domingo, 31 de julho de 2011

Leituras


O Expresso desta semana tem três artigos de economia política que vale a pena ler com toda a atenção.

O primeiro artigo é de Nicolau Santos – “Privatizações: quem os trava?” – e assinala a tremenda irresponsabilidade de se prescindir do controlo público de serviços públicos de rede cruciais, da rede de electricidade aos correios, condicionando as gerações futuras “em matéria de empregos qualificados, inovação, investigação e (...) segurança”. Santos parece ter alguma esperança que isto possa de alguma forma correr bem, chamando a atenção para o perigo de não se poder corrigir o que correr mal. Para corrigir o que correr mal, que vai ser tudo, um futuro governo de esquerda a sério terá de renacionalizar, como é óbvio. É por estas e por outras que desde o início deste blogue temos defendido um sector público robusto: Quem diz que as empresas públicas são ineficientes e desnecessárias não anda a ler jornais, porque devemos ter um sector público, a utilidade do see ou vender a república, por exemplo.

O segundo artigo é de Manuel Pinho – “Uns anjinhos ou muito pior”. Algo auto-congrulatório, mas severamente critico dos compromissos troikistas em matéria de privatizações do sector da energia, Pinho mostra algo de crucial através do exemplo da Dinamarca de Poul Thomson do FMI: como os países mais desenvolvidos ainda mantêm sectores estratégicos sob controlo público, ao contrário do que prescrevem as instituições internacionais para as periferias que se encontram sujeitas aos seus programas de desenvolvimento do subdesenvolvimento, através da pilhagem a que as elites locais chamam “ajuda”. A maior empresa de energia dinamarquesa é controlado pelo Estado em 77%, paga uma taxa de imposto de 40%, o seu CEO aufere menos do que Mexia e paga uma taxa de IRS de 60% e os trabalhadores elegem 1/3 do conselho administração, informa-nos Pinho. Outro mundo.

Do nosso mundo, o mundo do choque neoliberal, fala Alfredo Barroso – “Super-Álvaro e as doses de Caval(l)o”. É o mundo de países desfeitos pelas utopias de mercado, caso da Argentina. O economista argentino Domingo Cavallo, que agora dá conselhos sob a forma de artigos às periferias europeias, esteve por detrás de grande parte das decisões que geraram a catástrofe socioeconómica argentina. Álvaro Santos Pereira, que apresenta a história económica argentina de pernas para o ar no seu último livro, gosta das doses intelectuais de Cavallo. O país pagará um preço elevado pela transformação destas preferências intelectuais em políticas públicas.

sábado, 30 de julho de 2011

Um consumidor moderado

Em artigo de opinião no Público de ontem, José Manuel Fernandes congratula-se com o aumento do preço dos transportes públicos. E para que não se diga que a sua concordância resulta do facto de a medida não o afectar, esclarece que é um «consumidor (moderado) de transportes públicos». Ou seja, deve ser assim como eu em relação a bebidas espirituosas ou cinema, que consumo ocasionalmente.

O que José Manuel Fernandes não percebe – ou finge não perceber – é que os transportes públicos não são uma coisa frugal (como as «pipocas» de João Duque) para um elevado número de trabalhadores portugueses, sobretudo para os que vivem com o salário mínimo (485€) ou menos, e que passam a desembolsar acréscimos que podem atingir (no caso da Carris, por exemplo) 12€ mensais, para poderem deslocar-se diariamente entre a casa e o trabalho.

Mas a insensibilidade social, deliberada ou apenas ignorante, de JMF, fica ratificada num outro ponto do artigo, em que o jornalista faz o favor de nos esclarecer tecnicamente que este é um corte efectuado no lado da despesa e não no lado da receita (em virtude de o aumento das tarifas cobradas pelas empresas transportadoras exigir menores indemnizações compensatórias por parte do Estado). De facto, para os cidadãos verdadeiramente afectados por estes aumentos esse preciosismo técnico faz toda, mas mesmo toda a diferença. Ui, é que sabendo disso já não custa mesmo nada.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Luta de classes (II)


«O milionário Warren Buffett, o terceiro homem mais rico do mundo de 2011 segundo a revista «Forbes», comentou um dia as reduções multimilionárias aos impostos dos mais ricos dos EUA, fazendo notar que a sua empregada doméstica tinha uma taxa de imposto maior que ele. Para Buffett era claro que se vive uma guerra de classes e que, diz ainda, a classe dele «está a ganhar esta guerra». Quando ouvimos que a crise toca a todos e que é uma espécie de peste negra que une a pátria esbaforida em uníssono, devemos perceber que no barco não estamos todos».

(Do artigo de Nuno Ramos de Almeida no «i», A crise é um negócio)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Luta de classes (I)


«Os 25 mais ricos de Portugal aumentaram fortunas para 17,4 mil milhões». Num país em que a população em risco de pobreza era de 18% em 2009 (valor que ascenderia a 43,4% caso o rendimento das familias e dos cidadãos deixasse de contar com o impacto atenuante das transferências sociais, de acordo com o mais recente inquérito às Condições de Vida e Rendimento, do INE). Num país em que os sacrifícios austeritários recaem esmagadoramente sobre o factor trabalho.

Isto não vai acabar bem!


Da minha crónica no jornal i:

Muita gente entendeu a decisão de alargar o âmbito de intervenção do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) como um passo na direcção de um Fundo Monetário Europeu, na senda de uma Europa federal. Acontece que, com esta decisão, os cidadãos alemães, austríacos, holandeses e finlandeses alargam consideravelmente a sua responsabilidade fiscal pelos encargos que o FEEF no futuro assumirá enquanto prestador de garantias nos empréstimos à Grécia (dois), à Irlanda, a Portugal e aos bancos europeus que entretanto terão de ser recapitalizados. Daqui a algum tempo, quando a Espanha e a Itália acabarem por bater à porta do FEEF, soarão campainhas nas cabeças dos cidadãos da Europa rica. Aceitarão eles que os seus governos (sem os ouvir) assumam a responsabilização total e colectiva por uma dívida imensa através da emissão de obrigações europeias, os "eurobonds", garantidas por tributação federal? Isto não vai acabar bem!

Oi! Europa, está aí alguém?

Olhem a Itália e a Espanha atirados às feras ou deixados de fora de um Fundo sem fundos.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Austeridade rima com insolvência


Título do Negócios: Roubini diz que Irlanda e Portugal estão insolventes

Nouriel Roubini, economista que previu a crise financeira de 2008 e que é conhecido pelas projecções catastróficas, avisa que "dentro de alguns anos o actual programa de ajuda a Portugal vai cair por terra, tal como acontecerá na Irlanda."

Nada que já não soubéssemos em Janeiro (ver aqui).

Junte-se o ataque crescente dos especuladores à Espanha e à Itália e em breve chegará a hora da verdade para a zona euro. Não serão precisos vários anos como diz Roubini.

Alternativa política, precisa-se.

A revolta dos banqueiros



Nos últimos dias assistimos ao impensável: o esboço de um conflito entre o Banco de Portugal e a troika, por um lado, e o clube de banqueiros, por outro, com o governo algures no meio. A linguagem ‘subversiva’ utilizada pelos banqueiros era no mínimo inabitual. O que está a acontecer?

É difícil ler nas entrelinhas do discurso dos banqueiros, mas o artigo de Pedro Guerreiro no Jornal de Negócios ajuda um pouco. O essencial é o seguinte: a) os donos dos bancos não querem participar na sua capitalização – não tanto porque não possam, mas porque hoje em dia há investimentos muito mais atractivos do que a banca; b) os donos dos bancos não querem que o estado participe na capitalização com os meios postos à disposição pela troika, (mesmo que temporariamente), tornando-se accionista; c) os donos dos bancos receiam auditorias ao crédito concedido que possam expor as suas fragilidades e tornar inevitável a participação pública.

