Como é maleável a retórica dos interesses dominantes. A tese de que os gastos públicos consomem recursos do sector privado que, se libertados, provocarão uma libertação das forças vivas da produção e crescimento económico era ainda há pouco tempo enunciado como verdade evidente por vastos sectores da direita política, apoiando-se na respeitável retórica da direita académica. Setenta anos depois da Grande Depressão, a generalidade da macroeconomia neoclássica tem mantido a lei de Say ligada ao ventilador, desencantando formas rebuscadas de continuar a alegar que toda a oferta gera a sua própria procura, que não há desemprego involuntário, que o conceito de procura agregada não tem fundamento e que a intervenção expansionista do estado é sempre contra-producente e iníqua. Do monetarismo dos anos 70 para a teoria dos ciclos económicos reais dos anos 80 em diante, houve até um retrocesso em termos de realismo, passando a rejeitar-se a mera possibilidade da política monetária (a orçamental fora já discartada) influir no nível de actividade económica e a alegar-se que todas as expansões e contracções são causadas por factores reais (novas tecnologias, chuvas intensas e outras coisas caídas do céu). Toda esta retórica dá imenso jeito em fases de relativa expansão de modo a defender a redução do papel expansivo e estabilizador do estado, não vá a proximidade do pleno emprego ter como consequência que os trabalhadores, menos pressionados pela realidade ou iminência do desemprego, comecem a alcançar direitos e aumentos salariais excessivos e a ter outras ideias mais ousadas. Já quando, como no contexto europeu e norte-americano actual, começa a tornar-se evidente que a procura tem de vir de algum lado e que a austeridade pública é mesmo recessiva, mas se pode argumentar que “tem que ser, pois a dívida é insustentável e o problema tem que ser resolvido assim”, a direita (em Portugal como nos EUA e noutros lados) esquece convenientemente a preocupação com a teoria económica e os convictos anúncios da morte de Keynes. Dispõe de uma retórica igualmente fictícia, mas mais eficaz.
(publicado simultaneamente no Portugal Uncut)
Muito bem.
ResponderEliminarMas é pena que muitas vezes a social-democracia se transforme num sistema de compadrio e injustiça entre o sector privado que paga impostos e o sector publico que os desbarata.
http://bilder-livros.blogspot.com/2011_07_01_archive.html
ResponderEliminarCaro Alexandre
ResponderEliminar1) Sim, tem razão. O discurso político dominante procede frequentemente através de sistemas de "oposições especulares" à maneira de Bachelard, um pouco como se cada registo fosse realmente a mera imagem em espelho do outro. É a alternância e a complementaridade, mais do que cada uma das imagens, que se trata fundamentalmente de captar e dilucidar.
2) A direita é geralmente muito mais realista nos seus juízos de oportunidade, sendo por isso por princípio anti-keynesiana, sim, mas por outro lado, se der jeito... Aliás, convém ter em atenção (embora a esquerda frequentemente o esqueça) que a política interna nunca está separada da política externa. Os fundamentos do "keynesianismo militar", já se sabe, residem precisamente nisso.
3) Coerentemente, a direita tende a ser "schmittiana" ou "decisionista" quanto à prática política (e tende pois a pensar no príncipe como "legisbus solutus"), enquanto reciprocamente, em matéria de direito constitucional, propende (por simetria) para as constituições "não-programáticas". Pode à primeira vista parecer que não, mas de facto faz o seu sentido...
4) O actual estado de coisas é, de qualquer forma, já tão dissoluto quanto a princípios doutrinários na área do "pântano central" que, em boa verdade, neste momento anything goes... Não se admire que apareçam por aí políticos realistas oficialmente de direita, talvez um pouco à Mira Amaral mas mais acentuadamente, muitíssimo mais sensatos (e selectivamente keynesianos, claro) do que o euro-bacoquismo do fundamental do nosso centro-esquerda, e mesmo de muita da nossa esquerda, até agora se tem permitido ser.
Em terra de cegos...
Isto significa que o crowding-out não existe?
ResponderEliminarWegie,
ResponderEliminarDigamos que se o contexto fosse de pleno emprego, haveria efectivamente crowding out (o qual, dependendo da qualidade da despesa pública, poderia ainda assim ser virtuoso do ponto de vista da sociedade e sobretudo dos trabalhadores e classes populares). Longe do pleno emprego, porém, o efeito é principalmente ao nível da estabilização e promoção do rendimento e emprego, não do aumento dos juros, redução do investimento privado ou aumento da inflação.
Tudo isto, claro, no quadro político e institucional actual - não são leis válidas para todo o sempre.
Felizmente a direita grega é mais lúcida
ResponderEliminarconseguiu o ccc a todo o vapor
brevemente conseguirá o D e o Drachma e a miséria que se segue
já não se fazem direitas à grega