segunda-feira, 31 de março de 2008

Aprender com a Alemanha

Já por várias vezes mencionámos a progressão eleitoral do Partido da Esquerda (Die Linke) na Alemanha. Em tempos politicamente sombrios, esta aliança entre a esquerda social-democrata e os comunistas renovados é a mais interessante novidade política na Europa nos últimos anos. Agora o SPD, que tinha sempre recusado quaisquer alianças com esta formação política na parte ocidental da Alemanha (o grosso da dissidência social-democrata liderada por Oskar Lafontaine provém daqui), aceitou uma coligação de governo em Hesse (via esquerda republicana). A Alemanha aponta o caminho: alterar a correlação de forças à esquerda para construir uma alternativa de poder. Gradualmente e sem dramas.

sábado, 29 de março de 2008

A crise do neoliberalismo ou a hora das reformas estruturais

Os custos da crise devem recair sobre os grupos que beneficiaram das actuais regras. Para isso acontecer precisamos de uma vaga de reformas estruturais. Medidas de emergência para fazer face à crise abrem uma janela de oportunidade para criar o ambiente político e intelectual que pode gerar essa vaga. Como sublinhou Karl Polanyi em A Grande Transformação - um livro publicado em 1944 e que é hoje considerado um clássico da economia política crítica - as grandes rupturas são muitas vezes o resultado de um esforço, mais ou menos espontâneo, traduzido em medidas de política pública, para proteger a sociedade da devastação socioeconómica e moral do capitalismo sem freios. Na sua célebre formulação: «o laissez-faire é planeado, o planeamento não». O resto pode ser lido aqui.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Socialismo

Gosto desta formulação de Vincenç Navarro: «O socialismo não é uma etapa final, mas sim um processo que se constrói e destrói quotidianamente no desenvolvimento das políticas públicas». Vale a pena ler este seu artigo, em castelhano, sobre os princípios que devem orientar políticas públicas que se querem ancoradas à esquerda.

quinta-feira, 27 de março de 2008

O IVA e as eleições

A propósito da descida de um ponto percentual do IVA para 20%, ouviram-se as seguintes reacções:

Paulo Portas: "é um pequeno passo" [na política fiscal]

Cavaco: "obviamente não vou comentar"

Menezes: "sem impacto na economia"

Sócrates: "veremos para o ano" [sobre nova descida para 19% em 2009]

Juntando estas declarações como se peças de puzzle se tratassem, dá vontade de dizer que esta descida de imposto, "sem impacto na economia", "é um pequeno passo" para que o PS consiga a tão desejada maioria absoluta nas legislativas de 2009. Cavaco "obviamente" não comenta e José Sócrates fica à espera das sondagens para ver se precisa de baixar ainda mais o imposto "para o ano".

Símbolos contra a estagnação

O chamado «saneamento das contas públicas», ou seja, a obtenção de um défice orçamental abaixo do limiar arbitrário dos 3%, foi sobretudo conseguido graças à subida acentuada de um imposto regressivo (IVA). A equidade fiscal e o crescimento económico pagaram um preço elevado. Finalmente, o governo dá sinais de estar simbolicamente preocupado com estas duas dimensões essenciais da política económica. Saudemos pois esta nova orientação e esperemos que seja o início de medidas mais robustas de estimulo que tornem o governo parte da solução para os nossos problemas económicos. Como sempre, a conjuntura parece apontar para a necessidade de uma política económica contra-cíclica. Neste contexto, o IVA deve ser mesmo o único imposto a reduzir. Para evitar pressões desnecessárias dos verdadeiros grupos de interesse, o governo deveria comprometer-se com esta orientação. E já agora dar sinais na área do investimento público.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Crise e ideias

Estamos mesmo na época da revisão das crenças nas virtudes do mercado sem fim. Em Portugal, os sinais ainda são fracos. Na blogoesfera, onde domina uma versão totalmente blindada do neoliberalismo, ainda menos. No entanto, basta ler a imprensa liberal que está atenta à evolução do capitalismo realmente existente, sobretudo na sua variante anglo-saxónica, para nos apercebermos dos efeitos que a crise está a ter nas ideias económicas dominantes. E estas, por sua vez, têm sempre consequências para a orientação das políticas públicas. Esta semana, a The Economist aponta o caminho ao reconhecer, de forma mais ou menos explicita, o fracasso dos mercados financeiros liberalizados e a correspondente necessidade de aumentar o «controlo para reduzir as hipóteses de novos apoios públicos» às aventuras dos agentes financeiros. Ontem, Wolfgang Münchau do Financial Times, um dos mais acérrimos defensores da tese da decadência económica da Europa minada pelo «intervencionismo», afirmava que o velho continente estaria, em geral, menos exposto à crise porque o seu modelo de capitalismo dependeria menos da especulação financeira. Finalmente, Martin Wolf, também do Financial Times, declara que atingimos um ponto de viragem: «lembrem-se de sexta-feira, 14 de Março de 2008: foi o dia em que o sonho do capitalismo assente no mercado livre global morreu (. . .) a desregulamentação atingiu os seus limites». É preciso fazer tudo para que esta profecia se concretize.

terça-feira, 25 de março de 2008

Repressão ou redistribuição?


Segundo o DN, Portugal tem um polícia para cada 227 habitantes. A média europeia é de um para 350. O governo, num contexto de suposta contenção orçamental, prepara-se para formar mais dois mil polícias. Prioridades repressivas sem qualquer justificação. É sempre assim em sociedades demasiado desiguais. O Estado Penal atrofia o Estado Social.

Defender o SNS pela via fiscal

Já vai sendo tempo de se acabar com a promoção política do sector privado de saúde. Para além de limitar as parcerias público-privadas, o governo deveria também eliminar todos os benefícios e deduções fiscais para as despesas privadas com serviços de saúde. Nada justifica a existência de incentivos à «fuga» do SNS por parte das chamadas classes médias. Assim se criaria pressão política adicional para a melhoria da qualidade dos serviços públicos e até para a sua expansão. Neste contexto, Milton Friedman tinha razão, para variar, quando defendia que «os programas para pobres são pobres programas». De facto, um serviço público tendencialmente universal é um sistema politicamente protegido.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Plano inclinado travado?

Neste blogue defendemos a tese de que a entrada dos grupos económicos privados na gestão de hospitais públicos constitui um dos principais mecanismos de destruição a prazo do SNS (por exemplo, I, II, III). Não só não existe evidência de ganhos de eficiência com a gestão privada, como se multiplicam os custos com o desenho de complexos contratos e com a sua monitorização. Isto para não falar dos riscos de captura política e do crescente musculo político dos grandes grupos económicos rentistas. De facto, custa muito dinheiro garantir que a busca incessante de lucros não coloca em risco a saúde pública. Ontem, Sócrates veio finalmente reconhecer este facto: «Há uma grande dificuldade em fazer os contratos, o Estado gasta uma fortuna para vigiar o seu cumprimento e nunca foi possível eliminar a controvérsia. Por isso, é melhor o SNS ter gestão pública» (DN). Sensata posição, mas todo o cuidado é pouco nesta área. Afinal de contas, os maus contratos já anunciados ficam de pé. De qualquer forma, o reconhecimento do erro intelectual (à luz da defesa do SNS) e a sua correcção parcial são um bom ponto de partida. Agora podemos falar de reformas que não ponham em causa os princípios do Estado Social.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Alavancagem e crise

Como podem os diferentes agentes financeiros estar a perder tanto dinheiro nesta crise se as quedas dos preços dos activos financeiros são aparentemente pouco significativas? O segredo está no recurso ao crédito, um mecanismo conhecido como alavancagem. Simplificando, se eu tiver 10 euros e pedir 990 emprestados para investir num determinado produto financeiro, a variação de 1% do preço deste irá representar uma valorização de 100% do meu capital. Contudo, basta uma desvalorização de 1% do activo detido para que eu perca todo o meu capital. O crédito «alavanca» as minhas perdas e ganhos. Mas o problema não acaba aqui. A partir de uma determinada desvalorização do activo, anteriormente acordada com o banco que me emprestou o capital, eu posso ser forçado a vender tudo, uma operação conhecida como «margin call». O banco recuperará o seu capital, mas eu sofrerei pesadas perdas.