Os grupos financeiros portugueses sempre foram incapazes de resistir pelos próprios meios a ofensivas externas e sobreviveram como entidades relativamente autónomas apenas sob a protecção do Estado português. Neste momento, com o Banco de Portugal transformado em agência do BCE e o ministério das finanças em comissão executiva da troika, podemos estar a viver o momento em que o Estado português deixou de ter capacidade para desempenhar esse papel. Nestas circunstâncias a participação temporária de dinheiro público (obtido com o financiamento da troika) na capitalização dos bancos portugueses pode ser a antecâmara da transferência da propriedade dos bancos portugueses para grupos financeiros de dimensão europeia. É isto que os donos da banca portuguesa receiam e podem ter boas razões para recear.

Não deixa de ser verdade que neste momento quem manda é a banca, mas a banca que manda já não é a portuguesa. Os “donos de Portugal” estão a perder o pé contra donos de coisas maiores.

Devemos aliar-nos num fervor patriótico aos nossos donos menores na sua luta contra os donos maiores e os seus infiltrados? Não me parece. É importante que a banca em Portugal tenha margem de autonomia relativamente a estratégias que nos são alheias, mas talvez estejamos a chegar ao ponto em que isso só poderia ser garantido com a nacionalização dos bancos. Bem sei que isso fere a sensibilidade de donos menores e de donos maiores e, de tão radical que parece ser, a de muitas outras pessoas. A mim parece-me simplesmente que é verdade.

Esperteza saloia

«Cavaco preocupado com quem fica fora do novo imposto».

Com um título assim, acalentamos por momentos a esperança de que o Presidente da República decide – num acto da mais elementar justiça – não deixar passar em claro a iniquidade social do imposto extraordinário (que recai exclusivamente sobre os rendimentos dos salários, deixando incólumes os lucros empresariais, rendimentos de capital e demais ganhos financeiros).

Mas depressa nos desenganamos: aqueles que Cavaco lamenta não se encontrarem em condições de poder contribuir para este grande desígnio nacional «são muitos dos desempregados, são muitos daqueles que se encontram em situação de exclusão social, são doentes crónicos, são famílias de muitos baixos rendimentos». Não são a banca, nem as empresas, nem os investidores financeiros. O «truque» de Aníbal é óbvio: não se queixe (nem seja mesquinho) quem vai pagar o imposto (lembrem-se dos desempregados, dos excluídos, dos doentes crónicos e das famílias pobres). Quanto aos outros, não interessam para o caso.

Foi há pouco mais de um mês, mas pode hoje dizer-se que longe vai o tempo em que o presidente dizia (numa crítica implícita ao anterior governo), que a «justiça na repartição de sacrifícios» teria que ser uma marca da governação do novo executivo. Em mais um gesto de esperteza saloia, mostrando uma preocupação meramente instrumental para com os desfavorecidos, Cavaco comporta-se como um caçador que – para desviar as atenções da caça grossa – lamenta que as crias de perdiz, pelo seu insuficiente tamanho, não possam ser abatidas.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Consciência

Na semana passada, duas figuras relevantes do mundo católico português deram voz a perspectivas diametralmente opostas sobre a crise. No Prós e Contras, João César das Neves assume a narrativa da remissão dos pecados pela travessia do fogo da austeridade, segundo a qual os países que caíram na malandragem devem penar e purificar-se: «quem tem dívidas tem que as pagar, tem que apertar o cinto». Isto é, as disfuncionalidades da governação económica da UE não contam, a crise e os movimentos especulativos do capital financeiro não interessam, o impacto diferencial da abertura dos mercados europeus aos bens transaccionáveis é despiciente, a iniquidade na distribuição dos sacrifícios não é relevante e o ciclo vicioso da austeridade é uma minudência. É tudo muito simples: trata-se de culpa colectiva indiferenciada e de expiação necessária. A vida quotidiana, sobretudo dos mais afectados pela injustiça da austeridade, não é um dado do problema.

Para César das Neves, a economia de mercado constitui uma espécie de força da natureza (com leis que funcionam tanto melhor quanto menos o Estado e as políticas públicas nela se intrometerem), a que todos se devem adaptar e submeter, sem desculpas nem justificações. À escala comunitária, o professor da Universidade Católica advoga que os países em risco de incumprimento (como Portugal e a Grécia) devem resolver sozinhos os seus problemas (invocando para este efeito o exemplo da Califórnia, cuja situação de falência teria supostamente que ser ultrapassada sem ajudas federais de nenhuma espécie). À escala nacional, César das Neves recorre ao mantra do Estado preguiçoso e gastador, sentenciando que «temos um sistema de saúde pior que os outros e que gasta mais que os outros per capita» (não cuidando contudo de explicar como diabo teremos conseguido - entre outros méritos - que a taxa de mortalidade infantil passasse de 77,5‰ em 1960 para 2,4‰ em 2010, uma das mais baixas do mundo). (*)

Perante a frieza estratosférica do raciocínio de César das Neves, vale a pena ouvir a entrevista de Januário Torgal Ferreira à RTPN. Quando a jornalista Sandra Felgueiras lhe pergunta se o país está a viver um clima de medo e de fome, a resposta é lapidar: «claro que está... e de fome em muitíssimas situações», acrescentando a importância de serem criadas «soluções que não podem ser de forma alguma de caridade, neste sentido de assistencialismo». Sobre o impacto desigual da austeridade, o Bispo das Forças Armadas não hesita: «eu não vou aqui silenciar o que penso, nunca... (...) eu não posso compreender como é que instâncias altamente rentáveis e, neste pais, com dinheiro, que não haja um sentido de justiça».

(*) No próprio programa Prós e Contras, Ricardo Paes Mamede e João Ferreira do Amaral encarregaram-se de repor a verdade relativamente ao exemplo da Califórnia, lembrando os dispositivos federais de apoio social e os investimentos militares. No Jugular, Mariana Vieira da Silva demonstra a circunstância de Portugal se encontrar, na realidade, abaixo da média da OCDE em despesas de saúde per capita.

domingo, 24 de julho de 2011

Uma imagem da economia política africana

Por detrás desta imagem, escondem-se várias histórias. A fotografia, que tem poucos dias, mostra uma fila de camiões numa das avenidas principais de Bissau. Os camiões estão carregados de castanha de caju e fazem fila durante alguns dias para transferirem a sua carga para os navios que se encontram no porto de Bissau e que depois a transportarão, maioritariamente, para a Índia.

Uma das histórias que se esconde por detrás da imagem é a da monocultura, característica que a Guiné-Bissau partilha com numerosos países africanos. Ao longo dos últimos dez anos, a castanha de caju tem representado consistentemente 80% a 95% do valor total das exportações deste país, no contexto de uma tendência de longo prazo para a diminuição do preço internacional deste produto.

Outra das histórias que aqui se esconde tem a ver com o fim gradual do campesinato de “subsistência” e a penetração da vida rural africana por parte da lógica da mercadorização: juntamente com as plantações de caju, disseminou-se também na Guiné-Bissau a partir da década de 1980 uma tendência inexorável para a mediação mercantil entre a produção e o consumo, com a expansão da produção de caju a surgir a par da redução, ao longo das últimas décadas, da produção local de arroz (base da dieta local). Nalgumas regiões, a expansão da área cultivada com cajueiros teve já como consequência o esgotamento da “fronteira natural”, sendo de prever que isso venha em breve a estar na origem de uma pressão, também ela inexorável, no sentido da mercadorização futura da própria terra (que em geral não é ainda transaccionada). Acumulação primitiva, como se diz em certos contextos.

