quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Escola queimada



A situação que se vive atualmente nas escolas públicas poderá dever-se, em parte, a incompetência em estado puro e límpido. Embora não deixe de ser interessante na área de jurisdição do Ministro mais excelente da nossa história, o que aqui existe de projeto político é certamente mais relevante. Nuno Crato aumentou o financiamento aos colégios privados, ou seja, aumentou a fatura de todos os contribuintes com as escolas a que só poucos podem aceder.

Mas essa é apenas uma parte de uma estratégia de privatização bem sucedida. A outra parte, absolutamente indispensável, corresponde ao equivalente para a Educação do que foi a tentativa de encerramento da Maternidade Alfredo da Costa para a saúde. Trata-se de atacar todas as instituições públicas que prestem um serviço de qualidade e atacar com ainda mais força as que se atreverem a ser excelentes. Como aconteceu com a privatizações de empresas públicas, o primeiro passo é arruinar e desacreditar os serviços públicos, empurrando para o privado todos os que possam .

Os encerramentos a granel e a concentração dos equipamentos, os cortes no investimento na rede pública, o despedimento de professores que gera o caos que observamos neste momento, a sobrelotação de turmas e os horários sobre-humanos, todos concorrem para a mesma função: degradar ao máximo a qualidade do ensino público, pressionando todas as famílias remediadas com o mais grotescos dos ultimatos: vão para o privado ou dêem uma educação de segunda aos vossos filhos.

A introdução de turmas de nível no ensino público concorre de forma mais subtil e perversa para a mesma função. Amputando a escola pública da sua função de inclusão, gera-se uma estratificação social dentro do que devia ser mistura e colaboração. Quando era deputado e fui a uma sessão do Parlamento Jovem numa escola em Almeirim, ouvi o melhor aluno da escola dizer que discordava das turmas de nível porque "Todos os alunos aprendem uns com os outros e todos devem aprender a trabalhar juntos". A consequência das turmas de nível é acabar com isso e é deliberado. Estratificar dentro da escola pública é o primeiro passo para estratificar fora dela.

A agenda do Governo é, portanto, a da sabotagem. Destruir a escola pública em todas as suas dimensões: encerrar infra-estruturas (em alguns casos, excelentes), despedir e infernizar a vida aos professores, subverter a lógica inclusiva e solidária que lhe dá sentido. Que lhe dá sentido e, já agora, que deu também os resultados, esses sim, excelentes que os indicadores do PISA têm revelado, por oposição aos de outros países que seguiram o caminho que Crato propõe.

12 comentários:

daniel ferreira disse...

Confesso que não entendo como funciona (ou não funciona!) o concurso de colocação de professores, nem sequer o que são escolas com autonomia e TIEP, e contrato de associação, e que tudo o que vou dizer possa parecer um absoluto desconhecimento do meio escolar (é mesmo!). Tento lançar algumas ideias dentro daquilo que vejo


Será que acabar com um concurso nacional de colocação de professores não resolveria o problema que se evidenciou este ano?
Permitir às proprias escolas a criação de concursos locais, podendo, por exemplo, recorrer aos centros de emprego em cada região, para a pré-seleção de professores, e final seleção pelos directores das escolas.

Penso que para isto resultar, tem que se dar total autonomia às escolas:
- definição dos programas pedagógicos, tendo por objectivo o cumprimento das metas nacionais
- escolha de professores, que melhores garantias dão à execução do programa definido, através de concursos a nivel local. Aqui podia-se ter a hipotese de um mesmo professor leccionar em várias escolas numa mesma região, com vista a ter total ocupação de horários
- liberdade de contratação e adjudicação de serviços ou equipamentos de apoio ao programa definido (cantinas, ginásios, laboratórios, parcerias empresariais, ATL, professores externos para actividades extra curriculares, transportes...)

Aceito criticas (e se necessário, dicas para melhor compreensão), mas aos anónimos que pretenderem ofender, digo desde já, podem ir para a PQP, e nem me darei ao trabalho de responder.