Recolocar a democracia no centro da agenda política


De acordo com um estudo recentemente publicado pelo think-tank britânico Demos, Portugal é um dos países menos democráticos da Europa (dos países incluídos no estudo só a Bulgária, a Roménia, a Polónia e a Lituânia ficam atrás). Segundo a publicação, os países mais democráticos encontram-se na Escandinávia e no Benelux (curiosamente, países onde os partidos social-democratas continuam a não ter vergonha de falar em socialismo).

O estudo mostra que maiores graus de democraticidade estão tipicamente associados a países mais igualitários, mais tolerantes e onde os índices de confiança e felicidade são mais elevados. A democraticidade tende também a aumentar com o nível de PIB per capita e com o Índice de Desenvolvimento Humano, mas só até certo ponto (a partir do qual não há uma relação clara entre democraticidade e riqueza/desenvolvimento).

O «Índice de Democracia Quotidiana» baseia-se na análise do grau de democraticidade em 6 domínios (cada um deles avaliado com base em vários indicadores): democracia formal; activismo e participação cívica; aspirações e deliberação; democracia na família; democracia no local de trabalho; e democracia nos serviços públicos (e.g., educação, saúde). Portugal só não surge nos últimos lugares na avaliação do primeiro domínio (democracia formal). Lição a retirar: muito do trabalho que começou há 34 anos ainda está por fazer.

A hora das reformas estruturais

Quem quiser compreender a economia política da financeirização do capitalismo só tem que ler o editorial do Financial Times de ontem. Alguns excertos: «os bancos centrais podem prevenir tudo isto se estiverem dispostos a pagar o preço transferindo alguns dos activos problemáticos para as contas públicas [já o estão a fazer] (. . .) Os bancos centrais e os governos têm de estar à frente dos acontecimentos, enfrentando os problemas antes destes começarem, incutindo confiança aos mercados (. . .) A doença não é fatal, mas o tratamento tem que ser agressivo». É sempre assim. Pior: tem que ser sempre assim. A crise revela o lado negro dos mercados: pânico, descoordenação, incerteza radical. A inteligência colectiva que existe nas estruturas públicas mostra agora toda a sua utilidade. Enquanto muitas das práticas financeiras, nutridas por mais de duas décadas de desregulamentação, não forem eliminadas, os poderes públicos serão chamados a resolver os desmandos em larga escala da finança. Não podem deixar de «intervir» porque os circuitos de crédito são um dos centros nevrálgicos de qualquer economia. O seu desmoronamento tem custos demasiado elevados. Para todos nós. Há algumas coisas a reter: (1) nenhuma economia funciona sem um Estado robusto; (2) não há nada de inevitável na actual configuração dos mercados financeiros; (3) o mesmo Estado que é agora chamado, pelos que dizem gostar dele «mínimo», a intervir por todo o lado, terá a prazo que impor os custos da crise sobre os grupos sociais que beneficiaram das actuais regras. Haja força política porque as boas razões são evidentes. Precisamos mesmo de uma vaga de reformas estruturais. Esta expressão tem apenas que readquirir as conotações de outras épocas. Quando foi sinónimo de superação de muitos dos arranjos institucionais herdados do capitalismo liberal através de nacionalizações, taxação sobre as operações da finança especulativa, regras muito mais apertadas para a actividade bancária, controlo de capitais, separação entre as várias actividades da finança, etc. Isto deu origem, nos países centrais, a algumas décadas de «prosperidade partilhada» com estabilidade financeira.

A crise de uma fé

«Moral da história: apesar da brilhante análise [de Greenspan], continuamos sem resposta para o problema e a viver autênticos pesadelos, como o da quase falência do Bear Stearns (. . .) É essa falta de resposta que pode pôr em causa a liberdade económica conquistada nas últimas décadas. Preocupante». Camilo Lourenço do Jornal de Negócios. Um jornalista sempre muito dado a entusiasmos mercantis. É muito bom sinal que tenha pesadelos e que não tenha respostas. A sua fé nos mercados sem fim está a ser testada. Dura prova. Não há saídas. A crise é de mercado e os bodes expiatórios habituais (regulação excessiva, políticas governamentais) não resistem a um escrutínio mínimo. Agora só falta cortar o elo entre o elástico conceito de liberdade económica e as políticas de expansão dos mercados. Hoje é claro que a liberdade económica de uma minoria se fez e faz à custa da vulnerabilidade económica da maioria.

terça-feira, 18 de março de 2008

A recessão está aí

Com os noticiários a abrirem com peças sobre os mercados bolsistas, as graves consequências da crise na economia real norte-americana têm passado despercebidas. Nos EUA, 63 000 postos de trabalho desapareceram, em termos líquidos, no mês de Fevereiro e os anteriores números de Janeiro foram revistos em baixa. Foram 22 000 os postos de trabalho perdidos, em vez dos 17 000 inicialmente anunciados. Estes números são acompanhados por uma queda do comércio grossista e por um mercado imobiliário ainda em ajustamento. A questão já não é se vamos ter uma recessão, mas sim qual a sua gravidade e implicações para o resto do mundo.

Bearish

Na passada semana a Standard and Poor’s publicou um relatório onde proclamava que «o sector financeiro global parece já ter anunciado a maioria das amortizações». No entanto, o final de semana ficou marcado por mais um episódio desta interminável crise: o colapso do banco de investimento Bear and Stearns. A Reserva Federal foi obrigada a intervir, mediando e injectando liquidez na compra deste pelo seu rival, JPMorgan, por pouco mais de um quinto do valor da sede da Bear and Sterns. Entretanto, o Fed não ficou por aqui e, numa acção inédita, decidiu descer as taxas de juro num Domingo. Abaixo fica um vídeo, roubado ao bitoque, ilustrativo do pânico nos mercados causado pela crise da Bear and Stearns.....em Agosto!

Os espíritos animais de João César das Neves

Os neoliberais andam completamente desorientados: «Olhando a actual derrocada, que começou com o subprime hipotecário americano, ficamos espantados como pessoas inteligentes, informadas, especialistas, caem em erros tão infantis e evidentes. A única explicação é a que o mesmo Keynes deu noutra passagem, quando falou dos animal spirits que se apoderam dos investidores em momentos de euforia» João César das Neves (JCN) em artigo no DN.

Notar que JCN tem de recorrer a Keynes para «explicar» a actual crise financeira. Lá se vai a sua querida economia ortodoxa povoada de agentes omniscientes e de mercados sem falhas relevantes. O que JCN não refere é que Keynes defendia, e bem, que a instabilidade financeira é um atributo necessário de mercados financeiros desenhados de acordo com as prescrições liberais. Estes gerariam incentivos e padrões de interacção concorrenciais que levariam «pessoas inteligentes e informadas» a cair «em erros infantis e evidentes». Com consequências desastrosas para toda a economia. Por isso, Keynes propunha a reforma profunda dos mercados financeiros e a diminuição da sua importância económica, política e social. Taxas e aumento do controlo político. É claro que basta recordar as recentes posições entusiastas de JCN a favor do incremento do papel dos mercados financeiros liberalizados (por exemplo, na área da Segurança Social) para concluirmos que não são só os seus operadores que cometem «erros infantis e evidentes».

segunda-feira, 17 de março de 2008

Superar escolhas trágicas

Para não variar, a Reserva Federal norte-americana veio em auxílio de mais uma instituição financeira (Bear Sterns) à beira do colapso. Isto facilitou a sua aquisição a preço de saldo pela JPMorgan. Perante isto, Helena Garrido conclui: «Vai ser preciso reflectir sobre o que é afinal o mercado. . . mais para uns que para outros». Vai ser mesmo preciso reflectir sobre o que é o mercado, sobre as regras que o estruturam, sobre o grau de liberdade dos seus vários agentes e sobretudo sobre as suas fronteiras e a sua extensão. Só assim é possível superar as escolhas trágicas que o neoliberalismo criou: socialização dos prejuízos ou uma crise financeira de dimensões ainda maiores. Sobre isto vale a pena ler Dean Baker (as virtudes das nacionalizações em época de crise) e A. Cabral (a recessão como o custo do programa de salvação financeira).