Outra história ainda é a dos constrangimentos infraestruturais à produção no contexto de muitos países em desenvolvimento. Os camiões estão à espera devido à capacidade relativamente limitada do porto de Bissau. Analogamente, poder-se-ia falar dos constrangimentos decorrentes da rede viária limitada, da inexistência de instalações de armazenamento e conservação (especialmente nas áreas rurais) ou da impossibilidade de acesso ao crédito por parte dos produtores locais.

E a última história tem a ver com a estrutura oligopsonística das cadeias de valor da maior parte das mercadorias de exportação africanas e a sua relação com a pobreza: essas cadeias de valor são em geral dominadas por um número reduzido de grandes empresas multinacionais de importação e exportação, o que permite a estas últimas comprimir para níveis próximos do limiar de subsistência os preços pagos aos produtores locais (as famílias rurais, em geral pobres, que cultivam e apanham caju nas suas próprias parcelas de terreno).

Dependência monocultural, constrangimentos materiais e sociais à produção, transição agrária, estruturas de poder do comércio internacional. Chama-se a isto economia política – e ajuda a perceber muito melhor o mundo do que modelos bacocos ou correlações espúrias.

O tamanho importa – e o mundo real ainda mais

Neste paper fantasticamente irónico mas irrepreensivelmente rigoroso nos termos da econometria convencional, T. Westling revisita o trabalho de Barro e Mankiw relativamente aos determinantes do crescimento económico, utilizando o mesmo conjunto de dados seccionais relativos a 121 países no período 1960-1985, aos quais acrescenta o tamanho médio do pénis erecto em cada um desses países obtido a partir de uma outra fonte estatística.

Encontra uma correlação negativa robusta: o tamanho médio do pénis explica cerca de 20% da variação do PIB no período em análise (de forma inversa), de forma estatisticamente significativa para α = 0,01 em qualquer uma das especificações do modelo. A correlação permanece elevada e robusta mesmo quando introduzida uma variável dummy relativa a África (de modo a controlar eventuais especificidades dos padrões de desenvolvimento africanos), revelando por outro lado uma associação estatística bastante mais forte e robusta entre o tamanho do pénis e a taxa de crescimento económico do que entre esta última e o tipo de regime político.

Aqui fica a sugestão de leitura, à atenção de econometristas, outros alquimistas e estudantes de economia.

Práticas democráticas

No seminário organizado pelo CES, o sociólogo norte-americano Robert Fishman, que deu ontem uma interessante entrevista ao Público, apresentou uma síntese do seu mais recente artigo académico sobre os efeitos positivos nas práticas políticas e culturais, onde se incluem importantes igualdades substantivas, das origens revolucionárias da democracia portuguesa, por comparação com a transição espanhola: sempre confiante nas práticas democráticas avançadas e na herança de Abril. Questionei Fishman sobre a elevada desigualdade económica em Portugal, algo superior à registada na sociedade espanhola. Respondeu que esta resulta sobretudo do maior atraso na difusão de oportunidades educativas herdado pela democracia no nosso país. Isto está de acordo com o que me parecem ser duas das variáveis mais importantes para a narrativa progressista de Fishman: a educação e a inovação. No entanto, alguma investigação sobre desigualdades económicas tem assinalado padrões que chamam a atenção para outros elementos, nomeadamente as mudanças institucionais, associadas ao conflito social, que podem contrariar as consequências positivas do investimento na educação. De facto, a queda da desigualdade económica aprofunda-se, no nosso país, logo a seguir à revolução, graças às mudanças progressistas ocorridas nos mais variados campos, da legislação laboral e social ao papel dos sindicatos, mas este processo igualitário é interrompido e revertido pela instituição do neoliberalismo, que ganha fôlego com a economia política do cavaquismo. Os governos do PS nunca puseram em causa o modelo económico herdado, e o seu viés liberalizador e privatizador, mas procuraram de alguma forma conter algumas das suas consequências sociais mais danosas, e aí tiveram sempre apoio à sua esquerda, com modestos efeitos positivos em termos de redução das desigualdades económicas, de acordo com os dados disponíveis. Desde algum tempo que estamos precisamente confrontados com o esgotamento desta estratégia social-liberal de aposta na construção simultânea de uma economia cada vez mais mercadorizada, muito impulsionada pela natureza da integração europeia seguida, e de barreiras, relativamente mais frágeis, que impeçam a instituição de uma sociedade de mercado...

Tipos de terrorismo?


Há qualquer coisa de chocante nas condenações de “qualquer tipo de terrorismo” por parte de dirigentes de partidos de direita em todo o mundo (mas também do neo-eleito secretário-geral do PS português). A que propósito “qualquer tipo”? É como se o terrorismo fosse normal quando vem “de fora” e tivesse alguma coisa de estranho quando vem “de dentro”.

sábado, 23 de julho de 2011

Política

É preciso perceber que a política cambial é apenas outro nome para política monetária, e que monetária é apenas um adjectivo para Política.

Custos

Paul Krugman alude a um ponto em que temos insistido desde há alguns anos neste blogue: a obsessão da desunião europeia, partilhada por outras regiões, e que a última reunião dos líderes da zona euro confirmou, com a promoção da competitividade através da compressão dos custos salariais, à boleia da austeridade recessiva por todo o lado. As consequências perversas são óbvias e têm sido assinaladas pela investigação feita por economistas de vários quadrantes: estamos trancados num jogo concorrencial perverso em que o que parece racional para cada país individualmente considerado – promover as suas exportações por via da compressão dos custos relativos do trabalho e seduzir o capital, que desde os anos oitenta pode circular por aí sem grandes entraves, por via fiscal – gera um resultado global tendencialmente depressivo sob a forma de mercados desequilibrados e contraídos por um défice permanente de procura salarial. O aumento do peso dos rendimentos do capital no rendimento nacional de muitos países não se traduz em investimento adicional devido precisamente à medíocre evolução da procura e à pressão por parte de accionistas cada vez mais poderosos para a distribuição incessante de dividendos. Até quando é que os interesses do capital financeiro comandarão o processo económico?

Uma goma

Graças a Bruno Simões do Negócios, descobri uma foto com os ursos de goma que constavam da mesa do lanche entre Papandreou e Merkel. A “solução que salvou o euro” é como uma goma, artificial e sem grande utilidade para saciar mercados que continuam com rédea solta, abrindo espaço à continuação, a prazo, das pressões especulativas, agora sobre a Espanha ou sobre a Itália, que acabarão por chegar ao centro, como sublinha Yanis Varoufakis, um dos melhores observadores que eu conheço da catástrofe eminente e defensor de alguns dos meios modestos para a evitar. Assim, para quando uma reestruturação a sério das dívidas periféricas, com recapitalização e reforço do controlo público dos bancos, emissão de euro-obrigações, fim da separação entre política monetária e orçamental e adopção de um plano de estímulo com escala europeia, superando em definitivo a austeridade recessiva?

Notas

Algumas notas iniciais sobre a “verdadeira revolução nos mecanismos de ajuda aos países em dificuldades”, para usar a manifestamente exagerada caracterização do Público. Em primeiro lugar, não é ajuda por causa da austeridade recessiva e da fúria privatizadora, que continuam a ser impostas às periferias, embora o centro europeu se tenha contido nos ganhos com as taxas de juro impostas. Em segundo lugar, não é revolução porque estamos na presença de reformas parciais no financiamento que abrem em definitivo a época da reestruturação da dívida, na variante conduzida pelos interesses dos credores, tentando, de forma irrealista, circunscreve-la à Grécia e tentando minimizar perdas que terão de ser provavelmente muito mais substanciais, dada a situação financeira que é agravada pela austeridade. Em terceiro lugar, o fundo de estabilização tem um mandato mais flexível, recomprando dívida, mas a sua armadura financeira não é reforçada, o que incentiva todas as apostas especulativas e todos os efeitos dominó. Não estamos ainda perante a emissão de euro-obrigações, claro. Em quarto lugar, note-se como o memorando que era “para cumprir à risca” já foi alterado, apenas nas condições de financiamento, passados três meses. Imaginem o que aconteceria se os governos das periferias tivessem uma atitude mais activa em matéria negocial, uma consciência mínima dos interesses nacionais. Em quinto lugar, a referência vaga à necessidade de organizar um plano de investimento na Grécia revela a má consciência desta desunião europeia: a estratégia da austeridade fracassou, mas ainda não têm a coragem de a superar. Esta continua a ser a principal linha divisória porque é a austeridade que gera a crise. Até quando?