À parte, concordo que o actual Ministro da Educação (à semelhança da Ministra da justiça) não tem condições de continuar, e penso que devem ser substituidos assim que estes problemas estiverem ultrapassados

joão josé cardoso disse...

Por uma questão de justiça, o seu aos seus donos, convém referir que no consulado de M. Lurdes Rodrigues já se fazia o mesmo, nomeadamente aumentando, e muito, as subvenções aos colégios privados.
Quanto a "arruinar e desacreditar os serviços públicos" é igualmente um esforço continuado, que o golpe "choque e pavor" destes concursos remata talvez definitivamente. Os neoliberais da liberdade e autonomia andam aos pulinhos, compreende-se, o maior contigente de funcionários públicos à mão de semear e controlar seria uma festa.
As turmas de nível, que nem o são, e estão a ser autorizadas, foram testadas com algum êxito, e seria bom que à esquerda se parasse de atirar ao alvo errado: grupos transitório de nível podem ser uma boa solução, e inclusiva, tudo depende da autonomia que se dá às escolas: se for a do caminho da privatização que agora temos, claro que serão mesmo turmas de nível em muitos casos, haja controle como trem de haver em todo o ensino, que as crianças não são propriedade de ninguém incluindo os pais, e tal não terá de suceder.

R.B. NorTør disse...

Caro Daniel,

Independentemente do que acho de cada uma das suas propostas individualmente, na generalidade o que propõe seria dar um grau de autonomia à escola pública semelhante ao de uma qualquer escola privada. O que estaria bem e seria desejável na hora de se comparar o ensino público com o privado. Infelizmente o que se pretende não é isso. O que se pretende, como o José Gusmão tão explicitamente refere, é degradar a escola pública até esta um remedeio para quem dela não conseguir fugir. Sejamos francos, a escola pública dos ideólogos deste governo é uma escola pública onde nem os seus defensores querem por a descendência.

O segundo ponto passa por dizer que os Ministros só devem sair quando os problemas estiverem ultrapassados. Isso quer dizer que uma pessoa só se deve curar de um cancro quando não o tem? Porque os ministros que refere não são um sintoma, eles são a raíz do problema!

daniel ferreira disse...


Atenção que não falo em privatizar a escola publica(já o defendi antes, já não o defendo tanto agora), mas sim em dar total autonomia de gestão das escolas às direções (em matéria de colocações e programas), mantendo a propriedade e gestão da contratação (vulgo, salários e carreiras).
Por outro lado, não me incomoda a ideia do cheques-ensino, usando por referência o custo por aluno no público, mas dando total liberdade aos pais a escolha da escola (seja publica ou privada).

Porque a ideia que todos são iguais é falsa, nem alunos, nem professores. Igualitarismo não é enfiar tudo no mesmo saco e traçar a linha no mediocre, antes é dar oportunidades iguais a todos, para que cada um atinja o seu potencial.

2º " uma pessoa só se deve curar de um cancro quando não o tem?" não, mas uma pessoa substituir o médico que pode ter a cura, porque a máquina de raio x avariou, não faz sentido

Retirar um ministro a meio de um processo de recuperação dos problemas verificados pode ser contraprocedente, porque qualquer substituição leva tempo de integração. A única hipotese seria alguém já afecto à equipa. Mas já sabemos que nenhuma escolha é do agrado da esquerda (a não ser talvez o Mário Nogueira na Educação, e o Marinho Pinto na Justiça?!)

Eduarda Andresen disse...

Partindo da premissa de que o ministro não é assim tão incompetente e de maneira alguma incapaz de ver o que está de errado nas fórmulas matemáticas que aplicou para a selecção dos professores, e que o que aqui está a acontecer é mais um ataque premeditado à escola pública, não vejo grande dificuldade em perceber-se que o objectivo é preparar a opinião pública para apoiar a contratação directa de professores pelas escolas.

