rendimento baixo: precisam de serviços públicos, de comunidades bem organizadas, de uma vida activa, estruturada pela contribuição produtiva. Precisam de trabalhar e de ter tempo livre. A economia política e moral das classes trabalhadoras passa também pela redução da jornada de trabalho, enquanto ganho colectivo merecido dos que sabem que geram tudo o que tem valor.

17 comentários:

Mário Reis disse...

Um aplauso João Rodrigues.
Devíamos pensar no rendimento mínimo de inserção que além de mostrar que conviveu com o agravamento do mercado de trabalho ao mesmo tempo fomentou estados de autêntica exclusão de muitos indivíduos.
Aos que geram tudo o que tem valor deve ser reafirmados/restabelecidos direitos, chamando e incluindo todos os indivíduos enquanto membros da sociedade, sociedade ao serviço da qual deve estar a economia e não o contrário.
A fúria neoliberal e os argumentos hipócritas de quem simplifica a realidade com atalhos e arranjos amigáveis no qual muitos acreditam, tem feito caminho acelerado em direção a formas modernas de barbárie e indignidade.
Há eixos que a economia ao serviço das necessidades sociais pode e deve explorar. Eixos radicais/novos, como a redução do tempo de trabalho, as novas relações contraditórias que a crescente automatização está a gerar, o controlo e a redistribuição dos rendimentos mundiais gerados entre outros podem ser a esperança numa sociedade melhor.

Abraham Chevrolet disse...

RBI : o que se passa no Canadá,na Dinamarca,na Noruega,na Finlândia e na Alemanha? Use a Net e pesquise uns minutos... hoje não se pode guardar um segredo! E pergunte também a opinião ao Bill Gates,,,

Anónimo disse...

Muito bom este texto lúcido fe João Rodrigues

Anónimo disse...

A sugestão de perguntar ao hiper-ultra capitalista Bill Gates o que pensa do RBI só pode ser para rir à gargalhada.

Uma das coisas mais arrepiantes de assistir aos defensores do RBI que vivem como comuns remediados é comportarem-se como autêntico lumpen-proletariado que aceitam escolher defender e submeter-se aos seus carrascos.

Um excelente post de João Rodrigues à atenção dos incautos e a desmontar a propaganda neoliberal que tudo faz para acabar de vez com o que sobra de estado social.

Paulo Martins disse...

sempre a mesma obsessão pelo trabalho não compreendem que as pessoas trabalham porque são obrigadas que é igual a escravatura deixem as maquinas trabalhar em paz por nós enquanto podemos receber no inicio um rendimento básico depois pode ser que se nacionalize tudo ou privatize e aumente em prol do rbi,e só é contra esta ideia quem tem o cú tremido que interessa ter serviços públicos se podia abdiquir dele para ter o essencial que é dinheiro no bolso para viver para o básico,é isto que se passa não temos dinheiro para o básico eu quero ter um rbi para viver já não quero saber dos serviços públicos,as maquinas que trabalhem eu só quero fazer o que gosto!entendem?

Abraham Chevrolet disse...

Caro anónimo: ri-te à gargalhada com a opinião do sr. Bill Gates, mas quando chegares ao emprego e encontrares a tua secretária no corredor verás como foram subtis ao empalar-te!

Jaime Santos disse...

De acordo quanto à necessidade de criar empregos e proteger as organizações sindicais. Aparentemente, a proteção dos direitos sociais dos trabalhadores funciona como estímulo ao investimento em tecnologia e em capital intangível por parte das empresas, veja-se aqui https://medium.com/@ryanavent_93844/the-productivity-paradox-aaf05e5e4aad (mau grado o estilo de escrita algo confuso do autor) ou aqui https://www.socialeurope.eu/2016/12/greater-inequality-not-due-new-technology-free-trade/. Sucede que discordo na tentativa de atribuir ao capitalismo financeiro a culpa pelo declínio do aumento da produtividade, quando ele é mais um sintoma dela do que uma causa, João Rodrigues, e sorrio-me sempre com o seu fetiche pelo modelo de capitalismo industrial de antanho, que em tempos foi ferozmente combatido pela Esquerda Marxista, houve mesmo quem declarou que o iria enterrar, depois viu-se o que aconteceu. Hoje, à falta de alternativas, defende-se, com uns bons 40 anos de atraso, o modelo social-democrata nacional, resta saber com que sinceridade (os radicais de turno não assumem as suas convicções com a clareza dos antepassados, exceto quando lhes foge o pé para o chinelo e aparecem frases como 'perspetivas revolucionárias', que não se sabe bem o que significam). E para ver como o progresso tecnológico pode bem estar a estagnar, basta atentar às razões apontadas por um Robert Gordon... Mas para quem tem fé em sistemas falidos, totalmente incapazes de estimular o desenvolvimento tecnológico, o capitalismo, na variante do dia, terá sempre as costas largas...

Anónimo disse...

Atenção à armadilha!