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Revolucionários?

Só que há aqui uma enorme contradição em termos. Afinal, querem tirar o Estado da economia e da sociedade, querem menos Estado e melhor Estado (como muitos querem). Mas não basta. Querem fazer isso revolucionando a economia e a sociedade a partir do Estado. Será que os "revolucionários" portugueses inventaram o "liberalismo de Estado"? Ou foi apenas um lapso, a corrigir no futuro?

Ao contrário do que sugere Pedro Lains no Negócios de ontem, os “revolucionários” portugueses não inventaram o “liberalismo de Estado” porque não inventaram o neoliberalismo, ou seja, o projecto de reconfiguração do Estado para o usar como instrumento ao serviço do reforço de um certo poder empresarial e da expansão de uma certa forma de mercado, que têm por efeito transferir rendimentos e recursos para o topo da pirâmide social. Como sabemos da ampla literatura de economia política crítica sobre estas matérias, desde pelo menos Karl Polanyi até Jamie Peck, esta engenharia política não pressupõe menos Estado, pressupõe o reforço de um certo estilo de intervenção estatal, menos sujeito ao escrutínio democrático, mais repressivo e penalizador das classes subalternas e das suas formas de acção colectiva...

Quem é pressionado?

Em doze anos, a taxa de desemprego no nosso país triplicou, passando de cerca de 4% para mais de 12%. Nesse período tivemos várias reformas liberais do código do trabalho, que apenas fragilizaram a posição dos trabalhadores, alastrando a precariedade. A legislação laboral tem impactos sobretudo distributivos – poder, rendimentos e outros recursos. A criação de emprego, por sua vez, depende primeiramente da evolução da procura efectiva. E é por causa da sua compressão, obra da austeridade permanente, que teremos a continuação da destruição de emprego, que poderá bem ultrapassar os cem mil postos de trabalho nos próximos dois anos, a previsão do Banco de Portugal, uma instituição especializada em aplicar a lógica da batata ao trabalho. O governo, em linha com o plano da troika, pretende usar o crescente desemprego como instrumento para fragilizar legalmente ainda mais a posição do mundo do trabalho, para instituir em definitivo uma economia sem pressão laboral e salarial, uma economia cada vez mais desigual e medíocre, através, por exemplo, da facilitação do despedimento. A criação de emprego não passa por aqui, claro, mas sim pela reforma da arquitectura do euro, que tem sido a grande responsável pela nossa desgraçada situação, por forma a permitir uma política pública de estímulo à procura e à sua reorientação para sectores ricos em emprego.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Para quem continua a acreditar que nos EUA o governo Federal não apoia os Estados com problemas orçamentais

Federal funds help Minnesota's budget.

As transferências orçamentais a partir de Washington evitam assim cortes drásticos em despesas sociais e abrem perspectivas de uma retoma mais rápida - com benefícios óbvios para a consolidação orçamental. Estão a ver a diferença?

Crise ou declínio?


Ouvimos dizer: “As coisas para melhorarem, devem piorar primeiro”. A austeridade irá acentuar a recessão e o desemprego (agora já ninguém tem duvidas). Mas depois, dizem-nos também, o remédio fará efeito: “Isto é uma crise, não é um naufrágio, vamos ao fundo, mas depois voltamos à tona”.

Qual é a lógica de quem assim pensa e assim pensando nos administra o elixir? A austeridade provoca desemprego. Certo. Mas o desemprego combinado com redução da protecção social obriga as pessoas a aceitarem salários mais baixos. Os salários mais baixos, por sua vez, atraem capital para os sectores exportadores e o investimento aumenta nesses sectores. Resultado: o desemprego desce e as contas externas equilibram-se. Certo?

Não. Errado. A mobilidade que conta não é só a dos capitais. O desemprego e a descida dos salários obrigarão um número crescente de portugueses a emigrar de novo para a Europa do Centro que ainda cresce e para os países emergentes que até falam português (assim como de imigrantes a regressar aos paises de origem). A força de trabalho disponível pode não aumentar e a pressão à descida dos salários pode não se fazer sentir tanto como o esperado. Nesse caso os capitais não afluem e não há retoma do investimento. Entretanto o país despovoa-se, reproduzindo à escala nacional o que vimos acontecer em muitas regiões de Portugal.

O cenário não é de crise, é de declínio. E isto é o que temos de evitar.

Fishman em Portugal

O CES organiza, amanhã, um seminário com o cientista social norte-americano Robert Fishman, um estudioso da economia política do nosso país, sobre "contrastes entre Portugal e Espanha: prática democrática e crises económicas". O seminário terá lugar no CES-Lisboa, no Picoas Plaza, pelas 18h00. Um bom debate em perspectiva. Apareçam.

Fishman ficou conhecido no debate público português depois de ter publicado um artigo sobre Portugal no New York Times, com uma visão algo idealista, mas que sublinhava bem as pressões especulativas sobre o nosso país que antecederam a intervenção externa. Algo idealista porque, como na altura escrevi no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, a intervenção externa não foi um simples golpe dos agentes que operam nos mercados financeiros contra a economia política progressista de um país que insiste em manter uma "economia mista" com laivos keynesianos. A pressão externa convergiu com um bloco político-económico interno, liderado por grandes grupos económicos e financeiros rentistas. Um bloco que ganhou com a aventura do euro e com os correspondentes enviesamentos para os sectores dos bens não-transaccionáveis que a sobrevalorização da moeda, o acesso mais fácil aos circuitos financeiros internacionais e uma política industrial insuficiente permitiram. Um bloco que é responsável pelo facto de a economia política nacional só ter conhecido duas palavras nas últimas duas décadas – liberalização e privatização –, hoje incompatíveis com o acervo de direitos sociais e laborais que foi o lastro de um curto período de democracia de alta intensidade no nosso país.

Fishman tinha publicado, em 2010, um artigo académico na revista Studies in Comparative International Development intitulado "Rethinking the Iberian Transformations: How Democratization Scenarios Shaped Labor Market Outcomes". O artigo está acessível através de qualquer universidade, mas um resumo pode ser encontrado aqui. Trata-se de um exercício de economia política comparada. Portugal aparece muito bem na fotografia em termos de capacidade de criação de emprego e de preocupação política com essa variável crucial. O estudo de Fishman refere-se ao período democrático, indicando precisamente que a ruptura revolucionária portuguesa e suas heranças político-ideológicas e institucionais, por comparação com a transição espanhola, explicam parte deste relativo sucesso português. No entanto, Fishman não considera as abissais desigualdades salariais nacionais, por exemplo. E é claro que uma integração mal conduzida, a austeridade, as pressões especulativas e suas sequelas puseram em causa, desde o início do milénio, tal trajectória, como Fishman aliás reconhece, embora o seu artigo não se concentre sobre essa fase mais recente, que viu o desemprego triplicar numa década.