Aliás, já se podem ler, neste e em tudo quanto é blog, comentários de pessoas totalmente convencidas de que é por aí. Mas daí à obsolescência do professor-funcionário público e, através disso, à total aniquilação da escola pública, (ou à sua reserva para cursos técnico-profissionais, espécie de ensino-instituição para inadaptados) vai um passo muito pequeno.

E depois disso, a selva: Para os alunos, Educação à medida do seu bolso e da sua proveniência social. Para os professores, o inferno do recibo verde.

Mas todos sabemos que, embora jurada de morte, a Constituição da República Portuguesa diz que todos “têm direito à Educação”, uma que “realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva” .

Que “todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar”.

E que incube ao Estado “assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito” e “estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino”.

Moribunda ou não, a constituição, mais as adendas de 1982, que regulavam o ensino privado e cooperativo onde houvesse carência de oferta da rede pública, impõe obrigações ao Estado, que tratou de se desenvencilhar delas com a introdução na lei, em 2013, do conceito da "livre escolha das famílias".

Coisa prioritária e com a qual os governos PS / PSD/CDS estão muitíssimo preocupados.

Anónimo disse...

(Um excelente comentário de Eduarda Andresen)

De facto os neoliberais andam aos pulinhos ( como diz joão josé cardoso) Seguem e vêem seguidas as "recomendações" dum dos papas da governança neoliberal, de nome friedman.

Vamos a factos concretos sem nos determos no momento em derivativos ou manobras encapotadas de defesa da manutenção destes ministros. Alguém dizer que " mas já sabemos que nenhuma escolha é do agrado da esquerda" como justificação para manter um ministro aldrabão, que mente e que sabe que mente, é um disparate completo.

A governança neoliberal preocupa-se sim com o que os seus patrões possam pensar.Estão-se positivamente nas tintas para todos os outros
Mas a discussão sobre Crato já teve lugar pela mão do Nuno Serra e a sua denúncia frontal permitiu ver que tipo de tipo é este crato.

De

Anónimo disse...

Transcrevo aqui parte dum texto de André Levy, escrito já há mais de um ano, em que ele expõe e esclarece, com uma clareza notável, alguns dados deste problema:

"Os cheques-ensino são porém uma forma do Estado subsidiar o sector privado cujo negócio é o ensino. Um mecanismo que parte de um pressuposto incorrecto sobre a função dos nossos impostos. Parte dos impostos que os pais pagam vai para o sistema de educação público, e não directamente para a educação dos seus filhos em particular. Parte dos meus impostos também vão para esse sistema, embora não tenha filhos. E apraz-me que assim seja, pois quero viver num país sem analfabetismo, em que os jovens recebam uma boa educação, em que a força de trabalho seja qualificada. E ao subsidiar os pais com um cheque-ensino, com uma fracção dos seus descontos de IRS (pela via que seja), o custo por aluno que permanece no ensino público aumenta e/ou aumenta a quantia que as restantes pessoas têm de pagar para manter esse sistema.