União Europeia e regressão social

«Os sistemas fiscais da União Europeia estão aparentemente a tornar-se menos progressivos; as taxas que incidem sobre os rendimentos mais elevados e os cortes nos impostos sobre as empresas vão na mesma direcção já que as grandes empresas são sobretudo detidas por indivíduos com rendimentos elevados». Esta é a honesta conclusão de um estudo da Comissão Europeia sobre tendências fiscais na Europa. Como já aqui várias vezes afirmámos (I, II, III, IV ou V), a liberdade de circulação de capitais criada pela integração europeia, num contexto em que se optou por bloquear a necessária harmonização fiscal e manter a total fragmentação nacional dos sistemas fiscais, cria pressões cada vez maiores para a diminuição das taxas que incidem sobre os rendimentos mais elevados, sobre as empresas e para um aumento do peso dos impostos sobre o consumo. Um projecto com uma natureza regressiva evidente. A social-democracia que é parcialmente responsável por esta arquitectura da UE têm mesmo muito que explicar e mudar.

domingo, 16 de março de 2008

Como desacreditar um protesto

A Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública deu ao país uma lição de como não conduzir uma luta. Convocou uma greve para uma 6ª feira, dando a entender que os funcionários em protesto necessitam do rebuçado do fim-de-semana prolongado para aderir à greve. Nas entrevistas que deu nesse dia, Ana Avoila (a coordenadora da FNSFP) não conseguiu explicar por que é que avançava para a greve sem o envolvimento de outros sindicatos, favorecendo a interpretação de que esta acção teve mais a ver com a necessidade de marcar o ritmo numa agenda de protesto geral do que com os motivos de insafisfação dos funcionários públicos. Num habitual sinal de inabilidade política, abdicou de mobilizar a opinião pública, insistindo tanto ou mais em questões salariais e de carreira dos funcionários públicos (temas em relação aos quais a predisposição para a indignação geral é baixa) do que no modo algo irracional, injusto e desumano como está a ser conduzido o processo dos chamados 'disponíveis' (que constitui uma mancha para um governo que se afirma socialista). Perante os dados óbvios do limitado sucesso da acção de protesto, avançou com números de adesão à greve só credíveis para quem não esteve em Portugal no dia 14.

Razões de queixa não faltam aos 700 mil funcionários públicos nos últimos anos. E no entanto menos de 1% destes participaram na manifestação de 6ª feira - isto uma semana depois de mais de 2/3 dos professores deste país terem vindo até Lisboa para gritar o seu descontentamento. Haverá muitas razões por detrás desta disparidade na mobilização para o protesto. Suspeito que Ana Avoila, a FNSFP e a sua estratégia façam parte do rol.

Desigualdade: um bloqueio ao desenvolvimento

Uma das ideias recorrentes do discurso económico mais ortodoxo é a da naturalização das desigualdades de rendimento. Estas seriam o resultado natural da diferença entre aqueles que mais e melhor trabalham e das apostas ganhas por aqueles que mais arriscam. A desigualdade seria mesmo desejável. Uma desigualdade inicial superior na repartição de rendimento permitiria que os mais ricos investissem na economia, dai resultando, num futuro mais ou menos longínquo, um maior crescimento económico que, por sua vez, tenderia a beneficiar todos. Um efeito conhecido como "trickle-down". No entanto, como assinalava recentemente o economista Robert Frank em artigo no New York Times, a realidade do pós-segunda guerra mundial mostra que o período entre 45-73, marcado pela redução das desigualdades, foi aquele durante o qual o crescimento económico foi maior, enquanto o aumento das desigualdades nas últimas décadas foi acompanhado por taxas de crescimento medíocres. Um padrão confirmado pela comparação entre diferentes países. São os países mais desiguais os que menos crescem.
(O resto está aqui.)

sexta-feira, 14 de março de 2008

O mito do mercado livre

Vale a pena ler o artigo de Tiago Mendes sobre o salário mínimo (via Destreza das Dúvidas). Talvez ajude a perceber algumas das causas profundas da purga na Atlântico. O seu liberalismo, económico e social, sempre foi demasiado impuro. No entanto, esta sua formulação parece-me infeliz e reveladora: «A liberdade económica de quem emprega é essencial, mas nem sempre um dado entre nós. Ainda abundam, entre alguma esquerda, os discursos exclusivamente ‘éticos’, reveladores de um total desconhecimento sobre como funciona um mercado livre e que proporcionam efeitos contrários aos desejados. Legislar nem sempre é a melhor solução».

Alguns notas: (1) «a liberdade económica de quem emprega» tem como contrapartida necessária a vulnerabilidade de quem é empregue; (2) a economia, como sublinham os economistas institucionalistas, em especial Warren Samuels, é sempre estruturada por um sistema de regras que gere as interdependências da vida económica, ou seja, um sistema de regras que define quem é que pode impor custos sobre quem, quem é que pode coagir quem, como é que a «liberdade» é repartida e quem é que a ela está exposto; (3) o mercado, qualquer mercado, é sempre uma construção política mediada por valores, ou seja, é o governo que tem de definir a estrutura que atribui direitos e as correlativas obrigações (John Commons): «legislar» não é uma opção; (4) assim, falar de «mercado livre» para caracterizar uma dada estrutura é deixar que a ideologia e os valores «contaminem» a análise; (5) isto é o resultado de uma insuficiente reflexão nas ortodoxias económicas (e em algumas heterodoxias) sobre a relação necessária da economia com a ética e com a ideologia e sobre a natureza plástica das instituições que definem o perfil de um dado sistema económico capitalista - direitos de propriedade, contratos, mercados; (6) quando se pretende fazer apenas «economia positiva», fechando a porta às impurezas, estas entram sempre pela janela sob a forma de pressupostos não escrutinados; (7) só a partir daqui é que a «análise positiva» sobre os padrões que podem ser gerados por diferentes regras pode prosseguir de forma satisfatória; (8) Este livro recente discute com grande clareza e rigor analítico estas importantes questões. Hei-de voltar a ele.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Dilemas da economia portuguesa - o contributo de José Reis

O artigo de José Reis no Mdiplo - «O tempo dos regressos ao futuro: por um desenvolvimento inclusivo» - mostra bem as virtudes de se conceber a economia como uma ciência social histórica e institucional. José Reis inicia a sua análise pelo lastro e bloqueamentos deixados pelo arranque nos anos sessenta do chamado moderno crescimento económico português: «um crescimento que desconsiderava o trabalho, o ‘desutilizava’ e, portanto, o rejeitava, enviando massivamente mão-de-obra para as economias em que crescimento, industrialização e expansão do mercado de trabalho iam a par». Isto permite-lhe destacar três variáveis que desde aí não têm sido bem articuladas: «capacidade produtiva, trabalho e valor internacional». A análise das semelhanças dos três ciclos económicos do regime democrático (1976-1984, 1985-1993 e 1994-2003) revela a prevalência de um «modelo extensivo» que não promoveu a qualificação da força de trabalho. Segundo José Reis, isto explica parte do seu esgotamento na fase actual em que o fraquíssimo crescimento económico se conjuga com uma política económica que parece incapaz de construir um modelo de desenvolvimento socioeconómico inclusivo.

José Reis termina com a definição de três pilares que devem suportar uma política económica de esquerda: (1) qualificação e valorização do trabalho, no quadro de uma redefinição das regras que combata «relações de poder assimétricas» e que reconheça a «relação salarial como relação organizacional e não apenas como relação mercantil simples»; (2) melhor articulação entre os princípios da concorrência mercantil e as «lógicas de organização da economia para lá dos mercados», superando os simplistas dilemas liberais; (3) «falar sem inibições de boa despesa pública, do necessário papel do Estado perante a ‘sociedade privada’, bem mais ineficiente e tacanha que o próprio Estado nas suas piores facetas». A luta por um modelo de desenvolvimento inclusivo começa sempre pela luta das ideias.