A austeridade falhou

Assim não dá: até a The Economist reconhece que a “austeridade e o crescimento não combinam”, que nos raros casos em que a chamada “consolidação orçamental expansionista” funcionou existia uma política monetária de redução dos juros e/ou uma política cambial de desvalorização da moeda, ou seja, nada que seja relevante hoje em dia para Portugal, como temos insistido. A grande fezada de dirigentes europeus e nacionais, que insistem em não perceber que a perversa austeridade está hoje no centro dos problemas económicos e políticos europeus, não se vai concretizar e eles sabem disso. Aí vamos nós rumo a mais uma grande recessão, a um grande desperdício de recursos, a uma grande erosão da confiança. Para quê? Para facilitar a consolidação de uma economia de baixa pressão salarial, a erosão total de direitos arduamente conquistados e a captura privada de bens públicos, estilo doutrina do choque? A questão de Joseph Stiglitz, no Económico de ontem, é a mais pertinente: “Até que ponto devemos continuar a experimentar as ideias que falharam?”

Ciclo de Cinema Memória e Revolução: «As Operações SAAL»


A encerrar o ciclo de cinema Memória e Revolução, organizado pela Cultra, CES e Casa do Brasil, é hoje exibido às 21.00h, na Casa do Brasil (Rua Luz Soriano, 42, no Bairro Alto), o filme «As Operações SAAL», de João Dias (2007), seguindo-se um comentário do Arquitecto José António Bandeirinha e debate.

Sinopse: «Operações SAAL é o mais completo, abrangente e emocionalmente rico documento, de um período crítico do Pais e da sua história recente. Em 1974/75, um projecto de habitação envolveu arquitectos e população numa iniciativa única e revolucionária. Os pobres conquistavam casas, que eles próprios construíam, e a arquitectura portuguesa dava um passo ímpar na sua afirmação dentro e fora de portas. Trinta anos depois, as memórias filmadas dos actores destes processos ajudam a entender as repercussões sociais e culturais das Operações SAAL, ao mesmo tempo que um extenso acervo documental inédito ajudará a reflectir sobre os caminhos que a arquitectura e o urbanismo têm percorrido desde essa altura.»

terça-feira, 19 de julho de 2011

Hoje

«A crise originada em 2007 no sistema financeiro internacional poderia ter conduzido a profundas transformações no funcionamento e finalidades deste sector. Os poderes públicos poderiam ter olhado para os seus efeitos negativos sobre o conjunto da sociedade e decidido reapropriar-se de instrumentos de política económica e financeira que limitassem os seus impactos no presente e impedissem a sua repetição ou escalada futura. Em vez disso, abdicaram de reformar em profundidade o sistema financeiro e permitiram que este transferisse os custos da sua recuperação para os Estados, através de custosas operações de salvamento seguidas de ataques especulativos às dívidas soberanas, a começar pelas das economias mais fragilizadas e periféricas. A inclusão destas economias na zona euro não as protegeu de tais ataques, com as instituições da União Europeia a serem mesmo parte activa na imposição de um caminho de prolongada recessão económica e regressão social que traz consigo o risco de desintegração europeia.»

Do posfácio de Sandra Monteiro ao livro «Portugal e a Europa em Crise», editado pela Actual Editora e organizado por José Reis e João Rodrigues, que reúne artigos publicados na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, entre Março de 2008 e Maio de 2011. Um roteiro para compreender a crise, as suas verdadeiras causas, o descalabro da resposta europeia e as propostas alternativas para a sua superação. A apresentação da obra, a cargo de João Cravinho, realiza-se hoje às 18h30 na livraria Almedina do Atrium Saldanha (Lisboa), contando com a presença de José Reis e João Rodrigues.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Da soberania

Obama declarou, na semana passada, que os EUA não são a Grécia ou Portugal. Obama tem, claro, toda a razão. Os EUA são um país com imensos problemas, mas que dispõe de soberania monetária. Para além da desvalorização cambial, que sempre ajuda na correcção dos défices externos, podem adoptar políticas de estímulo económico interno e recorrer ao financiamento monetário por parte do seu mais pragmático Banco Central, comprando dívida, o que faz todo o sentido quando há desemprego e ampla capacidade produtiva por utilizar, devido à crise, e, logo, não existem riscos inflacionários relevantes.

Portugal e a Grécia, por seu lado, são membros de uma espécie de federação, disfuncional e incompleta, assente numa separação letal entre política orçamental e política monetária, colocados na dependência de instituições centrais que parecem só existir para favorecer a pilhagem financeira e não para realizar, entre outras operações de política económica que deveriam estar institucionalizadas, as transferências orçamentais entre “regiões” que partilham a mesma moeda. Abdicámos dos atributos centrais da soberania democrática sem os recuperar à escala europeia. Este é o nosso problema europeu e a questão é saber se o conseguimos resolver no quadro do euro. Como estamos é que não pode ser.

Entretanto, no campo da dívida pública, a crise nos EUA é resultado de um sistema político disfuncional, também dominado por ideologias aberrantes, ilustrando o perigo de se aceitar uma regra, um tecto, artificial, que as crises agudas se encarregam sempre de furar, para variáveis, como a dívida, que dependem sobretudo do andamento da economia, mas sem esquecer, claro, as consequências fiscais negativas da captura do Estado pelos mais ricos...

Portugal e a Europa na encruzilhada da crise

Foi publicado hoje um artigo meu no Público sobre a crise europeia e os cenários que nos esperam. Entretanto, por coincidência, saiu hoje no Financial Times um artigo do Wolfgang Munchau que converge bastante com o que digo, embora com a inevitável perspectiva ortodoxa. Já que está disponível em linha, transcrevo aqui a totalidade do meu texto.


A indignação geral, nacional e europeia contra as agências de notação nos últimos dias é mais reveladora da impotência da União Europeia em lidar com a actual crise financeira do que de uma qualquer epifania das nossas elites relativamente às responsabilidades destas agências e dos mercados financeiros na crise.

A decisão da Moody's em baixar a notação da República Portuguesa ou a ameaça da Standard and Poor's de avaliar o plano francês de envolvimento do sector privado no reescalonamento da dívida grega como bancarrota dão sobretudo conta do falhanço das políticas de austeridade. Num contexto de forte endividamento externo de famílias, empresas e Estado, qualquer movimento de redução do défice público tem como consequência uma redução do produto e, logo, uma diminuição da receita fiscal.

Não é, por isso, surpreendente que sejam necessários novos pacotes de financiamento, associados a mais austeridade e mais desemprego. Por outro lado, os acontecimentos dos últimos dias mostram também até que ponto o poder político europeu se encontra refém do sistema financeiro europeu, que não aceita quaisquer perdas neste contexto e que exige um euro forte para as suas estratégias de expansão. Só tendo isso em consideração, e não o ligeiro aumento da inflação, é possível compreender os recessivos aumentos da taxa de juro por parte do Banco Central Europeu.

Na iminência do incumprimento grego e com a especulação a alastrar de forma aguda aos mercados de dívida espanhola e italiana, entrámos, definitivamente, numa nova fase da crise. Esta não é uma crise susceptível de ser circunscrita a um pequeno número de países sem grande peso na economia europeia. Trata-se de uma crise sistémica, com origem na arquitectura disfuncional de uma União Económica e Monetária (UEM) na qual a moeda comum, sem um correspondente orçamento comum, cavou o fosso de competitividade entre o centro e a periferia que está na raiz dos presentes problemas. É, pois, tempo de pensar quais os possíveis cenários que nos esperam, se quisermos estar mais bem preparados para pensar em alternativas e reagir atempadamente.

Neste contexto, são três os principais cenários alternativos que se colocam perante nós, cada um dos quais susceptível de pequenas variantes que não comprometem o seu sentido e implicações gerais. No primeiro cenário, depois de um provável incumprimento (e saída do euro) por parte da Grécia, a Europa decide mutualizar a dívida pública europeia através de emissão de euro-obrigações que cubram parcial ou totalmente as dívidas públicas nacionais. Os países em situação idêntica à de Portugal veriam assim os seus custos de financiamento descer. No entanto, um tal cenário implicaria necessariamente a criação de um ministério das Finanças europeu, que imporia a continuação da austeridade na periferia. Ainda que o risco de incumprimento no curto prazo desaparecesse em consequência, a ausência de instrumentos de política económica e a necessidade de permanentes saldos orçamentais primários positivos na periferia resultariam na continuação do declínio face ao centro, gerando uma tal degradação económico-social e perda de soberania que a futura implosão da UEM não seria mais do que adiada.