Mais uma vez, Portugal pode beneficiar da experiência da aplicação deste mecanismo noutros países, para aferir as suas consequências. Usarei como referência o extenso debate sobre o tema nos EUA, por ser a realidade que conheço melhor. Todos as principais organizações ligadas à educação, incluindo o National Education Association e o American Federation of Teachers, são contra os “school vouchers” (também referidos por outros eufemismos, como bolsas). Os seus argumentos cobrem todo um espectro:
os cheques-ensino não oferecem efectivamente liberdade para inscrever filhos nas escolas onde se queira, pois são as escolas privadas que determinam quem nelas é aceite.
O ingresso numa escola privada implica custos acrescidos (e.g., transportes, uniformes, etc.) que as famílias menos privilegiadas poderão não poder comportar, não tendo assim efectivamente a suposta escolha livre. Os cheques ensino aprofundam assim diferenças sócio-económicas.
Ao centrar a discussão política na “liberdade de escolha” e nos “cheques-ensino”, diverte-se da discussão mais importante sobre as escolas públicas (onde estão a maioria dos estudantes), de como ultrapassar o seu crónico sub-financiamento, e como resolver os problemas no ensino público através de medidas comprovadas, como a diminuição do tamanho das turmas.
nos EUA, a maioria das escolas privadas e que recebem alunos com cheques-ensino são escolas religiosas, que exercem critérios discriminativos na aceitação de alunos. Tal constituiu também mais um atentado à separação entre Estado e religião.
Não há qualquer evidência que as escolas privadas sejam mais eficazes a gerir o dinheiro (pelo contrário, acumulam-se casos de má gestão, uso inapropriado de fundos, e simplesmente custos por aluno superiores ao da escola pública).
Não há qualquer evidência que os alunos que usem cheques-ensino vejam a qualidade do seu ensino melhorado.
nos estados dos EUA com cheques-ensino, praticam-se dois sistemas de avaliação dos alunos, que agravam a diferenciação entre alunos do privado e público.
Assim, os cheques-ensino não têm qualquer benefício demonstrado para a qualidade do ensino público ou dos alunos que os usam para frequentarem o ensino provado e não contribuem para corrigir desigualdades sócio-económicas (pelo contrário). Refutados os benefícios sociais e educativos, resta o óbvio mecanismo de transferência de verbas para o sector privado e a elitização da educação. Juntamente com os ataques aos professores, suas carreiras e dignidade profissional para exercer a função docente, os cheques-ensino são um ataque ao sistema de ensino público e uma relevante frente de ataque ao sector público e ao Estado social.

André Levy

(De)

Anónimo disse...

“O Estado tem de ter uma política policial, judiciária, militar e estrangeira. Todas as restantes políticas, e não excluo sequer o ensino secundário, devem voltar para a actividade privada dos indivíduos. Se queremos salvar o Estado, temos de abolir o Estado colectivista.”
Ultima citação esta. De Mussolini no seu primeiro discurso no Parlamento Italiano, em Junho de 1921,

O fio ténue que liga o neoliberalismo com o fascismo…fica para depois.

De

O Puma disse...

Mais grave

este desgoverno existe

vernon disse...

Bom post e também alguns bons comentários.

Deste, juntamente com outros aqui referidos por De, sai um quadro nítido daquilo que está em marcha já há alguns anos para passar, via rentista, o sector da educação aos colégios privados. A estratégia está definida e a táctica é a que vemos - os que querem ver.
É mesmo, deitar fogo e deixar arder e depois, sobre os destroços, é tudo mais fácil.

Do ponto de vista do negócio, cada vez mais garantido, os colégios recebem o que o Estado lhes paga e ainda a possibilidade aumentada, via cheque, de “venderem o seu produto de ensino”.

A privatização do estado social e neste caso a educação é mais uma renda oferecida, e ainda mais perigosa de estabelecer e concessionar. Toda a transformação social associada faz prever o pior, mais pobreza para a maioria das pessoas é o que se oferece, e isso é aqui dito com muita clareza.

Anónimo disse...

Muito bom texto!

A.Silva

R.B. NorTør disse...

Olá Daniel,

Não tive hipótese de responder ontem, faço-o agora.

Não aleguei que estavas a falar de privatizar a escola pública, simplesmente o que propões daria a esta escola um grau de autonomia semelhante ao das escolas privadas e isso seria mortal para quem quer destruir a escola pública.

Salto agora para o segundo ponto e já voltamos ao primeiro. A questão de se retirar um ministro, ou quem quer que seja, prende-se com retirar a causa da doença. No caso da Educação o ministro é uma causa, não uma consequência e muito menos uma vítima. Se o ministro fosse vítima (por exemplo do Mário Nogueira...) talvez merecesse o benefício da dúvida.

Acontece que não é! (Entra o primeiro ponto.) O Ministro em causa é um dos pontas-de-lança da destruição da Escola Pública. Ele não acredita nela. Ele tem uma crença firme que escola pública é para ensinar a assinar o nome e quatro operações matemáticas aos filhos dos remediados.

Como pode alguém com estas convicções ajudar a resolver, se ele está lá para não resolver?