segunda-feira, 6 de julho de 2020

Jogo

Se há tema em que não há dúvidas sobre qual o "jogo" dos responsáveis do PS é o laboral. E no entanto, esse "jogo" toca milhões de portugueses.

No Parlamento, é notória a felicidade com que fazem discursos galvanizadores dos trabalhadores; com que batem na direita contra a degradação laboral. Os deputados são arrebatados e as palmas saem-lhes vivas e sinceras. Acreditam. É, na verdade, essa a sua natureza de fundo. Mas depois, quando chega a altura de decidir, a sua prática assemelha-se à de um político capturado, sem visão ou força. No essencial, alinham - tristes, ainda que sorriam - com a direita.

É como se a palavra fosse inversamente proporcional a décadas de sapos mal engolidos, mal digeridos e pior processados, a ponto de repetirem sempre os mesmos erros. Já nem se fala das alterações legais em linha com o FMI nos anos 70/80, com a OCDE na década de 90 que, aliás, marcou a Estratégia Europeia de Emprego, que veio marcar a linha política tanto do PSD como do PS: transbordou para o Código do Trabalho de Bagão Félix em 2003, para o seu aprofundamento pelo PS em 2008, para as medidas adoptadas pela direita em 2012, às quais o PS aderiu tacitamente, desvalorizando o trabalho e reduzindo a protecção no desemprego.

A 5 de junho de 2018, António Costa elogiou um acordo sobre a precariedade laboral que era apoiado pelo patronato e que contou no Parlamento com o empolgamento da direita, para acabrunhamento do PS. Mas as palavras de Costa saíram-lhe cheias e sinceras. Leia-se o diário das sessões para ver como estavam empolgados:
Este é o primeiro acordo de concertação, em muitos anos, que interrompe a tendência para a desregulação do trabalho e para o fomento da precariedade. (...) Este acordo, assinado por todas as confederações patronais, significa uma mudança de paradigma na visão das associações patronais relativamente ao mercado de trabalho, é a compreensão de que o combate à precariedade não é só um combate pela dignidade e pelos direitos de quem trabalha, é também uma condição essencial para a melhoria sustentável da produtividade de cada empresa. (...) Este acordo reforça, desde logo, as condições da administração do trabalho, designadamente da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). (...) Esta é a primeira vez, em muitos e muitos anos, que temos um acordo de concertação social que não visa limitar direitos nem desregulamentar a relação de trabalho, mas, pelo contrário, visa reforçar a proteção coletiva do trabalho e aumentar os direitos dos trabalhadores, que é algo que todos devíamos valorizar o combate à precariedade (...). As relações laborais das empresas do futuro não podem assentar na precariedade, porque o elemento capital para o sucesso dessas empresas é a inovação, e só há inovação se houver formação, e só há investimento na formação se houver tempo para aproveitar essa formação.
Mas depois vem a realidade.

Será por receio do que aí vem? Será por receio de que, mal acabe o lay-off, as empresas abram a torneira do desemprego? O certo é que o Governo parece estar pronto a ceder a tudo o que seja reivindicação patronal, mesmo que isso degrade as condições laborais e de vida dos trabalhadores.

Sintoma dessa cedência permanente - já nem se fala da escolha de Francisco Assis para presidir ao Conselho Económico e Social - é a recente polémica entre os inspectores do Trabalho da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e os sindicatos, por um lado, e a própria direcção da ACT e os responsáveis da Direcção Geral de Emprego e Relações de Trabalho (DGERT), por outro.

Tudo por causa do lay-off simplificado. Como o jornal Público tem feito eco, numerosas empresas em lay-off têm pressionado os seus trabalhadores para fazer férias durante esse período e, nalguns casos mesmo, recebendo apenas 66% do seu vencimento original. Não só essas empresas estão a beneficiar de 84% dos seus encargos salariais pagos pelo Estado, como ainda querem que, passada essa fase, os trabalhadores - a quem foram reduzidos os seus salários em 33% - estejam disponíveis para trabalhar, impondo-lhes um regime ilegal de férias, sem contrapartidas adicionais.

E como lidaram com isso os serviços tutelados pelo Governo?


Face a isso, trabalhadores tentaram obter esclarecimentos junto dos serviços da ACT. E os inspectores do Trabalho informaram-nos que essa tentativa patronal não tinha suporte legal. Em lay-off, os contratos estão suspensos e, como tal, o gozo de férias está suspenso igualmente. Qualquer gozo de férias, implica a retoma dos contratos e esse período de férias tem de ser negociado entre as partes. Afastado completamente ainda qualquer tentativa de redução do período de férias ou do montante do subsídio de férias: o Código do Trabalho é claro quanto a isso (artigo 306º).