No segundo cenário, o rumo actual da situação permanece alterado, com uma UE incapaz de se pôr de acordo, tendo como consequência a entrada em incumprimento generalizado por parte dos pequenos países da periferia. Devido aos seus défices públicos, estes países ver-se-iam forçados a sair do euro sob pena de não conseguirem pagar salários e pensões. A banca entraria em colapso devido à sua dívida externa em euros e a concessão de crédito congelaria. Três crises eclodem em simultâneo: crise de dívida, crise bancária e crise cambial.

O resultado, no curto prazo, seria uma forte contracção do produto, aumento da inflação, desemprego e instabilidade social, à imagem do que sucedeu, numa primeira fase, na Argentina. Os países do centro assumiriam parte dos custos, recapitalizando o BCE e assumindo as perdas do incumprimento soberano através de transferências fiscais. Para estes países, seria politicamente mais fácil convencer os seus cépticos eleitores que tal pagamento é o custo de se terem livrado dos países "malcomportados".

Finalmente, no terceiro cenário, os países da periferia negoceiam com a UE uma saída organizada do euro. O incumprimento soberano far-se-ia através da desvalorização cambial subsequente (os pagamentos seriam feitos em escudos em vez de euros). Introduzir-se-iam controlos de capitais de forma evitar a fuga destes e a banca teria de ser imediatamente nacionalizada e recapitalizada através de emissão monetária, de modo a prevenir os efeitos de uma crise bancária profunda. Seria necessário proceder ao aprovisionamento de alguns bens essenciais, da alimentação ao petróleo.

Numa segunda fase, as reservas de ouro seriam utilizadas para estabilizar a taxa de câmbio. No curto prazo, seria impossível evitar o impacto da saída do euro sobre o produto e a inflação. No entanto, se adoptada de forma organizada, tal opção restituiria ao Estado os instrumentos necessários à reconversão económica, tornando mais fácil combater o défice externo através da desvalorização cambial e defendendo o emprego e os serviços públicos.

Todos estes cenários envolvem custos. Todavia, pensar e debater estas três alternativas de forma séria proporciona benefícios evidentes à posição de Portugal no contexto europeu. Nessas condições, beneficiando do alastramento da crise a novos países e recusando a falida continuação da política da austeridade, não é impossível perspectivar uma aliança europeia que possa impor uma reestruturação da dívida favorável aos devedores e um reforço do orçamento europeu de forma a aumentar a sua capacidade redistributiva. Um primeiro cenário alterado, portanto, com uma reconfiguração radical da UE, que passaria também, por exemplo, por alterar os estatutos e as prioridades do BCE. No entanto, qualquer posição negocial só terá força se for credível nas suas ameaças, pelo que é fundamental considerarmos seriamente os outros dois cenários. Na verdade, se a adopção de uma tal posição comum se mostrar impossível em consequência da evolução política nos diferentes contextos nacionais, a necessidade de um plano B implicará encararmos seriamente a possibilidade do terceiro cenário, recusando discursos apocalípticos e perspectivando um país com futuro.

domingo, 17 de julho de 2011

Aterragem?


Baseando-se nas declarações de Vítor Gaspar, apostado em aprofundar uma “grande transformação” que nos conduzirá a crises cada vez mais violentas, o editorial do Público de sexta-feira declarava que “o país vai descolar do modelo social europeu para aterrar no liberalismo da América”. Os arranjos institucionais da zona euro ajudam quem está apostado em copiar o pior dos EUA, já que foram pensados para erodir direitos laborais e sociais, para favorecer todas as convergências regressivas entre os modelos de capitalismo disponíveis. No entanto, não se trata de liberalismo, que nos EUA até adquiriu historicamente uma conotação progressista, próxima da social-democracia, assente na valorização das liberdades “positivas”, mas sim de neoliberalismo, ou seja, de uma ideologia apostada em criar as condições institucionais e políticas para transferir rendimentos e riqueza para os que estão no topo da pirâmide social, através da financeirização da economia e do domínio do Estado e da vida pública pelas grandes empresas, em especial pelas empresas do sector financeiro, pelo poder do dinheiro cada vez mais concentrado.


O gráfico acima, que compara o crescimento cumulativo para diferentes segmentos de rendimentos (dos mais pobres aos mais ricos) em dois períodos cruciais da história do pós-guerra nos EUA, ilustra bem a conjugação de medíocre crescimento dos rendimentos e de injustiça social, indissociáveis da configuração de capitalismo sob hegemonia da finança de mercado que emergiu nos EUA, a golpes de política, a partir dos anos setenta: entre 1947 e 1973, época de consenso “liberal”, de contrapoderes sindicais fortes e de mercados muito mais limitados e politicamente enquadrados, o rendimento das famílias mais pobres (20% da população), cresceu, em termos reais, aproximadamente 97,5% e o rendimento das famílias mais ricas (5% da população), cresceu 89,1%; entre 1974 e 2005, na chamada “Era de Milton Friedman”, esse crescimento foi, respectivamente, de 10% e de 62,9%. O “trade-off eficiência-equidade”, em que muitos economistas ainda insistem, não passa de uma peça da máquina ideológica neoliberal montada com muito dinheiro. Entretanto, a percentagem de rendimento captado pelos 1% que estão no topo da hierarquia social passou, nos EUA, de 8,2%, em 1970, para 17,4%, em 2005. O desfasamento, com mais de duas décadas, entre o crescimento da produtividade e o da maioria dos salários, ao mesmo tempo que os gestores de topo, que ganhavam 38 vezes mais do que o trabalhador médio em 1979, passaram a ganhar 262 vezes mais em 2005, foi “compensado” pelo endividamento maciço das classes trabalhadoras, assim mantendo, de forma insustentável, a procura.

Uma fórmula fracassada que se quer replicar com ainda maior intensidade em Portugal – das desigualdades galopantes à crise permanente, passando pela emegência de um Estado penal, a alternativa à destruição do Estado social, até à exclusão de amplas camadas do acesso a bens essenciais, como a saúde, há assim muitos erros para repetir na aterragem planeada pelo governo. Até quando é que os cidadãos continuarão a aceitar utopias de mercado que fracassam sempre?

A queda

Luís Gaspar diz tudo o que é preciso dizer sobre a constante falta de seriedade de Cavaco, que vem agora apelar a uma desvalorização de um euro comandado pelo “independente” BCE, uma aberração anti-democrática saída de tratados que o mesmo Cavaco assinou e apoiou, como apoiou e apoia todas as medidas de austeridade cuja lógica é desvalorizar o factor trabalho, para usar uma expressão que lhe é cara. Gaspar também lembra a esquerda do que é essencial neste campo: “Estou certo que esta revisão doutrinária representa a queda de um anjo do pedestal da ortodoxia económica, o que levará a um questionamento por parte da profissão sobre as vantagens desta mesma ‘independência’ - quase sempre, a independência de uma instituição perante o estado geralmente aumenta a sua dependência perante interesses privados, e esta parte geralmente esquecem de ensinar. Finalmente, e reiterando que saúdo o que o Sr. Presidente disse publicamente, considero que a questão da força do euro é apenas parte do problema, escondendo, na verdade, outra questão que julgo pelo menos tão relevante. Cerca de 75% do valor das exportações portuguesas tem como origem países da União Europeia (…) O problema da periferia europeia é em boa parte um problema de dumping salarial por parte da Alemanha, como defendi aqui. Este dumping implica que o 'escudo' está sobrevalorizado perante o ‘marco’, e aí sim, parece-me, reside boa parte da chave do problema.”

sábado, 16 de julho de 2011

Não há stresse...

