«Será que se pode levar um murro no estômago e ver a luz? Pelos Atos dos Apóstolos, sabemos que São Paulo, quando ainda se chamava Saulo e perseguia os cristãos, foi cegado por uma luz fortíssima que o fez cair do cavalo quando viajava na estrada para Damasco. Depois desse momento, mudou de nome e tornou-se no mais importante apóstolo da fé cristã que antes perseguia. Tudo pode acontecer. Sobretudo em Portugal. O que testemunhámos na última semana com o nosso Presidente da República foi um episódio de conversão digno de São Paulo na estrada de Damasco. Cavaco Silva dizia há poucos meses ainda que Portugal tinha de dar a outra face — “não vale a pena recriminar as agências de rating” foram as palavras usadas — agora, quando o governo é do seu partido e a Moody’s nos classifica como lixo, diz que elas “são uma ameaça”. Antes explicou-nos que “não podemos insultar os mercados, que são quem nos empresta o dinheiro”; agora anseia por expulsar os vendilhões do templo.»
(Do artigo de Rui Tavares, no Público de 11 de Julho)
E, contudo, a «luz» fortíssima era já visível, há muito tempo, na estrada de Damasco. Apenas a teimosia insane, alimentada por uma fé cega na liberdade dos mercados, por um espírito medíocre de subserviência e pela cruzada contra o Estado, impede que líderes como Cavaco Silva não percebam as restantes evidências que se desenham, há muito, na estrada de Damasco. Da manifesta inviabilidade da via austeritária, tomada como solução única e inevitável, às disfuncionalidades do modelo de governação económica europeia (com a subjugação do BCE à lógica dos mercados financeiros), passando pela incapacidade de reconhecer nas soluções políticas o único caminho viável para resgatar o sonho europeu, que se esfarela cada dia que passa às mãos de lideranças sem rasgo nem competência.
A recente entrevista de João Ferreira do Amaral a José Gomes Ferreira, no programa «Negócios da Semana» (que infelizmente não se encontra disponível na respectiva página), constitui neste sentido um excelente mapeamento das sinuosidades que desenham a estrada de Damasco, dando conta das principais questões que é preciso discutir para sair da crise. Seria este o debate em que deveriam estar concentrados os líderes europeus. Mas o mais provável é que apenas sejam obrigados a despertar do seu son(h)o ideológico quando o fracasso das opções em que insistem, e reincidem, não mais se possa ocultar perante a luz incandescente das evidências que o mundo real nos oferece a cada dia que passa.
De acordo, caro Nuno. E obrigado pela extensão/distância que ganha relativamente à posição do Rui Tavares.
ResponderEliminarMas há uma outra extensão possível relativamente à sua linha de argumentação: nós, outros, é que temos de acordar do "sono dogmático" que diz que a "UE" é uma coisa fundamentalmente boa...
E se não fosse? E se não fosse defeito, mas feitio? E se quem esteve até agora mergulhado num profundo sono ideológico-dogmático fôssemos nós?
Como o sono ideológico-dogmático que nos garante, por exemplo, que em Portugal (e de resto na "UE") não existe censura?...
Caro João,
ResponderEliminarEssa é sempre uma boa questão, pois coloca a interrogação mais funda e permanente. Mas está muito para lá, parece-me, da discussão sobre as configurações possíveis. A ideia de Europa, nos seus traços mais gerais (um conjunto de países que entendem sublinhar e reforçar laços políticos, económicos, sociais e culturais que os unem) parece-me não estar em causa. Pode concordar-se, ou não, com semelhante processo. Mas dificilmente se pode afirmar que a trajectória seguida nos últimos anos (que contrasta aliás com a trajectória anterior, em que o princípio da coesão teve expressão prática) constitui uma inevitabilidade intrínseca.
O abandono desta opção suicida, os caminhos alternativos para a superar e restabelecer o «bom» rumo da construção europeia têm de resto sido amplamente apontados neste blogue. Aliás, o próprio Rui Tavares cuida também muito bem desse assunto no artigo citado, não deixando de assinalar as condições necessárias à mudança de rumo.
Duvido pois, mas interroguemo-nos sempre, que o actual problema da Europa seja um problema de feitio.
Um abraço,
Nuno