quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Os leitores não são idiotas


Desculpem lá, mas se tenho a certeza que Manuel Carvalho não é idiota, então também pergunto: porque é que trata os leitores do jornal que dirige como se o fossem? No editorial de hoje, Manuel Carvalho acaba a apelar aos bancos para que se concentrem “um pouco menos” nos lucros de curto prazo e para que não abusem nas comissões, já que a “soberba da banca dá um brinde aos deputados”.

No entanto, para chegar a uma conclusão vulgar, típica do extremo-centro hoje em dia, é capaz de escrever coisas destas: “Sim, numa economia de mercado aberta, o Governo não se deve meter em questões comezinhas como as taxas dos bancos”. E consegue voltar a repetir numa mesma frase “mercado livre e aberto” e “bancos”.

O “mercado livre” é sempre uma ficção, já que a inevitável questão regulatória numa transacção económica institucionalizada, como é uma de mercado, é sempre a de saber quem é que tem liberdade e quem é que não a tem, quem é que pode ficar vulnerável. Na banca, é uma ficção especialmente monstruosa.

Desculpem lá, mas já toda a gente tem a obrigação de saber, todos os leitores no fundo sabem, muitos mil milhões de euros de recursos públicos depois (19 084 milhões, entre 2008 e 2018 de custo líquido, para ser mais preciso), muitas e variadas operações dos bancos centrais depois, que a banca dita privada é especificamente política do princípio ao fim. A economia é aliás política, porque está sempre saturada de relações de poder.

Repito o que escrevi no Público há uns anos atrás sobre as especificidades da banca e dos seus poderes exorbitantes:

Em primeiro lugar, o poder de criar e de destruir moeda através do crédito, um verdadeiro bem público numa economia monetária de produção orientada para o investimento, mas um bem que pode transformar-se num mal em mãos tão gananciosas quanto pouco escrupulosas.

Em segundo lugar, o poder de lidar com o futuro, ou seja, com a incerteza, concentrando muita da melhor informação disponível sobre a actividade económica geral, cujo andamento passa pelas decisões tomadas nos bancos.

Em terceiro lugar, o poder de não poder verdadeiramente falir, dado o caos que tal gera num sector que lida com a confiança, porque lida com a moeda e com o futuro.

Juntos, estes poderes fazem com que a sacrossanta concorrência de mercado seja na banca uma fonte de falhas ou de ficções constantes.

A concorrência gerada pelas estruturas neoliberais criadas nas últimas três décadas é indissociável do aumento do número e da violência das crises bancárias à escala internacional, cujos custos são e serão sempre socializados, dada a natureza do sector. Esta situação contrasta com o período entre a Segunda Guerra Mundial e os anos oitenta, quando as crises bancárias eram bem menos frequentes, devido à chamada repressão financeira: banca pública com lógica pública, controlos de capitais e regulamentação precisamente desconfiada da concorrência.

A concorrência é uma fonte de ficções, porque as crises evidenciam as especificidades deste sector, mostrando que é em última instância o poder público, e não os mercados, que tem de o gerir, a começar pelo banco dos bancos, ou seja, pelo banco central, que lhes cede a liquidez de que depende a sua sobrevivência. A questão é então se o poder público gere o sector para beneficio público ou de privados.

Sublinho agora: o mercado dito livre é mesmo uma ficção. Quando os bancos têm mais liberdade, por decisão política, nós ficamos mais vulneráveis. E vice-versa. As comissões são só a ponta do iceberg.

Dizem nos editoriais do Público que gostam de factos…

4 comentários:

Geringonço disse...

Manuel Carvalho não é idiota? Tem a certeza?
É que o tipo usa expressões como "bancarrota" e "mercado livre" em 2020! 2020!!!

Se Manuel Carvalho não é idiota é pago para o ser, pago para desinformar a população, e isto é muito grave!

Jose disse...

«a banca dita privada é especificamente política do princípio ao fim«
Só que em vez d’ A Banca temos ‘os bancos’ e a alternativa seria O Estado= O Monstro.

Geringonço disse...

O meu primeiro comentário não foi suficientemente claro.

Claro, expressões como "bancarrota" e "mercado livre" podem ser usadas, o que é estúpido é usar de forma leviana a expressão "bancarrota", e é isto que Manuel Carvalho ainda hoje faz!

Já acreditar no fantasioso "mercado livre" é no mínimo embaraçoso...

Anónimo disse...

"... o Governo não se deve meter em questões comezinhas como as taxas dos bancos..." a não ser quando se constata e prova a existência de cartel, como já conteceu. Com multas da Autoridade da Concorrência.
Que já aconteceu, sim. Resta saber qual o grau de constatação e da prova obtida.