A instauração de um rendimento básico universal implica a desmontagem de todas as outras formas de assistência e redestribuição do rendimento.
Pensem bem no que isso significa. Significa a destruição de todos os mecanismos de protecção social conquistados pelas sociedades ocidentais ao longo de muitos anos de progresso social.

Uma vez essa supressão de programas como o SNS e SS efectuada seria muito mais fácil, a pretexto de uma qualquer crise suprimir ou reduzir o rendimento básico universal deixando completamente desprotegidas grandes franjas das populações dos países que entrem nessa armadilha.

Anónimo disse...

Olá João. Tens uma resposta nossa, que está pública e portanto acessível, às seis notas que escreves nos nossos murais de facebook.

Anónimo disse...

O RBI seria uma forma de dispensar os estados de actuarem sobre os mecanismos económicos de controlo do emprego, transformando irreversivelmente a relação de forças entre patronato e assalariados e criando uma nova classe de ASSISTIDOS, DÓCEIS e NÃO-REIVINDICATIVOS.
Qual é o poder político de alguém que se limita a receber um subsídio?
Não esquecer também que paralelamente há quem advogue que os direitos politicos devem ser condicionais ao pagamento de impostos. Isto é, segundo essa tese quem não paga impostos não deve ter voto e seria "normal" a influência politica ser proporcional aos impostos pagos.
Nessa perspectiva a classe dos "assistidos" deixaria de ter peso politico. E adivinhem quem ganharia formalmente um poder desmesurado que já tem em grande parte por meio de mecanismos informais?

Anónimo disse...

O Jaime Santos não só está a ser monotonamente repetitivo, como também com um estilo de escrita algo confuso.

Embora isso seja o menor dos males.

Porque o pior são diversas afirmações gratuitas que não correspondem à verdade.

Mais o seu fétiche pelo cspitalismo financeiro e a sua fé em sistemas falidos.

Anónimo disse...

Há, realmente, desequilíbrio nas contas públicas. Mas sua causa não é, de forma alguma, investimentos sociais em beneficio do povo como alguns querem fazer acreditar, mas sim o gasto com uma dívida pública imensa e deliberadamente mal explicada à população, e de que gostariamos saber sua verdadeira origem e dimensao. Mas como a posiçao doutoral e´ que se mantenha o desiquilibrio toca de desnivela-lo ainda com mais um novo apendice – o Rendimento Básico Incondicional (RBI)
Os Terra-tenentes não param na sua ansia de tudo querer, não me admira que engendrem mais alguma patifaria parecida com o RBI sem que alguém os trave a tempo. de Adelino Silva

Anónimo disse...

Aparece sempre alguém que quer matar o mensageiro. Porque será?

Anónimo disse...

O RBI defendido pelos neoliberais tem o propósito que estes lhe querem dar que seguramente não será muito diferente do que referiu mas isto não diz absolutamente nada sobre o assunto.

Convido-o a ler a proposta do dividendo básico universal(UBD) feita pelo movimento DIEM25 na agenda progressiva para a Europa - European New Deal. O tema é abordado na página 19, 22 e 23.

Francisco Oneto disse...

«Toute critique de la croissance doit donc être nécessairement en même temps une critique du travail. Cela ne signifie pas faire un éloge de la paresse. Le culte du travail dans notre société doit être abandonné, mais non au profit d'une automatisation complète du processus de production. Faire travailler les machines à notre place n'est pas la bonne solution: même des activités fatigantes, comme dans l'agriculture, peuvent avoir um côté enrichissant pour l'être human. Chaque activité, aussi légère ou aussi lourde qu'elle soit, devrait être liée à la réalisation d'un bout positif, tandis que dans la société capitaliste l'on travaille seulement pour gagner de l'argent, sans égard pour le contenu du travail. "Sortir de l´'économie" ne doit donc pas seulement signifier sortir du culte du travail, mais aussi sortir du cadre où le travail est la base de la vie sociale et individuelle. Il faut arriver à une autre organisation des activités sociales qui dépasse complètement la conception totalitaire du travail»
(Anselm Jappe, 2015 "Le Fétichisme de la Marchandise", in Serge Latouche et Anselm Jappe, Pour en Finir avec l´Economie. Décroissance et Critique de la Valeur, Éditions Libre & Solidaire, Paris, pp.71)

«Nunca foi tão insensato exigir "medidas em favor do emprego" ou defender os "trabalhadores" pelo facto de serem eles que "criam o valor". É necessário antes defender o direito de cada um a viver e a participar dos benefícios da sociedade, mesmo se ela ou ele não teve sucesso na venda da sua força de trabalho.
A emancipação necessária é aquela que é relativa às categorias fetichistas do dinheiro e da mercadoria, do trabalho e do valor, do capital e do Estado, enquanto tais. Já não é possível contrapor estes factores e considerar um deles como pólo positivo: nem o Estado contra o capital, nem o trabalho abstracto no seu estádio morto (capital) contra o mesmo trabalho abstracto no seu estádio vivo (força de trabalho e, portanto, salário). Parece, por conseguinte, difícil atribuir a tarefa de superar o sistema fetichista a grupos sociais que se constituíram pelo próprio desenvolvimento da mercadoria e que se definem pelo seu papel na produção de valor.»
(Anselm Jappe, 2015, "O que é o fetichismo da mercadoria? E pode acabar-se com ele?", Prefácio a Karl Marx, O Fetichismo da Mercadoria e o seu Segredo, Antígona., pp.30)

Francisco Oneto disse...

