segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O galo da cimeira da rede


Será verdade que cada época tem a arte que merece?

Na semana passada teve lugar a cimeira da rede. Embora prejudicada pela eleição de Trump, lá tivemos horas sem fim de conversa sobre o empreendedorismo e as promessas da inovação em torno das tecnologias de informação, complementada à última da hora por uma xaropada liberal, que deliberadamente põe tudo no mesmo saco, contra alguns muros (os muros mais importantes, os do dinheiro, são sempre convenientemente ignorados…).

Nada de novo: a velha conversa sobre uma suposta nova economia, já com quase duas décadas, que erradamente julguei ter sido enterrada pelo colapso da bolha especulativa na viragem do milénio. Deixo então meia dúzia de apontamentos em contra-corrente, escritos na semana passada e publicados nesta.

Em primeiro lugar, apelar ao empreendedorismo, à formação de novas empresas, num país que tem um tecido empresarial pulverizado, ou seja, que tem um excesso de empreendedores, é um erro, de resto bem denunciado no livro A Falácia do Empreendedorismo.

Em segundo lugar, a verdade é que as tendências tecnológicas nas áreas da comunicação e informação estão a acelerar o processo internacional de concentração e centralização de capital, dada a lógica das economias de rede, com a formação de mastodontes empresariais nesta área, o que torna toda a conversa tão surreal como ouvir António Mexia ou Durão Barroso dar conselhos aos “empreendedores” do alto da suas experiências nas melhores portas giratórias. Entretanto, as boas e grandes empresas nacionais da área, como a PT, já não são o que eram, tendo sido fragilizadas pela finança.

Em terceiro lugar, todas as inovações significativas dependem de Estados empreendedores, com instrumentos de política à altura, incluindo grandes empresas por estes controladas, e este país não tem instrumentos de política industrial, estando preso num arranjo comandado pelo centro europeu. Neste contexto, o Estado parece cada vez mais limitar-se a ajudar a pagar estas e outras cimeiras e o que o Estado não paga também sai da ajuda do trabalho que não é pago, como bem assinala José Soeiro.

Em quarto lugar, a ideia da inovação disruptiva esconde um facto cada vez mais saliente, destacado por cada vez mais economistas que estudam história económica em busca do que é recorrente e do que é novo: na actual configuração do capitalismo, a retórica da inovação está por todo o lado, mas se olharmos para a evolução da produtividade estamos confrontados com a realidade da estagnação, com tendências pesadas do lado da oferta e da procura.

Em quinto lugar, muitas das inovações alardeadas, num tempo com enviesamentos de classe crescentes, são instrumentos de reforço do controlo laboral, de elisão da distinção entre lazer e trabalho, tornando os ritmos impróprios para humanos, e de fomento da cultura do narcisismo; isto em sociedades cada vez mais fracturadas e com a procura contraída. É a tal uberização e tinderização do mundo, ou seja, a distopia da liquidificação de todas as relações sociais.

Em sexto lugar, passaram mais 50 mil pessoas por Lisboa. Este é, em termos materiais, provavelmente, o maior impacto da cimeira e à sua maneira confirma o lugar dominante que nos cabe nesta divisão de trabalho por desafiar. Todo o trabalho é digno, claro, mas não é com turismo, mesmo que empreendedor, que trepamos a escada do desenvolvimento.

Finalmente, é claro que entretanto temos boas infra-estruturas e bolsas de força de trabalho qualificada e relativamente barata. Trata-se, por um lado, da herança, que se vê e fica, do investimento publico com benefícios sociais, de boa e distante memória, e, por outro, da herança da austeridade sem fim, que é sempre má. Também assim se reforça uma economia dualista, com algumas ilhas ditas de excelência tecnológica, num mar de desemprego, subemprego e de emprego pouco qualificado e precário.

12 comentários:

Jaime Santos disse...

Por uma vez concordo com o que diz. Mas noto apenas uma coisa. A estagnação do crescimento da produtividade de que fala Gordon resulta de um carácter cada vez menos disruptivo da tecnologia e não de uma qualquer falha do sistema capitalista. Uma espécie de lei de rendimentos decrescentes aplicada à evolução tecnológica, tanto quanto posso perceber. As alterações do modo de processamento da informação, que caracterizam a revolução informática, não se comparam nem de perto nem de longe em termos de impacto económico com a utilização de novas fontes energéticas ou vetores energéticos (combustíveis fósseis, eletricidade) que caraterizaram os sec. XIX e XX, parece ser a tese de Gordon. E isto depende de leis físicas e não deste ou daquele sistema económico. Por isso, se Gordon tiver razão, um modelo de Socialismo de eterno crescimento está tão condenado como o modelo capitalista correspondente. Ou o Socialismo é capaz de conceber uma sociedade de prosperidade sem crescimento, ou estaremos sempre condenados ao capitalismo como descrito por Piketty...

Anónimo disse...

Um texto de uma excelente lucidez este, de João Rodrigues..