Dilemas da economia portuguesa - o contributo de Francisco Louçã

O artigo de Francisco Louçã no Midplo - «Ibéria de costas voltadas - os modelos de desenvolvimento de Portugal e Espanha» - ilustra bem as virtudes dos exercícios de economia política comparada. De facto, as comparações, pelas diferenças e semelhanças que revelam, podem iluminar aspectos importantes da realidade socioeconómica. Principais diferenças destacadas e exploradas no artigo: (1) Portugal é mais pobre; (2) os nossos níveis de produtividade na indústria transformadora explicam parte dessa diferença e apontam para uma estrutura empresarial muito mais frágil e dependente: «enquanto que a Espanha criou fontes de acumulação assentes em empresas fortes, com uma intensa acumulação de capital e suficientemente competitivas para ganharem partes de mercado internacional, em Portugal a história é a contrária». (3) «o atraso português determina maiores assimetrias»; (4) a economia portuguesa parece não ter sabido tirar proveito das vantagens da imigração.

As semelhanças também são sublinhadas. Recorrendo à evidência disponível em matéria de políticas socioeconómicas, Francisco Louçã contraria «a boa fama que Zapatero tem em Portugal»: «Neste contexto, os governos - fosse aqueles que dispunham de superavite orçamental fosse os que estavam subordinados a um défice - mantiveram um nível de protecção social extraordinariamente baixo para o padrão europeu. Este é talvez a melhor demonstração da vacuidade da disciplina orçamental: com dinheiro ou sem ele, os dois governos fizeram o mesmo». Assim, para Francisco Louçã o défice social define um modelo de desenvolvimento com traços comuns: «um reajustamento das normas sociais de rentabilidade e de acumulação por via do desemprego e sobretudo da precarização, pressionando os salários, ao mesmo tempo que a readaptação tecnológica se vai fazendo». E conclui: «A ibéria aprendeu pouco com as suas virtudes e muito com os seus defeitos».

Dilemas da economia portuguesa - o contributo de Carlos Carvalhas

O artigo de Carlos Carvalhas no Mdiplo - «perspectivas para a economia portuguesa» - começa por chamar a atenção para as consequências perversas de uma política económica que fez do défice orçamental o seu objectivo último e que aceitou com passividade a divergência em relação à UE: «se o objectivo central fosse o crescimento económico, o objectivo do défice, também a ter em conta, deveria ser encarado a mais longo prazo e de forma menos rígida». Segundo Carlos Carvalhas, com o euro aprofundou-se e, paradoxalmente, tornou-se menos visível, aquele que é um dos nossos problemas centrais: o endividamento externo, fruto do atrofiamento do sector dos bens transaccionáveis para exportação (o euro forte também não ajuda nada). Isto é a expressão última de uma inserção internacional mal planeada e crescentemente dependente. O endividamento externo maciço resulta na perda do «controlo [nacional] de alavancas fundamentais da nossa economia». Vender activos é o que parece restar a quem não produz o suficiente. Aqui chocamos com um dos traços mais preocupantes da nossa economia: a «financeirização» e a natureza rentista dos grandes grupos económicos, reforçados por um processo de privatizações cada vez mais irresponsável (os bens transaccionáveis não são o seu forte. . .). Lucros fantásticos que contrastam com um tecido de PMEs muito desprotegido e em grandes dificuldades.

Que fazer? Para Carlos Carvalhas há duas linhas essenciais: (1) aumentar o investimento público, no quadro de uma estratégia de apoio ao sector de bens transaccionáveis, de qualificação da força de trabalho e de combate à especulação financeira, aliada a uma valorização do trabalho, única forma de colocar o «país a caminhar nas duas pernas, exportações e mercado interno»; (2) reconhecer que as tendências de polarização, resultado do alcance das forças de mercado na zona euro, só podem ser travadas por uma política europeia que aumente substancialmente «o papel redistributivo do orçamento comunitário». Isto é crucial para uma economia periférica com importantes défices socioeconómicos.

Dilemas da economia portuguesa

A decepcionante evolução recente da economia portuguesa sinaliza o esgotamento de um ciclo de mais de duas décadas de liberalização económica. Para a direita intransigente este fracasso apenas indica que ainda não se «liberalizou» o suficiente. É sempre assim. Enquanto existirem regras que vão gerindo as inevitáveis interdependências da vida económica, os seus argumentos continuarão a parasitar as estruturas públicas que asseguram a reprodução, necessariamente imperfeita e impura, do seus utópicos modelos de manual. Quem quiser análises sérias e que rompem com os lugares-comuns da generalidade dos fazedores de opinião nesta área poderá ler o Le Monde Diplomatique - Edição portuguesa deste mês. Três artigos de três economistas de esquerda - Carlos Carvalhas, Francisco Louçã e José Reis. Tentarei apresentar aqui o que me parece mais importante em cada um deles.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Desigualdades e crise II

«Decididamente os pobres não sabem estar à altura da criatividade dos ricos. É agora que a finança, que apenas gosta da liquidez dos fluxos, redescobre a inércia dos stocks: todas as pessoas que tratou como se fossem carne para o canhão hipotecário não são agora mais do que coisas embaraçosas (. . .) Todas as negações do mundo não conseguem impedir que a crise apareça como aquilo que é: uma experiência em grande escala que demonstra a malvadez intrínseca dos mercados, e dos seus operadores, quando não estão submetidos a qualquer controlo». Frédéric Lordon (FL), em artigo no Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa deste mês.

Os dois artigos que FL escreveu para o Mdiplo constituem, na minha opinião, o melhor que já se escreveu sobre este processo, as suas raízes e as suas implicações. Podem ler o primeiro em versão integral aqui. E um excerto do segundo aqui.

Desigualdades e crise

Este revelador gráfico foi retirado do «consider the evidence», um excelente blogue norte-americano, especializado na análise das desigualdades. Ilustra bem os padrões que são inevitavelmente gerados por mais de duas décadas de domínio das ideologias do mercado sem fim. O enorme aumento das desigualdades de rendimentos, fruto de alterações institucionais que enfraqueceram a generalidade dos trabalhadores assalariados e que reforçaram a finança e os seus agentes dopados com perversos incentivos pecuniários, revela hoje todas as suas consequências socioeconómicas. Quem quiser perceber a actual crise financeira terá que começar por aqui. Pelo sobre-endividamento das famílias mais pobres como resultado do duplo processo de estagnação salarial, num sistema que necessita de fontes permanentes de procura, e de concorrência desenfreada envolvendo entidades financeiras cada vez mais «criativas». Entretanto a crise continua a alastrar sem que ninguém saiba ainda a verdadeira dimensão do «problema». Aqui chegados, os liberais sofisticados só têm uma solução: «devemos rezar para que a Reserva Federal consiga resolver o problema». Caso contrário, podemos estar perante «um acontecimento político histórico».

O Custo da Guerra

Joseph Stiglitz, prémio Nobel de Economia, publicou agora um livro com Linda Bilmes sobre os custos (directos e indirectos) suportados pelos norte-americanos com a guerra do Iraque. De forma muito conservadora, foram calculados em três biliões (sim, milhões de milhões!) de dólares. Provavelmente, o custo real rondará os cinco biliões.

Opositor da invasão do Iraque desde o seu início, Stiglitz denuncia as diferentes dimensões financeiras desta vergonhosa guerra, desde crescimento dos seus custos directos (aumentaram três vezes desde a invasão) à privatização do esforço de guerra. Interessante é também a análise de como esta guerra foi acompanhada, pela primeira vez na história norte-americana, por uma descida dos impostos (para os mais ricos), tornando o financiamento totalmente dependente do endividamento. Quarenta por cento deste vem do estrangeiro.

