quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Notas soltas


A crise do grupo Espírito Santo é um novelo intrincado. Apesar das revelações de comadres zangadas e de algum notável jornalismo de investigação, não dispomos ainda de uma noção clara e completa do que está em causa. Mesmo com a procissão no adro, porém, podemos desde já tecer algumas considerações acerca do seu significado mais amplo. 

1. Não se trata apenas de gestão danosa ou incompetente.
Não é ainda claro até que ponto é que a crise do BES envolve responsabilidades de natureza criminal, nomeadamente em termos de gestão danosa, mas há indícios de que efectivamente terá sido esse o caso. Por outro lado, coloca-se a questão de até que ponto é que a derrocada deste império financeiro teria sido evitável mediante uma gestão mais prudente ou sensata - em suma, mais competente. Seguramente, a queda em desgraça de Ricardo Salgado tem todo o atractivo da derrocada de um barão da finança, antes idolatrado, subitamente revelado demasiado humano na sua competência e probidade.
Contudo, reduzir esta crise aos seus aspectos criminais ou de competência de gestão obscurece o que ela tem de estrutural - e que a meu ver é o mais importante. Os casos do BPN, BPP, BANIF, BCP e BES, no que têm de distinto e de comum, não revelam um súbito acréscimo de incompetência ou propensão criminal entre os capitães da finança portuguesa nos últimos cinco ou seis anos. Revelam, isso sim, a vulnerabilidade da banca portuguesa no contexto da grande estagnação internacional e da crise económica portuguesa dos últimos anos. A estagnação do investimento produtivo em Portugal, a lenta deflação da bolha imobiliária, os níveis crescentes de crédito mal-parado e a cada vez maior imbricação entre o endividamento público e o endividamento bancário externo têm vindo a pôr cada vez mais em causa a viabilidade do modelo de negócio da banca portuguesa. Ainda que parcialmente compensado por tentativas mais ou menos bem sucedidas de diversificação internacional, é esta tendência que, em última instância, propicia comportamentos de gestão mais arriscados (de modo a salvaguardar os níveis de rendibilidade) e torna mais visíveis as consequências de opções incompetentes ou danosas.
2. O fim de uma era
O sector financeiro foi o pivô central da acumulação de capital na economia portuguesa desde a privatização do sector e a liberalização dos fluxos de capitais na década de 1980, permitindo a consolidação de grupos económicos que conseguiram posicionar-se à sombra do Estado para beneficiarem das principais dinâmicas da economia portuguesa nas décadas seguintes - da privatização de parte substancial da restante actividade económica ao recurso crescente às parcerias público-privadas, passando pela aposta na bonificação do crédito à habitação ou pela intermediação bancária entre o BCE e o estado português. A ajudar tudo isso, claro está, esteve sempre a forte promiscuidade entre os mundos empresarial e governativo, sobejamente ilustrada pelos 25 ministros e ex-ministros da república que nalgum momento passaram pelo BES.
Para o bem e para o mal, porém, esta era está a chegar ao fim. A vulnerabilidade económica destes "centros de decisão nacional", consequência dos constrangimentos estruturais com que se confronta a economia portuguesa como um todo, tem vindo a ser cada vez mais demonstrada - e sê-lo-á ainda mais à medida que o default soberano português se for tornando mais obviamente inevitável para todos, com o que isso implica em termos de imparidades para a banca portuguesa. No longo prazo, há duas grandes vias possíveis de resolução desta crise: a nacionalização da banca num contexto de ruptura com o quadro institucional europeu; ou a absorção dos centros de acumulação da economia portuguesa (e da banca em particular) pelo capital internacional num contexto de sangria arrastada da economia portuguesa.
3. "Não há dinheiro" quer dizer diferentes coisas em diferentes alturas.
O estado português prepara-se para injectar 4500 milhões de dólares com vista a viabilizar o "novo banco" resultante da divisão do BES em banco "bom" e banco "mau". Os contornos da operação ainda não são totalmente claros, mas a Ministra da Finanças alega que se trata de um empréstimo "sem risco". Porém, não deixa de ser legítimo que perguntemos: se é suposto que o banco "mau" concentre todos os activos tóxicos e imparidades, para que é que o banco "bom" precisa de uma recapitalização desta ordem de magnitude? Estamos a falar de um montante equivalente a mais de metade do orçamento anual para a saúde, várias vezes superior ao impacto orçamental dos chumbos do Tribunal Constitucional há poucos meses. Se o banco "bom" está assim tão necessitado de recapitalização, qual a garantia que temos que o buraco não continua a aumentar, como sucedeu no caso do BPN, e que os contribuintes não acabam por suportar as perdas? Se isso vier a verificar-se, desta vez nem sequer temos o direito de nos mostrarmos surpreendidos.
Vivemos na era do domínio da finança. Em Portugal, é um domínio com pés de barro, internacionalmente subordinado e totalmente dependente do Estado. Mas isso não o torna menos perigoso para todos nós.
(publicado originalmente no Expresso online; o cartoon é da Criada Malcriada)

7 comentários:

Unknown disse...

noto que não foi feita referencia a intervenção(fundamental) da UE no que está em andamento.
Como não decidimos o que se faz sozinhos, vale a pena enquadrar tudo

Petrus Monte Real disse...