Os bancos-lixo nacionais lá passaram nos testes de stresse. O prestimoso governo veio logo reafirmar que alguns mil milhões de euros estão disponíveis para o que der e vier, sem quaisquer contrapartidas, claro. O governo sabe que o aprofundamento da crise, obra da austeridade, aumentará a fragilidade financeira, mas que não pode haver stresse para quem tem poder. O stresse, como temos sublinhado, é transferido para outros, para muitas famílias e empresas, apanhadas numa relação assimétrica com a banca. A economia é política, entre outras razões, porque se trata de saber quem é que tem poder para transferir custos para terceiros…

Pilhar

O jornalista Rui Peres Jorge faz um bom apanhado da recente opinião económica convencional sobre privatizações nas periferias europeias para chegar à conclusão que “as privatizações não resolvem a crise”. Aliás, a venda entusiástica dos bens estratégicos do país a preço de saldo revela bem a cumplicidade das nossas elites com um capitalismo de pilhagem com escala internacional. Como sublinha Eugénio Rosa, contrariando um discurso oficial cada vez mais aldrabão, trata-se de aprofundar a inserção dependente de Portugal e de canalizar cada vez mais recursos para o exterior.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Bifurcação

Em editorial do Público desta semana fazia-se uma defesa das euro-obrigações, ou seja, da emissão conjunta de dívida pública europeia, paga pelos Estados na medida das suas necessidades de financiamento. Estas necessidades estariam assim garantidas a taxas de juro substancialmente mais baixas, em especial para os países periféricos. O editorial opunha esta proposta à reestruturação da dívida, que inevitavelmente começará pela Grécia, em formato ainda por decidir, mas que, segundo o Financial Times de ontem, terá de significar uma redução para metade do peso da dívida grega no PIB (hoje nos 150% de um PIB em austeritária redução). Na realidade, estamos perante duas propostas complementares. A redução do montante da dívida, com perdas para credores demasiado gananciosos, recapitalização e aumento do controlo público dos bancos e substancial reforço do orçamento europeu, traduzindo a realidade das transferências orçamentais requeridas entre países neste contexto, seria acompanha por emissões de euro-obrigações, proposta hoje crescentemente partilhada por actores políticos da esquerda à direita, até um montante correspondente aos 60% do PIB para cada país, a regra de Maastricht para a dívida que serve de ponto focal mais ou menos arbitrário nestas discussões. No entanto, a emissão de euro-obrigações não significaria necessariamente o fim da austeridade com escala europeia. Para acabar com a economia de austeridade, seria preciso disponibilidade para dar um impulso público ao investimento nas pessoas, nas infra-estruturas públicas e na reconversão ambiental da economia europeia. Neste campo, a acção do Banco Europeu de Investimento, em versão reforçada, seria bastante útil. Na bifurcação europeia, ou vamos por aqui, com a necessária democratização das instituições europeias, onde se incluí um BCE com as prioridades mudadas, ou temos de começar a pensar a sério na nossa vida colectiva depois do euro.

Injustiça

O Ministro das Finanças tem razão num ponto: regista-se uma profunda "transformação estrutural" em Portugal. Disso faz parte uma alteração radical das relações sociais, em desfavor dos rendimentos do trabalho. Trata-se não apenas de uma rude desvalorização salarial mas também de desapossar os que trabalham de um lugar mais digno na economia e na sociedade. A forma desigual como esta sobretaxa se aplica, deixando de fora outros rendimentos (lucros, juros, ganhos financeiros) é, a este propósito, esclarecedora.

Desapossadas as pessoas, regressa a virtude à economia? Os liberais julgam que sim. Mas não parece. Gera-se mais e mais recessão, cria-se desconfiança e desânimo. E uma profunda sensação de injustiça...

Mas a regressão salarial tem relação com outro tema da conferência de imprensa: um plano de privatização intenso, com apelo aos capitais estrangeiros. Isto somado ao encolhimento rude do Estado nas suas funções sociais. É, de facto, uma profunda "transformação estrutural".

Acontece, no entanto, que Portugal, como economia periférica, está a ser alvo de uma manipulação agressiva a partir do exterior. É aí que está um problema estrutural decisivo. O mais difícil mas também o mais decisivo de todos. O que valem, nesse contexto, os sacrifícios rudes e desiguais que se impõem e o desapossamento da economia que se promove?


José Reis, Uma profunda sensação de injustiça, Público.

Claro como a água


Há alturas em que, não fosse as consequências serem tão dramáticas para a nossa economia e sociedade, quase agradeceríamos certos anúncios e medidas que tornam claro como a água do lado de que classe e de que interesses está o governo - e ajudam a afastar as ilusões que ainda possam ter os mais ingénuos (deve haver bastantes, visto que os elegeram):

Rendimentos do capital ficam isentos do imposto extraordinário - que é como quem diz, os trabalhadores e pensionistas que paguem a crise.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O Tratado de Lisboa é estruturalmente neoliberal

Diz-se frequentemente que a união monetária, que agora inclui 17 países, tem de ser mantida a bem do projeto europeu. Isto inclui ideais muito válidos, como a solidariedade europeia, a construção de padrões comuns para os direitos humanos e a inclusão social, a manutenção sob controlo dos nacionalismos de extrema-direita e, evidentemente, a integração económica e política subjacente a tal progresso. Mas isto confunde a união monetária, ou zona euro, com a própria União Europeia.

A Dinamarca, a Suécia e o Reino Unido, por exemplo, fazem parte da União Europeia mas não fazem parte da união monetária. Não há nenhuma razão para que o projeto europeu não prossiga e que a UE não prospere, sem o euro.

E há boas razões para esperar que seja isso que aconteça. O problema é que a união monetária, ao contrário da própria UE, é um ambíguo projeto de direita. Se isto não era claro no início, tornou-se agora completamente evidente, numa altura em que as economias mais fracas da zona euro estão a ser sujeitas a punições que antes estavam apenas reservadas para os países de baixo – e médio – rendimento, apanhados nas garras dos Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos líderes do G7. Em vez de tentarem sair da recessão através de estímulos fiscal ou/e monetário, como fez a maior parte dos governos do mundo em 2009, estes países estão a ser obrigados a fazer exatamente o contrário, com enormes custos sociais.


Vale a pena ler o artigo todo (aqui).

A estrada de Damasco

«Será que se pode levar um murro no estômago e ver a luz? Pelos Atos dos Apóstolos, sabemos que São Paulo, quando ainda se chamava Saulo e perseguia os cristãos, foi cegado por uma luz fortíssima que o fez cair do cavalo quando viajava na estrada para Damasco. Depois desse momento, mudou de nome e tornou-se no mais importante apóstolo da fé cristã que antes perseguia. Tudo pode acontecer. Sobretudo em Portugal. O que testemunhámos na última semana com o nosso Presidente da República foi um episódio de conversão digno de São Paulo na estrada de Damasco. Cavaco Silva dizia há poucos meses ainda que Portugal tinha de dar a outra face — “não vale a pena recriminar as agências de rating” foram as palavras usadas — agora, quando o governo é do seu partido e a Moody’s nos classifica como lixo, diz que elas “são uma ameaça”. Antes explicou-nos que “não podemos insultar os mercados, que são quem nos empresta o dinheiro”; agora anseia por expulsar os vendilhões do templo.»

(Do artigo de Rui Tavares, no Público de 11 de Julho)

E, contudo, a «luz» fortíssima era já visível, há muito tempo, na estrada de Damasco. Apenas a teimosia insane, alimentada por uma fé cega na liberdade dos mercados, por um espírito medíocre de subserviência e pela cruzada contra o Estado, impede que líderes como Cavaco Silva não percebam as restantes evidências que se desenham, há muito, na estrada de Damasco. Da manifesta inviabilidade da via austeritária, tomada como solução única e inevitável, às disfuncionalidades do modelo de governação económica europeia (com a subjugação do BCE à lógica dos mercados financeiros), passando pela incapacidade de reconhecer nas soluções políticas o único caminho viável para resgatar o sonho europeu, que se esfarela cada dia que passa às mãos de lideranças sem rasgo nem competência.

A recente entrevista de João Ferreira do Amaral a José Gomes Ferreira, no programa «Negócios da Semana» (que infelizmente não se encontra disponível na respectiva página), constitui neste sentido um excelente mapeamento das sinuosidades que desenham a estrada de Damasco, dando conta das principais questões que é preciso discutir para sair da crise. Seria este o debate em que deveriam estar concentrados os líderes europeus. Mas o mais provável é que apenas sejam obrigados a despertar do seu son(h)o ideológico quando o fracasso das opções em que insistem, e reincidem, não mais se possa ocultar perante a luz incandescente das evidências que o mundo real nos oferece a cada dia que passa.

Um verdadeiro murro no estômago

Iniciei uma coluna quinzenal no jornal i. A primeira termina assim:

As agências de notação estavam erradas quando exigiam austeridade aos governos das periferias da UE por terem défices e dívida pública elevados. Por isso, a Espanha e a Itália que se cuidem. Contudo, as razões agora invocadas pela Moody's para descer a notação do país são plausíveis e resumem-se em poucas palavras: a austeridade não resulta. Compreende-se a histeria do Presidente da República e dos arautos da doutrina neoliberal. Pela primeira vez, um actor do sistema financeiro internacional diz-lhes que vamos a caminho do abismo. É um verdadeiro "murro no estômago", como disse o primeiro-ministro, mas sobretudo para o bloco central dos economistas que professam uma teoria económica "da idade das trevas", para usar a sugestiva expressão de Paul Krugman.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Mais Europa à custa da democracia?

Para evitar a ruptura da zona euro têm sido avançadas várias propostas que fariam a UE dar os primeiros passos no sentido de uma união federal. Por exemplo esta:

A alternativa é perdoar a totalidade, ou a maior parte, da dívida pública grega (de qualquer modo é impossível pagá-la); recapitalizar os bancos alemães, franceses (e gregos); conceder à Grécia apoio suficiente para que possa realizar investimento público em infraestruturas num volume tal que arraste o investimento privado e reponha a saúde da sua economia. Se quiserem, este é o cenário “Plano Marshall”. Este plano poderia ser financiado por Euro-obrigações (proposta do Sr. Juncker), por financiamento directo do BCE, ou por uma taxa Tobin (ou por uma combinação destas três formas); assim, ‘o custo para o contribuinte europeu’ seria de menor importância.

Alternativas deste tipo serão de facto alternativas? As Euro-obrigações obrigam os países ricos a assumir a responsabilidade pelas dívidas de todos, pelo menos até certo ponto (por exemplo até 60% do PIB de cada país). O problema, para mim da maior importância, é que a mutualização da dívida dos estados não tem apoio político e, por isso mesmo, nunca foi proposta pelos partidos políticos desses países. Por outro lado, o financiamento através do BCE por criação de moeda poria em causa as condições exigidas pelos alemães quando aceitaram abandonar o marco.

Infelizmente, grande parte do que tem vindo a ser proposto para superar a presente crise assenta num pressuposto que me parece anti-democrático: admite-se que, sob a pressão da finança europeia que não quer suportar qualquer custo, e face ao alto risco de incumprimento dos países devedores, os governantes alemães, holandeses, austríacos e finlandeses acabarão por dar o passo federalista colocando os seus concidadãos perante o facto consumado. Para superar a crise temos de sacrificar a democracia?

Para reflectir sobre esta questão vale a pena ler este texto.

A retórica dos interesses

Como é maleável a retórica dos interesses dominantes. A tese de que os gastos públicos consomem recursos do sector privado que, se libertados, provocarão uma libertação das forças vivas da produção e crescimento económico era ainda há pouco tempo enunciado como verdade evidente por vastos sectores da direita política, apoiando-se na respeitável retórica da direita académica. Setenta anos depois da Grande Depressão, a generalidade da macroeconomia neoclássica tem mantido a lei de Say ligada ao ventilador, desencantando formas rebuscadas de continuar a alegar que toda a oferta gera a sua própria procura, que não há desemprego involuntário, que o conceito de procura agregada não tem fundamento e que a intervenção expansionista do estado é sempre contra-producente e iníqua. Do monetarismo dos anos 70 para a teoria dos ciclos económicos reais dos anos 80 em diante, houve até um retrocesso em termos de realismo, passando a rejeitar-se a mera possibilidade da política monetária (a orçamental fora já discartada) influir no nível de actividade económica e a alegar-se que todas as expansões e contracções são causadas por factores reais (novas tecnologias, chuvas intensas e outras coisas caídas do céu). Toda esta retórica dá imenso jeito em fases de relativa expansão de modo a defender a redução do papel expansivo e estabilizador do estado, não vá a proximidade do pleno emprego ter como consequência que os trabalhadores, menos pressionados pela realidade ou iminência do desemprego, comecem a alcançar direitos e aumentos salariais excessivos e a ter outras ideias mais ousadas. Já quando, como no contexto europeu e norte-americano actual, começa a tornar-se evidente que a procura tem de vir de algum lado e que a austeridade pública é mesmo recessiva, mas se pode argumentar que “tem que ser, pois a dívida é insustentável e o problema tem que ser resolvido assim”, a direita (em Portugal como nos EUA e noutros lados) esquece convenientemente a preocupação com a teoria económica e os convictos anúncios da morte de Keynes. Dispõe de uma retórica igualmente fictícia, mas mais eficaz.

(publicado simultaneamente no Portugal Uncut)

terça-feira, 12 de julho de 2011

Quem pode confiar?

Podemos identificar dois tipos de economistas: os que discutem os problemas da economia portuguesa no quadro da zona euro e dos seus disfuncionamentos e os que, monopolizando o debate público, fingem que o nosso país pode ser pensado de forma isolada, ou seja, no quadro de regras europeias que não querem questionar porque sabem que estas favorecem o seu discurso neoliberal. Assumido pelos austeritários do bloco central, incluindo um Cavaco que no seu discurso de tomada de posse não referiu uma única vez a questão europeia, o moralismo das finanças públicas é hipócrita e equivocado, para além de ser estreito.

Será que isto está desactualizado, agora que os moralistas económicos nacionais, os da instituição de uma economia crescentemente imoral, foram obrigados a começar a descobrir a União Europeia e o euro, indicando assim que não andaram a fazer mais nada este tempo todo do que pura propaganda, com a prestimosa colaboração de demasiados editorialistas, ao serviço de uma agenda política pouco recomendável? Talvez não esteja totalmente desactualizado, já que os moralistas ainda não desistiram da austeridade, a grande oportunidade para enfraquecer ainda mais posição do trabalho que se organiza e para desmontar o Estado social, à boleia de um processo bárbaro de tentativa de correcção conjuntural dos desequilíbrios externos através da destruição económica, o que diz tudo sobre a insustentabilidade deste euro.

Os moralistas falam de promoção da confiança empresarial, quando o investimento privado colapsa, impulsionado pelos sinais dados pelo público, e até de promoção da poupança, quando o peso do crédito malparado das familias, até aqui dos mais baixos na UE, aumenta, graças ao desemprego de massas permanente e à quebra dos rendimentos. Quem pode confiar?