terça-feira, 12 de abril de 2011

Economia hidráulica (para economistas amnésicos e outros interessados...)



Este artigo do The Guardian, que agradará especialmente aos que se interessam pela história do pensamento económico (característica rara entre os economistas da corrente dominante), conta a história do MONIAC (“Monetary National Income Analogue Computer”), um computador hidráulico concebido e construído em 1949 por William Philips para modelizar as relações fundamentais da economia britânica.

Phillips era um personagem fascinante. Neozelandês, engenheiro de formação, foi prisioneiro de guerra do exército japonês durante três anos da 2ª Guerra Mundial, tendo aproveitado o tempo de detenção para, entre outras coisas, construir secretamente uma chaleira e um aparelho de rádio. Depois da guerra, dedicou-se ao estudo da sociologia na London School of Economics, altura em que teve pela primeira vez contacto com as ideias de Keynes. Foi ainda enquanto estudante, nessa altura já no departamento de economia, que Phillips conjugou os seus conhecimentos de hidráulica e de economia keynesiana para construir o MONIAC, que viria a ser utilizado tanto enquanto auxiliar pedagógico como para realização de simulações e previsões.

O MONIAC era um produto do seu tempo, reflectindo um entendimento particular (literalmente hidráulico) da economia e do keynesianismo, caracterizado pela assunção de relações estáveis entre agregados macroeconómicos susceptíveis de controle cibernético. Trata-se da chamada síntese neoclássica, mais conhecida na versão do (igualmente hidráulico) modelo IS/LM de J. Hicks, cuja popularidade viria a decair na sequência da estagflação da década de 1970 (a qual veio pôr em causa a existência de uma relação estável entre inflação e desemprego, representada por uma curva que receberia, também ela, o nome de W. Phillips).

Desgraçadamente, as teorias dominantes subsequentes viriam a mostrar-se, de uma forma geral, muito mais fracas e desligadas da realidade – do monetarismo à teoria dos ciclos económicos reais, passando pelos novos clássicos. Teorias que, todas elas, de uma forma ou de outra, negam o papel da procura agregada na determinação dos níveis de actividade económica e de (des)emprego e/ou negam a possibilidade de implementação de políticas públicas de estabilização. Não é coincidência que coincidam temporalmente e suportem intelectualmente o neoliberalismo, pois este programa de concentração da riqueza nas mãos das classes dominantes é facilitado e favorecido pela existência de níveis elevados de desemprego. De uma forma geral, as crises são do interesse das elites.

O keynesianismo hidráulico padecia de excesso de húbris face à possibilidade de controle cibernético da economia, não dava o devido valor à incerteza (como viriam a salientar a corrente pós-keynesiana, herdeira marginalizada do pensamento de Keynes) e, mais importante do que isso, não entendia que o sistema que estudava era um produto particular de relações entre classes. Mas compreendia que a estabilização macroeconómica e o combate ao desemprego se fazem principalmente através do estímulo da procura agregada e não com fantasias regressivas sobre a “flexibilização” do mercado de trabalho. Se o MONIAC parecer arcaico aos olhos dos estudantes de economia contemporâneos, será bom que tenham consciência que era, ainda assim, mais avançado (científica e politicamente) do que os modelos dinâmicos de equilíbrio geral que se estuda hoje em dia nos programas de doutoramento da maior parte das faculdades de economia.

3 comentários:

João Carlos Graça disse...

Caro Alexandre
Para uma abordagem meio "institucionalista" dos raciocínios keynesianos à la Phillips, experimente dar uma olhadela neste artigo do Pollin. Já tem mais duma década, é verdade, mas continua inspirador e sugestivo. Interessante, sem dúvida, a forma como o conceito de NAIRU é tratado: http://www.newleftreview.org/?page=article&view=2243
Se já conhecer, por favor faça de conta que eu não disse nada...

Anónimo disse...

A acumulação de capital é a doutrina seja feita de uma forma mais ou menos selvagem é isto que está em causa. Há uma subversão completa das coisas mesmo quando se pensa nas pessoas como "procura agregada". Se algum dia se provar que a procura agregada nada tem a ver com a acumulação de capital seguramente vamos ouvir os académicos a dizer que é necessário termos vitimas para que outros estejam protegidos. Onde ficam as pessoas nisto tudo?????

Alexandre Abreu disse...

Caro João,
Obrigado pelos comentários sempre pertinentes e pela sugestão de leitura. Não conhecia e, efectivamente, é muito interessante. Penso também que a discussão em torno da NAIRU ilustra bem aquilo que referi apenas de passagem no post - a falta de 'incrustação'(por menos que eu goste desta expressão, aliás tal como de 'path-dependency', mas isso são outras conversas a que talvez possamos regressar um dia destes...) político-económica da análise keynesiana, particularmente na versão da síntese neoclássica (que não na versão pós-keynesiana, nomeadamente no caso de Kalecki). Em dois ou três parágrafos, o Pollin mostra bem que o que na verdade está por detrás das equações de comportamento dos modelos keynesianos são relações sociais de produção - e revela bem o quão 'fetichista' é limitar a análise às relações aparentes entre agregados macroeconómicos.

Caro anónimo a quem agradeço e dou as boas-vindas ainda que fosse mais simpático ter assinado,
Sem sobranceria da minha parte, penso detectar alguma confusão nas suas palavras. "Procura agregada" é apenas uma forma de designar a soma do consumo privado, investimento, consumo público e exportações. Obviamente, é um conceito distinto do de acumulação de capital, embora possamos relacioná-lo facilmente com este último: em termos de "marxismo elementar", digamos assim, é necessário um determinado nível de procura para assegurar a realização de mais-valia que permite a acumulação de capital(e por aí fora).
Agora, certamente não é por se utilizar um conceito como 'procura agregada' na análise que se está a apoiar ou legitimar o capitalismo como sistema, ou a reificar as pessoas. Aliás, tal como a meu ver é perfeitaente possível conciliar uma posição política anti-capitalista com a defesa de "reformas" (digamos assim, para simplificar) que, mesmo num quadro capitalista, alterem o equilíbrio de forças em benefício dos trabalhadores e das classes populares - de uma forma geral, é o que procuramos fazer neste blogue...
Cumprimentos.