quarta-feira, 20 de março de 2013

O salário mínimo, a árvore e a floresta

(Ou: Brincando à economia neoclássica, com bonecos e tudo, para que o primeiro ministro entenda mais facilmente)

A despeito da posição do governo, várias confederações patronais reuniram ontem com as centrais sindicais para discutirem a actualização do salário mínimo nacional (SMN), mostrando assim entenderem bastante melhor o funcionamento da economia do que o primeiro ministro, que há cerca de duas semanas proclamou na Assembleia da República, em tom professoral, que para reduzir o desemprego seria necessário reduzir o SMN e não aumentá-lo.

Passos Coelho tem em mente o mesmo entendimento da economia que (com um outro grau de sofisticação, é certo) está também subjacente ao estudo que um consórcio de investigadores das Universidades do Porto e do Minho realizou em 2011 por encomenda do governo recém-empossado – estudo esse que serviu de justificação para que o governo rasgasse o acordo (assinado em 2006 em sede de concertação social) que previa a actualização anual do SMN de modo a que este atingisse os 500€ em 2012. Concluía o referido estudo que a actualização do SMN de 485€ em 2011 para 500€ em 2012, a suceder, provocaria “uma diminuição do emprego que variará entre -0,34% (…) e -0,01% (…)”. Recorde-se,  já agora, que a diminuição do emprego que efectivamente se verificou ao longo do ano de 2012, sem a actualização do SMN, foi de -4,3% - isso mesmo, entre 12,6 e 430 vezes superior à redução do emprego que o estudo estimava ser provocado pelo eventual aumento do SMN. Mas os problemas do estudo, e desta visão da economia, não se limitam a ignorar e/ou branquear os factores realmente determinantes do desemprego.

De forma resumida, a explicação do desemprego neste entendimento da economia assenta na ideia que cada empresário, enquanto optimizador racional, decide contratar ou despedir trabalhadores comparando a produtividade marginal destes com o custo (de oportunidade) da sua remuneração. A caixa automática do hipermercado custa 490€/mês, o trabalhador custa 500€/mês, opta-se pela caixa automática se as “produtividades” forem idênticas. E até é verdade que em isto acontece em maior ou menor grau, embora de forma muito mais permeada de incerteza e heurísticas e muito mais mediada por factores institucionais do que o modelo neoclássico reconhece. De qualquer forma, um modelo é uma simplificação, já sabemos, pelo que daí resulta uma curva de procura agregada de trabalho que é decrescente com o preço. A oferta agregada de trabalho é crescente com o preço, pois com uma remuneração mais elevada os trabalhadores estarão tendencialmente dispostos a trabalhar mais horas e mais pessoas estarão tendencialmente disponíveis para trabalhar. O preço (salário, neste caso) de equilíbrio corresponde à intersecção das curvas de oferta e procura de trabalho, sendo o desemprego involuntário causado pela imposição exógena de um limite mínimo “artificial” acima do preço de equilíbrio. Baixe-se o SMN e reduzir-se-á o desemprego; aumente-se o SMN e aumentar-se-á o desemprego.



O modelo é simples de entender, mas não reflecte a realidade. Parafraseando o próprio Passos Coelho, confunde a árvore com a floresta. Isto sucede porque a alteração do salário mínimo altera a distribuição do rendimento (de forma directa e indirecta, uma vez que as tabelas salariais são institucionalmente definidas a partir, entre outras coisas, do SMN como base) e, por sua vez, a alteração da distribuição do rendimento, como é reconhecido pela própria economia "mainstream"(veja-se este estudo do FMI, por exemplo), afecta a procura agregada na economia. Aumentar o salário mínimo aumenta a procura agregada porque altera a distribuição do rendimento em favor dos consumidores que, tendencialmente, exibem menor propensão para a poupança e menor componente importada do seu cabaz de consumo. Aumentando a procura agregada (no mercado de bens), a curva de procura de trabalho não permanece estática – sofre uma deslocação para a direita, uma vez que o acréscimo da procura por bens traduz-se num acréscimo da procura de trabalho para o mesmo nível de preços.  O efeito sobre o desemprego é o que está representado na figura em baixo e é, em termos estritamente teóricos, indeterminado – depende do declive, posição e deslocação das curvas. Em termos empíricos, até pode ser estimado - mas não se pode é assumir que o efeito sobre a procura de trabalho decorrente da alteração da distribuição do rendimento (a deslocação para a direita da curva de procura de trabalho na figura em baixo) é inexistente - como assume este estudo.


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No mundo real, numa economia em que a maior parte do emprego corresponde a micro, pequenas e médias empresas e num contexto caracterizado por níveis recorde de desemprego, um fortíssimo aumento do ritmo das falências e o colapso do investimento por expectativa de contracção permanente da procura, é evidente que uma política de rendimentos progressista é uma condição necessária para a recuperação do mercado interno e da economia – e que o aumento do SMN é uma componente essencial de uma tal política. Nada disto é tido em conta no estudo a que me referi em cima – a análise assenta numa comparação entre sub-mercados de trabalho diferenciais, no fundo caracterizados pela maior ou menor prevalência do SMN, e na estimação econométrica, de forma comparada, da criação/destruição de emprego nesses sub-mercados de trabalho. O efeito sobre a procura de trabalho, através do efeito sobre a procura agregada no mercado de bens, não é tida em conta, pois afecta transversalmente a generalidade dos sub-mercados de trabalho incluídos na amostra. Logo, o contrafactual não é um verdadeiro contrafactual – e resulta que os efeitos estimados do aumento do SMN sobre o emprego são incorrectamente estimados. Ou seja, confunde-se as árvores com a floresta.

Tenho tanta esperança que Passos Coelho seja sensível a este argumento como que seja sensível aos argumentos da dignidade humana ou da redução da desigualdade: nenhuma. O desemprego não é para este governo um “desapontamento” – é uma peça central da estratégia de compressão salarial. Já os estimados colegas que realizaram o estudo em 2011 talvez fizessem bem em pôr a mão na consciência no que diz respeito a elaborarem estudos, com base em metodologias incompletas e estimativas enviesadas, que sustentam ideologicamente a destruição da economia e sociedade portuguesas pelo governo em funções. É que está em causa a vida das pessoas - e isso não é coisa pouca.


2 comentários:

Anónimo disse...

Errado, aumentar o salário mínimo atira mais pessoal para o desemprego. Em vez de ganharem 450€, por exemplo, passam a ganhar 0€. Nem a procura interna aumenta. Os economistas de mainstream que defendem o salário mínimo "assumem" que as pessoas vão continuar com emprego. Errado, aqueles cujo salário mínimo pretende ajudar, são as mais prejudicadas (mas bastante mais, pois são atiradas para o desemprego).

JoaoRodrigues disse...

Uma questão não abordada no texto é distribuição social de custos e benefícios do salario mínimo.

Quase todas as ofertas de emprego exigem experiência profissional. É perfeitamente racional um desempregado vender o seu trabalho pelo preço que ele e o seu empregador acordarem, recebendo em troca vencimento e experiência.

O SMN é um ataque à liberdade de um indíviduo poder vender o seu trabalho pelo preço que quiser. Prejudica os mais desfavorecidos (jovens e precários que ficam no desemprego) para defender os interesses dos trabalhadores com contrato (cujo despedimento é caríssimo).

O SMN é ineficiente (aumenta o desemprego) e injusto (tira aos pobres para dar aos ricos).