Talvez a melhor forma de perceber a dimensão financeira desta tragédia seja o cálculo do que se poderia ter feito com o dinheiro público agora gasto: um sexto do que foi gasto financiaria o anunciado défice da segurança social norte-americana nos próximos 50 a 60 anos; o custo de alguns dias de guerra teriam financiado o programa de apoio à saúde infantil vetado por Bush por ser demasiado caro.

terça-feira, 11 de março de 2008

Neoliberalismo e acção colectiva

Acho que Vital Moreira está enganado. A «lógica da acção colectiva» de Mancur Olson, parte da chamada teoria da escolha pública, é, desde meados dos anos sessenta, um dos pilares fundamentais de um esforço intelectual extremamente sofisticado para deslegitimar o Estado Social. Não é por acaso que Olson é uma das referências que F. Hayek mobiliza num esforço paralelo para alertar para as supostas perversidades políticas do Estado Social (ver o seu Law, Legislation and Liberty). Uma das ideias centrais é a de que a existência de mecanismos redistributivos serve sobretudo para que os grupos com maior capacidade para intervir na arena política captem benefícios para os seus membros (os «incentivos selectivos», sempre os incentivos). O Estado Social é assim inevitavelmente capturado por grupos mais ou menos privilegiados. Isto frustraria todos os intentos redistributivos. Para além disso, a sua expansão criaria incentivos adicionais para que os diferentes grupos se organizassem e se dedicassem a jogos improdutivos de controlo político. A hipótese do egoísmo racional, ou «tomar as pessoas como elas são», no quadro de uma teoria que faz uso do individualismo metodológico, serve para afirmar o primado e bondade de um quadro de referência mercantil, supostamente dotado de mecanismos para canalizar o egoísmo para a realização do bem comum. A ideologia da perversidade intrínseca de uma esfera política democrática em expansão ameaçadora é assim parte integrante da narrativa neoliberal.

As hipótese e previsões «pessimistas» da «lógica da acção colectiva» são tão importantes que estimularam toda uma linha de investigação na área da economia experimental e comportamental. Esta tem procurado, com assinalável sucesso diga-se, mostrar como as previsões originais falham precisamente porque estão ancoradas em hipótese redutoras (ou parcimoniosas como lhes chamou Hirschman) sobre o comportamento humano.

Nota. Sobre a teoria da escolha pública pode consultar-se com proveito o livro de introdução de André Azevedo Alves e José Manuel Moreira. Os economistas portugueses da chamada escola austríaca, a ala mais sofisticada e intransigente da movida neoliberal, sabem bem que a teoria da escolha pública, de que Olson é fundador, é uma das melhores armas contra todos os projectos socialistas, antigos ou modernos.

Não se percebe...

...isto. Só uma concepção do casamento do tempo da outra senhora pode suportar o interesse desta notícia. Uma das cláusulas do contrato de matrimónio é a lealdade política? Fernanda Tadeu recebe ordens do marido? Perplexidade redobrada já que é Ana Sá Lopes, jornalista que escreveu textos como este, a autora da peça.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Geração de ideias?

Alguns «jovens quadros» do Partido Socialista organizaram no passado fim-de-semana uma iniciativa a que chamaram «geração de ideias». Espero que o encontro tenha sido produtivo. É que o «manifesto por uma geração de ideias», com apenas quarto páginas, é apenas uma entediante síntese de todos os lugares-comuns do «socialismo moderno» socrático. Um excerto: «É desta geração que surge a Iniciativa ‘Geração de Ideias’. Porque temos hoje uma dupla responsabilidade: a responsabilidade de assumir a construção das soluções do presente e do futuro e a responsabilidade da solidariedade (. . .) A ‘Geração de Ideias’ tem a ambição de recolocar Portugal na rota da convergência com as sociedades mais desenvolvidas. Assume uma atitude de acção e de transformação da realidade. Afirma os valores do mérito, da iniciativa, da criatividade, do empreendedorismo e do esforço individual». Podem imaginar o resto. Não melhora. Mais um excerto: «A ‘Geração de Ideias’ rejeita (. . .) os que se rendem, sem luta, nas batalhas da modernidade. A isto, a ‘Geração de Ideias’ contrapõe o optimismo próprio de quem acredita numa sociedade melhor, construída por quem tem a responsabilidade e a capacidade de o fazer: as pessoas, os portugueses». Mais vago e redondo seria difícil. Perante um documento tão decepcionante, só nos resta aguardar por pistas mais concretas sobre a verdadeira agenda dos «jovens quadros» da auto-intitulada «esquerda progressista».

‘Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude’?

Como sublinha João Semedo, a saída de Correia de Campos parece não ter alterado as prioridades do governo em material de políticas de saúde: «O governo acaba de entregar o futuro hospital de Cascais aos Hospitais Privados de Portugal e à construtora Teixeira Duarte (. . .) É incompreensível e inaceitável que esta parceria tenha sido assinada. Dias antes o Tribunal de Contas tinha arrasado o contrato». Assim vão os famosos «ganhos de eficiência» que os apoiantes do governo atribuem às chamadas reformas em curso no SNS. Na realidade, a engenharia das parcerias público-privadas é hoje um dos muitos mecanismos que estimulam a captura privada dos serviços públicos e do pessoal político do bloco central.

Tendências e apostas políticas globais

«Que conclusões políticas estão a tirar governos e populações? Parece haver, de imediato, quatro. A primeira é o fim do papel do dólar americano como moeda de reserva do mundo, que torna impossível a continuidade da política de super-endividamento tanto do governo dos Estados Unidos quanto dos seus consumidores. A segunda é o regresso a um alto grau de proteccionismo, tanto no Norte global quanto no Sul global. A terceira é o regresso da aquisição por parte do Estado das empresas falidas e da implementação de medidas keynesianas. A última é o regresso das políticas sociais redistributivas. A balança política está a oscilar de novo». Immanuel Wallerstein, um dos mais importantes cientistas sociais de combate da actualidade, em artigo no esquerda. As suas reflexões sobre as tendências de fundo à escala global, no quadro da ambiciosa teoria do sistema-mundo, continuam a oferecer pistas interessantes e a combinar análise e apostas políticas fortes.

domingo, 9 de março de 2008

A acção colectiva e as suas lógicas

À falta de melhor, e revelando a extensão da guinada à direita do «socialismo moderno», Vital Moreira faz uso da «lógica da acção colectiva» de Mancur Olson para diminuir o alcance do justo protesto dos professores. Segundo Mancur Olson, inspirador de uma das mais eficazes linhas de ataque neoliberal aos pilares fundamentais do Estado Social, o comportamento dos indivíduos é redutível ao egoísmo racional. Nada mais conta. Assim, só grupos pequenos e com incentivos bem circunscritos conseguiriam mobilizar-se e impor as suas reivindicações. Isto geraria uma assimetria entre minorias egoístas e uma imensa «maioria silenciosa», igualmente egoísta, mas com interesses difusos e desprotegidos. As hipóteses da «lógica da acção colectiva» caem felizmente por terra quando temos cem mil professores nas ruas de Lisboa em defesa da escola pública. Um professor egoísta teria preferido ficar em casa, esperando colher os «benefícios» que podem resultar dos protestos dos outros, sem ter que suportar os «custos» de participação em manifestações. As referências ideológicas dos intelectuais orgânicos do «socialismo moderno» são assim reveladoras e muito redutoras. Desaparecem da sua análise elementos cruciais como a dignidade e a ética profissionais, violentadas por uma prática governamental que apenas confia nas virtudes do comando, do controlo e dos incentivos pecuniários, e as motivações intrínsecas de tantos que dão o seu melhor na escola pública perante uma ministra que tudo fez para que o seu esforço crucial se tornasse cada vez mais invisível. A esmagadora maioria dos professores revelou ontem uma consciência aguda dos perigos de uma política ancorada em concepções tão estreitas da acção humana.

Isto também é uma questão de 'ethos'

De vez em quando, muito de vez em quando, vale a pena ler Vasco Pulido Valente. O seu artigo de sábado no Público chama a atenção para variáveis importantes e muito pouco escrutinadas na complexa questão da avaliação dos professores: «Uma avaliação pressupõe critérios (. . .) Os critérios medem, peço desculpa pelo truísmo, o que é mensurável como, por exemplo, a assiduidade ou notas de uma exactidão discutível, como perfeitamente sabe quem alguma vez deu notas. Não medem nem a ‘moral’, nem o ‘ambiente’, nem os valores da escola ou a contribuição de cada professor para a sobrevivência e a força dessa ‘moral’, desse ‘ambiente’ e desses valores. Numa palavra, não medem a qualidade, de que depende, em última análise, o sucesso ou o fracasso do acto de ensinar. Criam uma trapalhada burocrática que esteriliza e que massacra e acaba sempre por promover a mediocridade, o oportunismo e a rotina (. . .) Os professores não precisam de uma vigilância vexatória e nociva por ‘avaliações’. Precisam de um ethos, que estabeleça uma noção clara e unívoca de excelência».

De facto, existe investigação que tem sublinhado os efeitos perversos de certos métodos de avaliação, reveladores da confiança excessiva na lógica dos incentivos para «guiar» a conduta dos profissionais. Por isso é que todas as modificações nesta área têm de ser feitas com um cuidado e uma sensibilidade extremas. Isto só resulta se os professores participarem na sua definição e forem persuadidos (sublinho a palavra persuadidos) dos seus méritos. Além disso é preciso nutrir e deixar espaço para atitudes e comportamentos que nunca serão considerados pelos métodos de avaliação realmente existentes. Em última análise, a política pública só funciona se for capaz de reconhecer a importância do «ethos» profissional. É também por isto que, como o Ricardo já aqui assinalou, a política do actual ministério da educação fracassou.

O jornal de todas as esquerdas

Este número do Le Monde diplomatique - edição portuguesa é particularmente forte na área da economia. Estes artigos merecerão comentários mais detalhados. Por agora fica o resumo: «O dossiê 'Dilemas da economia portuguesa' constitui o principal destaque da edição de Março. Este dossiê procura reflectir sobre os principais problemas e constrangimentos da economia portuguesa e apontar pistas para uma política económica alternativa. Inclui os artigos 'Perspectivas para a economia portuguesa', de Carlos Carvalhas, 'Ibéria de costas voltadas - Os modelos de desenvolvimento de Portugal e Espanha', de Francisco Louçã e 'O tempo dos regressos ao futuro: por um desenvolvimento inclusivo', de José Reis. Para além da situação em Portugal, também o contexto económico internacional apresenta hoje traços preocupantes sobre os quais importa reflectir. É em torno desta temática que se centra o artigo 'Crises financeiras: não tirar qualquer lição...', de Frédéric Lordon. Está disponível no sítio do jornal um excerto deste artigo de Frédéric Lordon». O resto pode ser lido aqui.

Qual é o projecto da social-democracia?

«O salário médio real tem-se mantido estável nos últimos 20 anos nos Estados Unidos, com 1% da população a captar todos os ganhos resultantes do crescimento de 50% do PIB no mesmo período. Esta situação ‘libertou’ muita liquidez para as actividades financeiras, empreendimentos de risco e especulação (. . .) Todo este cenário foi acompanhado pela crescente imoralidade do sistema. A remuneração dos líderes das empresas atinge actualmente 300 a 500 vezes o salário médio dos colaboradores intermédios, contra 40 vezes no século XX e 50 vezes antes de 1980 (. . .) Mas é agora perfeitamente óbvio que o capitalismo está demasiado instável para sobreviver sem uma forte regulação pública. É por isso que, depois de anos e anos a ser negligenciado como uma opção viável, é altura de delinear um projecto social-democrata para o palco politico». Vale mesmo a pena ler este artigo de Michel Rocard, ex-primeiro-ministro e ex-dirigente socialista francês, publicado no Jornal de Negócios. Os sociais-democratas na «reforma» a revelarem mais atenção aos «desastres do capitalismo» do que os seus camaradas no «activo».

sábado, 8 de março de 2008

Uma grande responsabilidade

Durante os próximos anos, a imagem de Mário Nogueira vai ficar ligada àquele que é, provavelmente, o maior movimento de protesto de professores das últimas décadas. O Secretário-Geral da Fenprof não é obviamente o responsável por este movimento, o qual resulta antes de mais de um profundo clima de insatisfação que se faz sentir entre os docentes.

Por muito que a equipa da 5 de Outubro insista que é a desinformação orquestrada pelos sindicatos que conduz ao protesto, a insatisfação tem razões profundas - umas porventura mais justas do que outras, umas mais recentes e outras que vêm de trás, mas todas elas reais. Isto ajuda a explicar os inúmeros protestos que têm ocorrido em todo o país, bem como as várias associações que têm sido criadas em defesa da escola pública e da dignidade dos professores, muitas por iniciativa espontânea de professores que não estão ligados às direcções sindicais.

Tal não significa, no entanto, que Mário Nogueira e a Fenprof estejam apenas a aproveitar-se do descontentamento geral entre os professores para projectarem a sua imagem e as suas agendas. Em grande medida, se Mário Nogueira vai ficar ligado a este movimento é por mérito próprio. O seu percurso enquanto sindicalista não é o de um desconhecido que chega ao topo da maior federação de professores por mera confiança política do partido a que pertence. Durante vários anos Mário Nogueira esteve à frente do Sindicato dos Professores do Centro, onde se destacou pela sua combatividade e capacidade de mobilização dos colegas docentes - características essenciais para um dirigente sindical, que passam sempre por conhecer a realidade das escolas, de saber interpretar os motivos de insatisfação, de construir um discurso claro que reflicta esses motivos e de organizar o trabalho sindical aos vários níveis.

Tendo ganho o protagonismo actual, Mário Nogueira e a direcção da Fenprof têm uma grande responsabilidade pela frente. Cabe-lhes contribuir para dignificar a profissão docente, indo para além das legítimas reivindicações salariais e de carreira. Cabe aos dirigentes sindicais demonstrarem que existem formas de abordar os vários temas em discussão (a avaliação de professores, mas não só) que são mais razoáveis e exequíveis do que as que saem da 5 de Outubro. Cabe-lhes mostrar pela prática que a sua acção dirigente não é, nos aspectos essenciais, determinada por orientações externas à organização que representam. Em suma, cabe-lhes contribuir para encontrar soluções que protejam a escola pública enquanto valor civilizacional - o que implica evitar a degradação da sua qualidade e da sua reputação - soluções essas que têm de ter em conta a limitação dos recursos existentes num país como o nosso.

A verdadeira prova começa agora. Seria bom para a dignificação dos professores, para a escola pública e para o futuro deste país que Mário Nogueira mostrasse que tem tanta capacidade de proposta como tem de organização do protesto.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Por uma política europeia de coordenação salarial

Uma das tendências fortes da economia europeia é a constante redução do peso dos salários na distribuição do rendimento total, em detrimento do capital (ver gráfico abaixo). A contracção salarial resultou, obviamente, do aumento do desemprego estrutural e da desregulação dos mercados de trabalho. Para muitas economias europeias, sobretudo as mais pequenas e mais abertas (como a portuguesa), esta foi a estratégia seguida, na tentativa de assim obterem vantagens comparativas face aos seus parceiros comerciais. Como o João, no post abaixo, assinalava, se, do ponto de vista nacional, num contexto de crescente competição, esta estratégia pode ser entendida como chave para o sucesso internacional, os efeitos agregados na economia europeia são muito negativos. O economista pós-keynesiano, Englebert Stockhammer, calcula que a redução de 1% do peso dos salários no rendimento nacional origina uma diminuição da procura europeia de 0,2% do PIB. A consequência é, pois, uma economia europeia desigual e deprimida.