- Cá estaremos para lutar contra toda e qualquer tentativa no sentido de "eliminar a provisão pública associada ao Estado Social". Há, efectivamente, quem pugne por isso, dentro e fora do movimento RBI, como dentro e fora do PS, por exemplo. Eu, e creio que a maior parte dos que defendem o RBI, defendo educação e saúde grátis e não me canso de alertar para os perigos do desmantelamento do estado social ou, mais genericamente, para a perda da inteligência social resultante da progressão selvagem da liberalização, desregulação, privatização de todas as coisas. Quanto às "políticas económicas orientadas para o pleno emprego"... De acordo, sempre que isso significar que todos trabalhem menos, distribuindo melhor e reduzindo horários de trabalho - medidas urgentes, sãs e que valorizam o texto do André Barata e do Renato Carmo. A perda de 5 milhões de empregos nos próximos 5 anos é a estimativa dos aflitos e dos agoniados de Davos; e a OIT não anda longe.
- A "análise incorrecta" a que te referes assenta numa leitura equivocada que fazes da correlação causal entre progresso tecnológico e desemprego através de exemplos (Grécia e Islândia) em que as variáveis explicativas são, obviamente, outras.
- Tenho-me interrogado acerca da expressão "30 gloriosos" tão querida dos keynesianos. De onde vieram os recursos, as matérias-primas, que permitiram a prosperidade na vigência do compromisso social-democrata, até à 1ª crise do petróleo? Não será que que estes "30 gloriosos" são duplamente trágicos, apesar da glória do nosso bem-estar? Por um lado pela própria lógica do consumo de massas, do crescimento, da devastação ambiental e da alienação; por outro, pela devoração do planeta, pela lógica imperialista e neo-colonialista da guerra e do etnocídio. A prosperidade do "norte" foi o sangue, o suor e as lágrimas do "sul". Isto deveria servir-nos para não olharmos com saudade esse compromisso histórico entre o capital e o trabalho.
- A crença num crescimento salvífico típica do quadro de partida destas críticas de que falava - que é, afinal, e ainda, o mesmo cenário positivista da esperança milenarista no Progresso - contrasta fortemente com a tua ideia de "desglobalização" (para quem rejeita o termo e os princípios da 'décroissance', falar em 'desglobalização' não está mal...). Desmercadorizar, sim! Impedir a dilatação permanente da esfera da mercadoria para o domínio da vida, da educação da saúde; impedir a privatização do mundo; fazer dos commons uma causa comum - estaremos sempre de acordo na maior parte destes temas, espero. Mas o culto do trabalho é que não. Despeço-me com um abraço e um par de citações:

Francisco Oneto disse...


Caro João Rodrigues, a meu ver, o drama de grande parte das críticas ao RBI é que têm como modelo os dogmas do economismo, logo, essa estranha teologia, transversal à esquerda e à direita, que alguém caracterizou como "the cancer growth cell ideology", ou seja: a crença soteriológica no "crescimento" - crença típica dos economistas em sociedades de crescimento que não crescem a não ser à custa do que displicentemente denominam 'externalidades negativas' e em que a devoração do planeta e do "capital humano" são males necessários que alguém resolverá mais tarde... A isto mesmo, aliás, me referi aqui num comentário, a 12 de Janeiro de 2012, como sintoma da crescente incapacidade da esquerda para propor ideias verdadeiramente emancipadoras em vez das fantasias da imaculada escassez e da escolha "racional" entre canhões e manteiga; fantasias assentes na convergência (como à data desse comentário, entre Nuno Teles e Manuela Ferreira Leite) de ambos os lados da barricada - esquerda e direita - num ponto-cego que permanece inquestionável (sim, estes economistas, para quê?...) a partir do qual constantemente se proclama a triste certeza etnocêntrica de que «sem crescimento económico não há Estado Social sustentável» e, até, que «sem crescimento económico não há sociedades viáveis»...
São, portanto, os próprios pressupostos - o quadro ideológico, sempre dissimulado de ciência - de onde partem algumas críticas ao RBI, que a mim também me diz muito sobre o estado de alguns "sectores intelectuais da esquerda"- desta esquerda que hoje não consegue mais do que continuar a apregoar o pleno-emprego, reivindicando a generalização do direito a ser-se explorado, por forma a que ninguém se prive de dar um contributo para a continuidade da acumulação de capital. Mas concordo com boa parte dos teus alertas: