quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A forma certa de colocar a questão nestas negociações


Recomenda a ética no espaço político que sejamos capazes de verificar a nossa estrutura de ideias e de valores antes de colocarmos em causa a dos outros.

Tenho visto muitos apoiantes do Partido Socialista a sublinhar a injustiça de os partidos à sua esquerda quererem determinar o curso do Orçamento de Estado tendo tido apenas cerca de um terço dos votos dos eleitores. Perguntam: "Por que deve o Partido Socialista aceitar a maioria das propostas desses partidos, se estes não têm legitimidade política para isso?". Insistirem neste caminho, dizem-nos, é o reflexo do desejo desses partidos encaminharem o país para uma crise e para os braços da direita.

A maioria das medidas propostas pelos partidos de esquerda são do âmbito do código do trabalho, do funcionamento do SNS e da segurança social. Muitas medidas não têm impacto orçamental ou têm um impacto orçamental marginal a moderado, nada que seja extraordinário num dos países europeus que menos esforço orçamental contracíclico fez contra a crise.

Falamos de medidas como o fim da caducidade dos contratos coletivos de trabalho, o reestabelecimento dos 30 dias de trabalho como referencial da indemnização por despedimento ou a reposição da cláusula de tratamento mais favorável nos contratos coletivos (medidas estruturantes de relações laborais mais justas sem impacto orçamental), mas também a possiblidade de autonomia de contratação nos hospitais do SNS, permitindo uma melhoria de eficiência de gestão pública e resolver parte dos problemas que assolam os hospitais públicos neste momento, ou ainda o fim das penalizações para as longas carreiras contributivas ou para as profissões de desgate rápido.

Por isso, neste momento, vale a pena devolver a questão aos apoiantes do Partido Socialista: "Por que motivo o PS, um partido que reclama a sua identidade de esquerda, não apresenta estas propostas por sua própria iniciativa? Não ficam estes apoiantes perplexos pelo seu partido não ser o primeiro a avançar com estas medidas, sem sequer precisar de um incentivo externo à sua aprovação? Que justificações substantivas encontram esses apoiantes para a não aceitação destas medidas, para lá de saber as forças políticas que a redigiram?"

Se forem capazes de responder a estas questões, podemos ter uma conversa séria e com substância a partir daí. Caso contrário, não passa de agitar o fantasma da vinda da direita para fazer aprovar um Orçamento de Estado que não corresponde às aspirações das pessoas de esquerda que votaram neste governo, incluindo os votantes do próprio Partido Socialista.

E acreditem: não há nada melhor para acelerar a vinda da direita do que criar a perceção de pântano, em que a manutenção de um governo não se baseia na concretização das aspirações das pessoas mas antes no aceitar um menos mau para afastar o lobo mau ao virar da esquina.

5 comentários:

Anónimo disse...

Tenho visto muitos apoiantes do Partido Socialista a sublinhar a injustiça de os partidos à sua esquerda quererem determinar o curso do Orçamento de Estado tendo tido apenas cerca de um terço dos votos dos eleitores.
Se o PS teve a maioria absoluta dos votos dos eleitores, essa questão é pertinente. Se não, então o terço dos elitores que votaram nesses partidos podem sempre dizer que não votaram no PS e se a política é sempre a que o PS marca sem cedências, então o seu voto está a ser ignorado.

Jaime Santos disse...

Não sei porque o PS não defende a priori as medidas que elenca, se por uma questão ideológica, se por um cálculo das relações de força que existem ao nível da UE e que limitam a capacidade negocial do Governo Português, se porque espera usá-las como moeda de troca durante a própria negociação (se for este o caso, devo dizer que considero que o processo negocial está a ser muito mal conduzido pelo PS, porque isto deveria ter sido discutido há muito com os parceiros, mas mesmo tratando-se de uma questão relevante, é de forma e não de princípio).

Afinal, esta negociação não ocorre apenas na AR mas também em Bruxelas (é isso que implica a partilha de soberania que representa a UE, mesmo que o Diogo Martins não concorde com ela).

Mas confio que o dito Partido tem boas razões para o fazer, porque o historial do PS é positivo e também é positivo porque é um de moderação.

Uma reivindicação pode ser justa mas não ser imediatamente realizável, como bem lembrou a Ministra da Saúde recentemente. A ética dos princípios e a da responsabilidade estão afinal às vezes em contradição uma com a outra.

Não voto no PS apenas por causa dos belos princípios, mas sobretudo por causa da sua maturidade política. E aposto que muitos dos seus eleitores dirão o mesmo.

Repito o que já disse. Se a prioridade para eles fosse a imediata realização de todas estas reivindicações, o BE e o PCP-PEV há muito que seriam Governo, só que não são.

Conclua daqui o que quiser, mas se quiser concluir que 37% do eleitorado ou é cruel ou está iludido e isso desde 1976, mais eleição menos eleição, é lá consigo. Só que se o fizer, estará a julgar estes eleitores com bastante arrogância moral.

E se a Esquerda persistir em impor a sua agenda a esta maioria relativa, quem ganhará é a Direita. Note que não considero uma qualquer injustiça que os outros Partidos apresentem as suas propostas e que lutem por elas. O que me parece irrealista é a exigência da sua concretização maximalista, sobretudo à luz da representação parlamentar relativa de cada Partido.

E o problema, Diogo Martins, é que o fantasma não é um fantasma, é uma possibilidade bastante real que deveria entrar no cômputo das Esquerdas. Porque se essa possibilidade ocorrer, a capacidade da Esquerda de propor essas mesmas medidas que defende em sede de negociação orçamental passa a ser zero.

Cada Partido faz, muito legitimamente, a leitura que quiser da realidade política e será depois julgado em relação a isso nas urnas, mas a concretização das aspirações das pessoas faz-se com bom senso e prudência e na medida do que é a cada momento possível.

Ou não se fará de todo num cenário de crise política e de regresso da Direita ao poder.

E se dizer isto é gritar pelo Lobo Mau, pois paciência...

Anónimo disse...

"Muitas medidas não têm impacto orçamental ou têm um impacto orçamental marginal a moderado"
Por isso mesmo é que faz todo o sentido discuti-las agora, que se discute o Orçamento.

Francisco disse...

Os partidos centristas, como diz Felix Ponteil (Les Bourgeois et la Démocratie Sociale), não são nem reaccionários nem radicais, nem democratas, nem aristocratas, nem nacionalistas: são partidos que cultivam soluções de compromissos e de meio-termo. E é nessa massa pantanosa de consensos cada vez mais impossíveius, que partidos como o PS assumem o seu papel histórico, de se constituirem como elemento de perpetuação de sociedades classistas, em que a moderação para uns é (como aqui neste blogue tem sido exaustivamente demonstrado), condição do porno-riquismo de outros. A moderação salarial de 650,00 euros, é o contraponto de um Mexia, de um Salgado de um Azevedo e de tantos outros; a moderação de gastos no SNS é o outro prato da balança da Luz Saúde, da CUF, do Grupo Champalimaud e de tantos outros; a moderação no acesso à habitação por parte de milhares de portugueses, é o contraponto de Rendeiro e dos seus quadros na Quinta Patiño, a moderação laboral de um precário, é a garantia de que a exploração continuará a alimentar tudo o que vai para paraísos fiscais, and so, and so, and so. Paradigma da moderação e do pouco mais ou menos, é a ideia do elevador social, que tem como irmã gémea a ideia de empreendedorismo. E desse concubinato incestuoso, nasceu (como diria a Profª. Marinela Chauí), o mais repugnante dos seres: a "classe média". Gente talhada e educada para a aceitação de um certo status quo, gente de poucochinho, que vê na sociedade desigual em que vive, não um problema ou uma ameaça, mas antes a confirmação daquilo que na sua mundivisão é a ordem natural das coisas; gente que, por conseguinte, vai espreitando aqui e ali, o aparecimento da sua janela de oportunidades. Sócrates, Vara, Pinho, Soares, Vitalino Canas e tantos outros, são disso exemplos perfeitos. Não se estranha por conseguinte, que no contexto da discussão e aprovação de um instrumento como o orçamento do Estado, o incómodo se faça sentir, quando a discussão se desenvolve já não em função desses critérios paradigmáticos de pouco mais ou menos e de moderação cúmplice com os de cima, mas antes em torno de opções que vão obrigar o governo a escolher (mesmo que marginalmente, mesmo que apenas ao de leve, mesmo que de forma tão discreta que muitos dos meus concidadãos nem darão por isso) caminhos que são, por definição e natureza, fracturantes. Cabe ao PS (aos vários PS, porque não há apenas um só), saber, também agora, de que lado quer estar.

Anónimo disse...

A esmagadora maioria dos analistas todos os dias em vários canais falam-nos do perigo do vazio ao centro,segundo eles isso só beneficia os extremos(mais preocupados com os partidos a esquerda do PS),as propostas feitas a esquerda para aprovar o orçamento(podiam ser aprovados por partidos sociais-democratas dignos desse nome),os cidadãos cansados e desiludidos com os partidos do chamado bloco central ,afastam-se cada vez mais de exercer o seu direito a eleger os seus representantes,as esquerdas(bloco,pev e pcp) não são capazes de constituir uma convergência credível e abrangente que consiga romper com este marasmo que beneficia apenas os poderosos.