Este economista propõe um esquema de coordenação salarial europeu que ultrapasse a armadilha onde nos encontramos. Este esquema faria depender os salários de quatro factores (quer nacionais, quer europeus): aumento da produtividade; inflação; desemprego; convergência salarial. Se a maioria dos países adoptasse este mecanismo, não só conseguiríamos inverter a actual desvalorização do trabalho, como dinamizaríamos a economia europeia, preservando a estabilidade de preços.


quinta-feira, 6 de março de 2008

Problema resolvido

Alguns dos nossos leitores alertaram-nos para problemas com os feeds do blogue. Graças à ajuda de um deles, o Tiago Antão, penso que o problema está resolvido.

A tragédia portuguesa em dois actos

Duas notícias no Público de ontem dizem tudo sobre a tragédia da economia portuguesa: «ministro sustenta prioridade ao défice mesmo que afecte crescimento» e «consumo europeu ao ritmo mais lento em cinco anos condiciona exportações nacionais». Cada um dos países europeus procura que a dinamização das exportações seja o motor do seu crescimento. O processo é altamente descoordenado. O resultado global só pode ser perverso: um mercado europeu desnecessariamente contraído por uma orientação de política que depende da sua expansão. Exportar para fora da UE? Com o Euro a 1,53 dólares? Cada vez mais difícil. Alternativas? Uma política económica de relançamento, coordenada à escala europeia, capaz de dinamizar a procura e de forjar um «jogo cooperativo» no espaço europeu. Os países com situações orçamentais mais folgadas dariam o sinal, mas países como Portugal, com uma economia estagnada há anos, deveriam ter uma margem de manobra muito maior para conduzirem uma política orçamental mais amiga do crescimento e da geração de emprego. Obviamente que isto exigiria governos com orientações menos tributárias da macroeconomia ortodoxa que continua a alimentar o mito de que os problemas do desemprego se devem à «rigidez do mercado de trabalho».

A tragédia europeia continua?

Esta continua a ser uma das melhores formulações sobre o problema económico da Europa: «Na ausência de outros instrumentos de política económica, é como se os governos só tivessem à sua disposição políticas tendentes a reduzir os custos relativos do trabalho através da concorrência fiscal e social (. . .) É uma espécie de tragédia grega: a partir do momento em que os instrumentos de gestão da política económica estão bloqueados, os governos não têm outra escolha a não ser praticar políticas económicas que agravam a situação». Jean-Paul Fitoussi, um dos mais prestigiados economistas franceses. Quando é que os governos dos países europeus começam a dar atenção aos economistas keynesianos? A crise nos EUA, que permite comparações momentaneamente favoráveis, não desculpa a complacência europeia em matéria de política económica. Até porque não é certo que a Europa esteja imune aos ventos funestos que sopram do outro lado do Atlântico.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Felizmente não somos todos parvos

Sócrates governa como se todos os portugueses fossem parvos. É verdade que o panorama do País não é brilhante e é fácil vender gato por lebre. Mas às vezes o tiro sai-lhe pela culatra. Foi o que aconteceu com o aumento extraordinário do Complemento Solidário para Idosos. Há umas semanas, o nosso primeiro anunciou com pompa e circunstância um aumento adicional do CSI, além daquele que havia sido decretado no início do ano. O motivo era a elevação do limiar da pobreza por parte do Instituto Nacional de Estatística. Até aqui tudo bem. O problema está na forma como essa valorização foi anunciada e noticiada, sem que o Governo mexesse uma palha para corrigir o erro. Felizmente há jornalistas atentos e o Jornal de Negócios denunciou a esparrela.

O primeiro-ministro disse no Parlamento que o CSI passaria para 400 euros, ou seja, todos os idosos pobres veriam os seus rendimentos elevados até esse patamar. O valor anterior era 323,5 euros, o que significaria um aumento de 23,6%. Mas há um pequeno detalhe. Este último valor corresponde a um catorze avos do valor anual que é definido legalmente, enquanto os 400 euros anunciados por Sócrates correspondem a um doze avos. A comparação não se pode fazer. No fundo, o CSI passou de 323,5 euros para 342,9 euros, o que é substancialmente diferente. A isto chama-se desonestidade.

Mitos e ilusões

Um dos efeitos do domínio das ficções de mercado é a ofuscação do papel activo que o Estado teve e continua a ter nos processos de desenvolvimento económico bem sucedidos. Convém alimentar a ilusão de que é tudo resultado de processos «espontâneos» que se limitam a libertar as energias empreendedoras dos «indivíduos». Curiosamente os governos dos países que prosperam têm um poderoso interesse em alimentar mitos deste tipo: ninguém gosta de ver as suas «receitas» copiadas. Controlos de capitais na China? Desconheço. Bancos públicos na Alemanha a suportar a máquina exportadora? Nunca vi. Barreiras alfandegárias, explicitas ou implícitas, que protegem industrias emergentes ou asseguram o domínio de sectores considerados estratégicos? Nunca ouvi falar disso. Política industrial? Já ninguém usa. E depois há alguns países que parecem cair na esparrela. Em Portugal, a esmagadora maioria dos «fazedores de opinião» nesta área comprou integralmente o romance do mercado aberto de concorrência tanto quanto possível perfeita. Talvez isto explique parte do actual «mal-estar». É que a opinião tem sempre consequências políticas. Infelizes consequências neste caso.

O controlo de capitais faz parte do menu das políticas de desenvolvimento

Keynes afirmou um dia que «as deslocações maciças e altamente caprichosas de fundos de curto prazo constituíram a principal fonte de perturbações do sistema financeiro internacional». Vejam este debate, a que o Nuno já aqui aludiu, em pleno Financial Times: onde se reconhece que os mecanismos de controlo de capitais não podem deixar de ser parte do menu de política económica dos governos. De facto, os piores efeitos das recentes crises financeiras foram evitados pelos países que mantiveram ou introduziram mecanismos de controlo da circulação de capitais. O controlo de capitais à escala nacional abarca todas as medidas adoptadas pelos governos com o objectivo de gerir o volume, a composição e a afectação dos fluxos internacionais de capitais privados. Estes podem ser permanentes ou temporários e podem ter por alvo os fluxos de entrada ou de saída de capitais. E são geralmente selectivos no tipo de fluxos que são controlados. Tudo depende da avaliação dos riscos e das oportunidades (separando, por exemplo, os fluxos relacionados com o comércio e investimento produtivo dos investimentos financeiros especulativos). Os controlos podem ser baseados na imposição de taxas ou podem ser quantitativos (proibições, restrições ou quotas). Desde a década de noventa que, do Chile à Malásia passando pela China ou por Taiwan, são muitos os exemplos da sua utilização. Com excelentes resultados. E sabem que mais? Ao evitar a crise, estes governos conseguem continuar a atrair os capitais que interessam às suas estratégias de desenvolvimento. Este livro é um bom ponto de partida para pensar estes assuntos:

terça-feira, 4 de março de 2008

Será que é desta?

Parece que a UE vai finalmente abandonar a sua atitude de complacência para com os paraísos fiscais que se multiplicaram nas últimas décadas e que tão bem têm servido os mais ricos na fuga às suas obrigações fiscais. Liechtenstein, Mónaco e Andorra são os alvos. A Alemanha toma a iniciativa. O recente escândalo da fuga aos impostos e o aumento das desigualdades modificaram os termos do debate e obrigaram o governo alemão a reagir. É impressionante a facilidade com que aparecem propostas sensatas para reduzir o alcance destas pérfidas «térmitas fiscais». Ideias e vontade política. Como sempre nada é inevitável. No entanto, o melhor é esperar para ver no que isto dá. É que são poderosas as forças que têm interesse na manutenção do status quo.

Desmontagem gradual do SNS?

«Os grandes grupos privados na área da saúde estão a optar pela contratação de administradores hospitalares com experiência no Serviço Nacional de Saúde (SNS)» (Público). Claro que sim. Têm músculo financeiro, o «negócio» é rentável e o governo está apostado na sua expansão. Não vou repetir o que já escrevemos neste blogue sobre este assunto (I, II, III, IV). Notar apenas como é irónico que seja o PS, partido responsável pela criação de uma das mais bem sucedidas experiências de igualização das condições de vida no nosso país, a promover as forças que a prazo o irão desmontar. Profissional a profissional.

