quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Da vida

Há um cartaz outdoor que anuncia carne portuguesa "nascida, criada, abatida e desmanchada em Portugal". Há dias em que me identifico profundamente com essa descrição. Também serve para o que querem fazer ao Serviço Nacional de Saúde, aos CTT, às freguesias e tantas outras riquezas públicas que são boas para os portugueses: desmanchar para vender é uma boa definição da privatização (…) É horrível verificar como a insinceridade comercial tem aumentado, por causa do desespero económico. Os sorrisos estão a atingir níveis norte-americanos de falsidade (…) As pessoas estão tão aflitas e têm tanto medo que sorriem desmedidamente. Não há nada mais deprimente (…) A falta de clientes leva a uma simpatia falsificada que desorienta os portugueses com mais anos de serviço. Quem diria que seria a miséria a dar cabo dos nossos miseráveis semblantes? Que triste termos perdido até a nossa soturnidade. Que nojo. 

O mal que se faz aos desempregados, para além de não lhes dar menos de metade do que é necessário para sobreviver (para não falar em viver), é não lhes dar a satisfação de deixar de trabalhar. Trabalhar é mau. Mas é aquilo que se faz para ganhar a vida. Esta desculpa está no centro metafísico de todas as nossas vidas. E faz falta. Eis a maior violência que se faz, tanto aos desempregados como aos desempregáveis: remove-se, cruelmente, a ilusão da contribuição positiva e laudatória que teriam, caso trabalhassem. Trabalhar, existir e queixarmo-nos de como trabalhamos, existimos e nos queixamos, é a nossa melhor maneira de sobreviver e coexistir. O som do queixume parece-se com a batida do coração. Não há outro mundo que achemos mais nosso do que este, já tão prometido como familiar. Repetir o que nos dizem os corações torna-se imediatamente na única coisa que cada um imaginou. E todos nós, sem suspeitar de qualquer solução, somos levados a querer o que as nossas almas queriam, desde que nasceram. Ainda bem.

Excertos de duas crónicas de Miguel Esteves Cardoso, de hoje e de anteontem, respectivamente. É por crónicas de economia com sentimentos morais, digamos assim, destas e por algumas das outras – as do peixe grelhado, da fruta da época, do amor, da velhice e da criancice – que desde há algum tempo começo sempre a minha leitura matinal do Público pelo mesmo sítio, por uma empática “disposição conservadora” que pode ser mais radical do que muito do que passa por pensamento crítico. É a vida.

1 comentário:

jvcosta disse...

Não vou tão longe em termos de leitura obrigatória. Primeiro, porque o Público há muito deixou de ser o meu jornal prioritário, como não é, infelizmente, nenhum jornal português, sempre deixados para trás do NYT, do Guardian e do El Pais. Segundo porque, mesmo no Público, MEC não é prioritário para mim.

Admito que é inteligente, arguto, culto e com alguma dose de humor. Mas muitas vezes é pretensioso, opina com arrogância (vá lá, menos do que outro menino bem, MSTavares) sobre o que não domina bem. Por exemplo, gastronomia, em que acho que o posso julgar (Gosto de Bem Comer).

Mas o que mais me desagrada em MEC, desde a doença da sua mulher, é o despudorado desnudamento da sua privacidade. Nem é só uma questão de bom gosto e de educação, é também de respeito. A minha mulher nunca me perdoaria que eu a expusesse assim na praça pública. MEC desculpa-se com o amor que tem pela sua Maria João. Acredito, mas não pode ser menor o imenso que tenho pela minha morena.