Bela análise.
Ainda não tinha lido nada tão esclarecedor, mas, mesmo assim, continuo a ver questões essenciais sem resposta clara.
Aliás, o autor dá conta dessa realidade, ao colocar várias questões no centro da sua argumentação.

Por exemplo: se o novo banco é bom, para que necessita de uma injecção tão elevada de capital?

Deixo outra questão que agora se levanta no meu espírito:
- Já alguém entendeu como é que foi possível a criação de um novo banco, com a intervenção do Banco de Portugal. Será que o BP tem competência para o efeito? Não consigo perceber, como é possível que uma entidade Supervisora (com poderes de fiscalização e punição) pode ser também impulsionadora (para não dizer mentora) de uma nova instituição bancária. Não será uma contradição ou paradoxo que ofende os princípios e normas legais próprias do regime legal bancário?


Boa nota de António Cristóvao:
de facto ainda não foi referenciada, nem sequer noticiada ou citada qualquer fonte comunitária.

Deus queira que a UE não venha a reprovar todo este processo...

Anónimo disse...

O que se passou no BES é um caso em que salta logo uma pergunta: Como foi possível chegar a uma situação destas ? Onde estava a supervisão do Banco de Portugal.Prova que em Portugal não há qualquer controlo sobre o sistema bancário. Sobre a situação adoptada como solução para o problema há muitas duvídas a esclarecer, e talvez muito improviso.

meirelesportuense disse...

Repararam que o VitinhoCareca chegou lá e nos dias imediatos à sua chegada os Salgadinhos sacaram toda a massa que podiam -até parece que o carequinha foi lá ensinar o conto ao vigário...Depois, entra o Banco de Portugal a tapar todos os buracos.
E mais tarde, pouco mais tarde, o presidente do BP e o novo presidente do BES dizem que foram completamente apanhados de surpresa!...Mas que grande tramóia.

meirelesportuense disse...

Depois vêm com a treta de que vão ser os Bancos a pagar os prejuízos do BES, mas quem entra já com a massa é o Governo, com o Governo a "acreditar" piamente que com o tempo os Bancos vão acabar por pagar as suas dívidas...Deixa-me rir...E lá, no centro do Terramoto, vai estar o carequinha do Bento a tratar dos assuntos mais melindrosos, isto é cuidar dos interesses dos grandes accionistas!
Mas "fiquemos todos descansados", que a partir de hoje vai ser tudo gerido com a maior honestidade!
O que está para trás, foi apenas, mais um percalço.

meirelesportuense disse...

O Banco "bom" vai servir de capa para tratar do défice acumulado pelo BES e supostamente desviado para o Banco "mau"...Aliás como fazem eles para dividir dentro do mesmo espaço físico a actividade de um e de outro, como devo fazer quando entrar nas instalações do BES, devo perguntar, desculpem mas podem indicar-me qual é o lado "bom" e qual é o lado "mau" do Banco?...
Já agora, os empregados, os que gerem o Banco "mau" são os maus e desonestos e os que estão no atendimento do Banco "bom" é que são honestos e íntegros?
Ou será ao contrário?
Ou será ainda que são os mesmos a atender de um lado e do outro?...
-Fico-me a pensar nisto e imagino um gerente de uma Agência de referência do exBES -nomeado à confiança pela trupe do Salgado- a fazer uma operação financeira volumosa e arriscada, não sentirá ele a "pequena" tentação de dar uma dica ao Ricardito?...Não sei, a fragilidade humana é tão grande...
-Já agora, de onde provém o actual Governador do BdeP Carlos Costa?
Vejam bem o seu percurso.
É extraordinário: -Entre 2004 e 2006 geriu a Caixa Geral de Depósitos, Caixa Geral de Aposentações e Banco Nacional Ultramarino de Macau, para além de ser Professor na Universidade do Porto, da Católica e Protestante, é o que se chama um tipo cheio de "genica", consegue estar em vários exercícios ao mesmo tempo, mas hoje já não dá pela aldrabice do Ricardo Amigo, o Governo está Contigo...

Anónimo disse...

Caro sr. Monte Real

o senhor tem dúvidas que esta solução (tal como a do bpn) foi imposição da ue ?

Acha mesmo que alguma decisão neste país é tomada em lisboa ?