1%

Um por cento da população norte-americana controla mais de um terço de toda a riqueza. Abaixo, o trailer de um documentário sobre o crescimento das desigualdades nos EUA. O realizador é um dos herdeiros da Johnson and Johnson. Faz, portanto, parte desses 1%.



A discussão com Milton Friedman é prometedora.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Privatização da Saúde

A discussão em torno da privatização dos cuidados de saúde é complicada. Os cuidados de saúde continuam a ser razoavelmente universais e financiados através dos impostos. Mais, os gastos públicos com a saúde aumentaram de forma significativa nos últimos anos em quase todos os países europeus (ver tabela abaixo). Em Portugal, os gastos orçamentais, em percentagem do PIB, quase que duplicaram entre 1980 e 2005 (de 3,4% para 7,4%). Privatização com o Estado a aumentar a despesa com saúde? Sim, sem dúvida. Contudo, como se aponta na newsletter deste grupo de estudo sobre privatizações, é necessário atentar a duas dimensões diferentes: o financiamento e a provisão. O financiamento público, se bem que continue a ser maioritário, foi progressivamente substituído por pagamentos privados (ver a segunda coluna da tabela). Portugal parece ser uma excepção, mas o ponto de partida, 1980, reporta-se aos primeiros passos do nosso Serviço Nacional de Saúde. A nossa realidade dos anos oitenta não pode ser assim comparada com a dos restantes países europeus. De facto, no presente, tal como no resto da Europa, também aqui os seguros privados prosperam e as taxas pagas pelos utentes aumentam.

É, no entanto, a separação entre o financiamento e a provisão, promovida pela maioria dos estados europeus, que permite hoje os mais radicais passos privatizadores dos cuidados de saúde. Através da introdução de mecanismos concorrenciais, existe uma autêntica revolução na forma como a provisão está hoje organizada. Os mercados internos, a empresarialização e privatização da gestão dos hospitais ou as parcerias público-privado são alguns exemplos. O grande objectivo passou a ser a redução de custos. No entanto, estas mudanças conduzem-nos a um sistema progressivamente ineficiente. A afectação de recursos passa a ser movida pela lógica do lucro e não pela provisão dos cuidados de saúde per se. O resultado é um sistema onde se gasta cada vez mais para fazer cada vez pior (à imagem dos EUA), minado por elevados custos de transacção e problemas de assimetria de informação.

A privatização da saúde em curso apresenta-se assim como um excelente exemplo do projecto neoliberal, aqui muito bem definido pelo João como «reengenharia do Estado por forma a torná-lo, e aos recursos que controla, num vasto mecanismo de promoção dos interesses dos grupos económicos capitalistas».

Adenda: Importa lembrar que o envelhecimento da população e os desenvolvimentos da medicina são importantes causas, não referidas acima, do aumento dos gastos de saúde.

Esperança bloqueada?

Concordo com a análise do Daniel Oliveira sobre os bloqueios da esquerda portuguesa, responsáveis pela existência do que André Freire chamou o «enviesamento de direita» na condução das políticas públicas em Portugal. Fez-me lembrar uma coisa que o Daniel escreveu a propósito das eleições dos EUA, mas que se aplica neste contexto com particular acuidade: «este é o pecado da esquerda: esqueceu-se do enorme poder político da esperança». Na minha opinião, a esquerda socialista deveria elaborar um programa mobilizador. Nada de muito complicado. Por exemplo, seis propostas realistas de ruptura, como fez, e muito bem, José Sá Fernandes para a CML. Isto teria uma dimensão expressiva poderosa: estamos autorizados a ter esperanças fundadas porque existe uma força disposta a assumir todas as suas responsabilidades. Uma força sem medo do poder. Nem de coligações. Uma força com um programa igualitário de mudança, baseado em políticas concretas capazes de dar «uns empurrões nos sítios certos» (Pedro Viana em comentário) para tornar Portugal num sítio decente.

Estado Penal ou Estado Social?

Vale a pena ler este estudo do Pew Center sobre o sistema prisional nos EUA. Este país detém neste momento um triste recorde mundial que diz tudo sobre o seu modelo de sociedade: a maior percentagem de cidadãos na prisão (750 prisioneiros por cada cem mil habitantes). Este número triplicou entre 1987 e 2007. Um cada noventa e nove adultos está na prisão (1/106 «brancos» e 1/15 «negros» com mais de 18 anos). Na União Europeia a 15, o Reino Unido é quem mais se aproxima (148 por cada cem mil). A variedade anglo-saxónica de capitalismo no seu melhor. Portugal tem 120, a França tem 85 e, claro, a Finlândia e a Dinamarca ocupam os últimos lugares respectivamente com 67 e 65 prisioneiros por cada cem mil habitantes. O sociólogo Loïc Wacquant, que tem trabalhado nesta área, fala da oposição entre Estado Social e Estado Penal. Existe trabalho na área da economia política comparativa, já divulgado entre nós por jornalistas atentos, que estabelece o mesmo tipo de relação. O neoliberalismo, ou seja, a destruição do Estado Social como projecto político deliberado, é hoje o melhor «caminho para a servidão» do Estado Penal.

domingo, 2 de março de 2008

Existem alternativas económicas

«Entre 1971 e 2008, a economia mundial conheceu 24 crises financeiras, ou seja, em média uma crise por cada ano e meio. Um recorde histórico. Nunca a esfera financeira funcionou tão mal. A actual crise bancária, ligada ao crédito imobiliário dito subprime, é apenas a última (. . .) Encontrar os meios para impedir o mau funcionamento dos bancos e para limitar a sua exposição a riscos exagerados seria um grande passo no controlo das derrapagens da finança. Uma análise dos debates em curso mostra que existem propostas para pôr fim as excessos da finança de casino». Algumas das causas da actual fragilidade financeira são exteriores à esfera financeira, embora, como já aqui argumentei, estejam relacionadas com as suas dinâmicas. Como bem escreve Gilles Raveaud por «detrás do sub-prime está o sub-salário». A Alternatives é a melhor revista de informação e divulgação nesta área: a economia é definitivamente um assunto demasiado importante para ser monopólio dos economistas.

The Kills - Cheap and cheerful



Este vai ser certamente um dos álbuns do ano. Concerto dia 12 de Abril na Casa da Música.

Repressão financeira

A defesa da livre circulação internacional de capitais assenta normalmente na premissa de que o capital, na sua desenfreada busca de valorização, se irá deslocar para onde é mais necessário. A liberalização dos seus movimentos permitiria assim uma afectação mais eficiente dos recursos, resultando numa economia mundial mais próspera e eficiente. Todavia, a avaliação do exponencial aumento dos fluxos de capitais das últimas décadas dificilmente pode ser essa. É, por isso, notável que o Financial Times tenha abrigado nas suas páginas uma discussão sobre a necessidade da redução destes fluxos, iniciada por um artigo do recorrente Dani Rodrik e Arvind Subramaniam. Para estes autores a actual volatilidade impõe formas de intervenção pública que reduzam o desproporcionado volume das transacções financeiras. Face à impossibilidade de uma regulação eficaz dos riscos assumidos pelos agentes financeiros, só uma redução da liquidez internacional pode estabilizar a economia internacional. Duas propostas são avançadas no sentido da redução dos crescentes desequilíbrios das balanças de pagamentos das grandes economias mundiais: um imposto sobre o petróleo que reduzisse a procura e, consequentemente, os brutais superávites das balanças de pagamentos dos países exportadores; uma maior articulação internacional na revisão dos valores cambiais de um conjunto de moedas claramente subvalorizadas do Sudoeste Asiático. Estas medidas, aliadas a maiores controlos domésticos sobre os fluxos de capitais, eliminariam assim as principais fontes da actual instabilidade.