segunda-feira, 27 de maio de 2024

Invenções ideológicas


Tal como Rui Tavares já tinha há uns anos, e totalmente a despropósito, mobilizado Marx para a sua causa federalista europeia, Hélder Fontes fez recentemente o mesmo com Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano: “Gramsci deu grande parte da vida pela coesão entre os povos europeus e fundou o eurocomunismo.” Trata-se de um mesmo esforço ahistórico para inventar uma tradição radical para uma escala e um quadro institucional onde praticamente só tem havido capitalismo cada vez mais puro e duro. 

Coesão entre povos europeus é uma ideia generosa, a questão é qual a melhor forma de a alcançar. O autor da ideia de vontade coletiva nacional popular falava de povos no plural, Estados no plural, com as suas peculiaridades culturais e de desenvolvimento, algo que este leninista italiano enfatizou nas suas reflexões sobre estratégia política para tornar a classe trabalhadora hegemónica nas sociedades e no Estados a ocidente da triunfante “revolução contra o Capital”. 

O revolucionário Gramsci não fundou, nem sequer foi percursor, do eurocomunismo, já que faleceu nas prisões do fascismo, em 1937, e o eurocomunismo surgiu nos anos 1970, num contexto de Guerra Fria e de tendências reformistas em alguns partidos comunistas, para se desvanecer nos anos 1980, antes da existência da UE, forjada em Maastricht no início dos anos 1990. De qualquer forma, o eurocomunismo dizia mais respeito a um certo distanciamento em relação à URSS, à questão do compromisso com os socialistas ou democratas-cristãos nos Estados da Europa Ocidental e às reformas nesse turbulento contexto histórico do que a qualquer outra coisa. Mais rigor. 

Hélder Fontes escreveu um artigo de crítica ao que apoda de “euro-exterminadores”, mas em que não nomeia qualquer posição atribuível a pessoas ou coletivos concretos. Assim é mais fácil. O Público sugere a leitura do artigo de Ricardo Paes Mamede. Talvez o artigo seja uma polémica com as suas posições. Quem sabe? Mais frontalidade e clareza e menos amalgamas. 

De resto, a UE não é, para a esquerda crítica deste arranjo, a “encarnação do mal”, embora seja a encarnação de muito do que está mal. É a expressão política, em grande parte do continente, do neoliberalismo – do mercado único à moeda única (e nem todos os Estados da UE aderiram ao euro, nem irão certamente aderir), passando pelos acordos de comércio e investimento liberalizadores, tudo blindado por tratados, como todos sabemos. 

O que fazer? Avançar com o neoliberalismo armado de pendor federalista, como propõe Mario Draghi, ao qual uma certa esquerda na prática há muito se rendeu, e assistir, entretanto, ao avanço imparável da extrema-direita, agora bastante confortável com um quadro institucional europeu que a favorece? Ou lutar por uma reconfiguração da UE, de geometria muito mais variável, que permita recuperar instrumentos de política para a escala onde está a democracia realmente existente, a nacional; instrumentos que tanta falta fazem para o desenvolvimento deste retângulo, com os seus bloqueios específicos: menos integração, melhor integração; menos submissão nacional, menos vieses de classe. É necessário estar disponível para todas as rupturas neste processo, como o trágico destino da esquerda dita radical grega, nos idos de 2015, demonstrou; é uma história recente e que muitos se esforçam por esquecer.

Sim, o mercado único e a moeda única, como todos os outros saltos federalistas neste contexto, têm um viés favorável ao capital que é grande e são comandados politicamente pelas grandes potências, favorecendo a nossa periferização. Mais realismo na análise e menos invenções ideológicas. 

3 comentários:

Anónimo disse...

Olha! A Europa das Nações! Mas esse nicho de mercado não foi comprado pela Le Pen?

j. disse...

um clássico de Lenine para reler criticamente: "Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa".

"Do ponto de vista das condições económicas do imperialismo, isto é, da exportação de capitais e da partilha do mundo pelas potências coloniais «avançadas» e «civilizadas», os Estados Unidos da Europa, sob o capitalismo, ou são impossíveis, ou são reaccionários.

O capital tornou-se internacional e monopolista. (...)

Renunciar às colónias, às «esferas de influência», à exportação de capitais? Pensar nisso significa descer ao nível dum padreco que todos os domingos prega aos ricos a grandeza do cristianismo e aconselha a dar aos pobres ... bem, se não uns quantos milhões, pelo menos umas quantas centenas de rublos por ano.

(...) O capitalismo é a propriedade privada dos meios de produção e a anarquia da produção. Preconizar a «justa» partilha do rendimento nesta base é proudhonismo, estupidez de pequeno burguês e filisteu. Não se pode partilhar de outra maneira que não seja «segundo a força». E a força muda no curso do desenvolvimento económico."

mas o LIVRE, honra lhe seja feita, é um partido assumidamente proudhonista.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1915/08/23.htm

Anónimo disse...

É preciso mostrar sapiência mandando uns autores para o monte mesmo não os tendo lido ou compreendido.