Pena mais uma vez a tese de Jaime Santos. Agora esta é o da condenação ao capitalismo, exibida como fatalidade pelas leis da física. Gordon ou Piketty à escolha, à espera de serem galardoados pelo prémio do espectador inocente

Unknown disse...

Basta olhar para o surf, para entender que o empreendorismo e iniciativa individual são importantes para melhorar os ganhos de muita gente.Basta acreditar, ter iniciativa e não basear as sua opções em querer repartir os ganhos (dos outros claro)

Anónimo disse...

Os ganhos com os trabalhos dos outros.
É o que fazem os tubarões dos grandes capitalistas, pelo que uma nova sociedade é mesmo precisa, sem a exploração do homem pelo homem, como de resto o Sr Cristóvão sabe
Quanto ao resto é melhor não falarmos nisso para não mancharmos este bom post de João Rodrigues

Jose disse...

Que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando...

Anónimo disse...

"basta acreditar e ter iniciativa". Fantástico. Vê-se que Cristo~vao é crente. Então mande-se ao mar e descubra o caminho das pedras.

Jaime Santos disse...

Caro anónimo da 01:23, A tese de Gordon foi citada pelo próprio João Rodrigues e convém perceber o que Gordon propõe. E não considero que estejamos condenados ao Capitalismo, considero apenas que ou o Socialismo leva em conta os limites de crescimento impostos quer pela fragilidade ambiental quer pelo caráter cada vez mais incremental do processo de inovação, ou não será nenhuma alternativa. Aliás, a destruição económica e ambiental registada nos Países do chamado Socialismo Real está aí para nos lembrar disto (e eu não deixarei de o fazer, por muito que isso irrite certas pessoas)... A absoluta mediocridade da 'Vanguarda Revolucionária' não é alternativa nenhuma ao charlatanismo da nova classe dos supostos empreendedores...

Anónimo disse...

Herr Jose desconversa. A trote e com versinhos a condizer. O " Lá vamos cantando e rindo" foi substituído pelo rosário e pelas penas.

O seu serviço cívico a isso obriga. A patine da palhaçada é o disfarce adequado para esconder a realidade. Que só de quando em quando salta sob a forma dum elogio semi-oculto a cortadores fe cabeças

Anónimo disse...

Basta que o socialismo aponte para o fim da exploração do homem pelo homem para constituir alternativa válida ao capitalismo.

O resto é a mediocridade habitual para justificar a perpetuação deste modelo económico.

E tal facto será citado aempre pese a irritação e a borbulhagem de quem nao consegue apresentar mais valias desta UE pos- democrática.

Jose disse...

...e choro a postar!

Anónimo disse...

Um excelente texto de João Rodrigues.
Concordando com o autor, com ele discordo num ponto: ele há uma área onde o "empreendedorismo" de lusa maternidade podia dar cartas no Mundo - a exportação do génio instantâneo. A catadupa de invenções extraordinárias que a todos os minutos nos saltam ao caminho neste ibérico retângulo é pasmosa: das alfaces para a China e dos ovos pré-estrelados do Paulinho das feiras ao gelado de alheira com mirtilos e à sardinha recheada com feijoada, dos galos de Barcelos automatizados (limpam o pó à casa, dão a banhoca aos catraios e fazem as refeições, ao mesmo tempo que entoam os fadinhos da Amália cortados, aqui e ali, com a missinha transmitida diretamente do Santuário de Fátima) à "lingerie" de cortiça comestível, do novíssimo sabor do pastel de nata (que, precisamente por o ter, já não é pastel de nata...) ao espargo que dobra como pinheirinho de Natal, ele é um dilúvio de ideias brilhantemente promissoras jorradas de cabeças não menos luminosas.
Só posso uma coisa concluir: ele é acabar com o resto da escola pública (afinal de contas, ela hoje só serve para ensinar os petizes a serem imensamente felizes... fazendo os outros irremediavelmente infelizes)e ensinar as moças e os moços a cultivarem ideias de génio no campo do "empreendedorismo", ideias essas que levantarão bem alto no Mundo o nome da ditosa Pátria que os viu nascer. Só assim as catástrofes que se anunciam terão remédio certo: a população decrépita e a baixíssima taxa de natalidade (e a consequente regressão populacional), os velhos que trabalham até caírem de podres enquanto os jovens, sem emprego, são obrigados a ir embora, a pobreza de muitos e a pauperização da sobrante classe média, a desertificação e o abandono do interior do país, o desmantelamento do tecido produtivo nacional, tudo isso (e muito mais) será um mau sonho passado e nunca concretizado quando o Mundo, fruto do "empreendedor" luso génio, comer e beber (e muito mais!) em português de Portugal. Genial!!!

Anónimo disse...

O esforço cantado e chorado de herr jose para fugir ao que se debate e para que nos desviemos da análise deste excelente post de João Rodrigues é tão enternecedor, como o choro que chorou com a derrocada do seu regime a 25 de Abril.

A denúncia do empreendedorismo deve tê-lo posto neste estado, entre o fado e o choro.

Bolas, lacrimejará ele, então o Gonçalves do bater do punho já não é o herói nacional que a governança neoliberal levantou em peso?