Fausto Leite, um conhecido jurista laboral, ouvido pelo Público, foi peremptório:

“Isso é patético. Um trabalhador ou tem o contrato de trabalho suspenso ou tem o contrato de trabalho em vigor e, neste caso, pode ou não estar de férias. Estar em lay-off e em férias em simultâneo é um disparate jurídico, que deve ser denunciado e travado”, comenta o mesmo especialista. “Além do mais, em férias, tem-se direito à totalidade do salário”, acrescenta. “Recorram aos tribunais, se for preciso, para travar isto.”
“O artigo 306.º é claro quando diz que o tempo de redução ou suspensão não afecta o vencimento e a duração do período de férias”. Portanto, não se pode estar de férias com o contrato suspenso, nem quando se tem redução de horário, que é a outra modalidade do layoff. “Não se pode trabalhar de manhã e à tarde estar de férias. É um disparate”, insiste. 
“Quem está em férias, não pode estar em lay-off ao mesmo tempo e, além disso, tem direito a 100% da sua remuneração normal, exceptuando obviamente o subsídio de alimentação, uma vez que se está em férias não vai para o trabalho. O mesmo artigo afirma que a redução ou suspensão não prejudica a marcação e o gozo de férias, nos termos gerais, tendo o trabalhador direito ao pagamento pelo empregador do subsídio de férias devido em condições normais de trabalho. Ora, indo ver o que diz o diploma sobre os termos gerais, nada se encontra que autorize estas empresas a impor períodos de férias a contratos suspensos e muito menos a cortar na remuneração, como se eles estivessem em layoff.”

Mas a DGERT tem outro entendimento. Na sua página de esclarecimento - com perguntas e respostas - reitera categórica - ainda que equivocamente - que o lay-off "não prejudica a marcação e o gozo de férias, nos termos gerais". E como se não bastasse - parecendo querer dar argumentos em tribunal ao entendimento patronal - a direcção da ACT e a DGERT emitiram ainda uma nota conjunta de esclarecimento em que desmentem os inspectores da ACT e autorizam as empresas a marcar as férias dos seus trabalhadores quando quiserem, mesmo durante o regime de lay-off.

Esta nota é equívoca porque refere as diversas disposições do Código do Trabalho, mas mistura as que se referem a contratos suspensos e a contratos não suspensos, nunca esclarecendo como é que um contrato suspenso pode deixar de o estar quanto à marcação de férias. Aliás, os autores da nota - no caso da falta de acordo entre trabalhador e patrão - aplicam ao contrato suspenso as regras de um contrato não suspenso, como se o lay-off  não existisse.

Sobre isto, colocam-se as dúvidas:

1) Politicamente, quais as razões que levam os serviços do Estado a criar uma entorse legal que favorece as entidades patronais?
2) Se a ideia é conceder às empresas melhores condições face à recessão, trata-se então de um quadro excepcional e, como tal terá de ser negociado, prevendo-se melhorias a prazo para os trabalhadores;
3) Ou trata-se apenas de uma cedência sob chantagem patronal - como as repetidas pelo presidente da CIP  (aqui e aqui) e que, agora que se aproxima o fim do lay-off simplificado, já recomeçam as pressões - para que as empresas não criem ainda mais desemprego, já que o regime de lay-off simplificado - pelo qual o ministro Siza Vieira deu a cara - apenas garante o não despedimento até dois meses depois da aplicação da medida? 
4) Que Estado é este que parece estar capturado pelos dirigentes empresariais, estando disposto, não só a manter um edifício legal que provoca desvalorização salarial, como ainda a criar entorses legais, em que apenas os trabalhadores sairão prejudicados, como se fosse a verdadeira variável de ajustamento, carne para canhão?
e finalmente, e do ponto de vista filosófico,
5) O que é o socialismo para os dirigentes do Partido Socialista?


2 comentários:

Anónimo disse...

O PS só é socialista na retórica, tal como o PSD só é social-democrata na retórica.
É altamente provável que lhes aconteça (aliás, já está a acontecer), o que tem acontecido a partidos socialistas e sociais-democratas por essa europa fora: a pasokização.
Aliás, o PSD até já percebeu isso e até já lançou três partidos spin-off, para tentar colher o descontentamento popular: a aliança, o chega e a il (o que parece desesperado, dado o nível anedótico dos 3 partidos).
Mas, o mais impressionante é que o ps e psd desprezam essa possibilidade: preferem dar seguimento à agenda neoliberal, mesmo com o risco de se tornarem no próximo cds.

Armindo Bento disse...

Há uns anos atrás existiu uma instituição, Inspecção geral do trabalho, que foi extinta em 1992
...e que era reconhecida e respeitada, para além de irrepreensível na sua actuação técnica... Nesta situação a resposta correcta é legal seria a seguinte : 1.Nao existe qualquer norma legal que seja impeditiva de um trabalhador em situação de de lay off entre em gozo de férias. 2.Nos termos da lei ao entrar de férias suspense a situação de lay off 3.a remuneração das férias é a legalmente prevista e é irrenunciavel 4.recorda se que o direito a férias é relativo ao trabalho prestado no ano anterior.