segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Quem controla o quê?

Quando se quer reduzir o défice, nem sempre é uma boa ideia cortar o gasto público. Quando existe capacidade instalada ociosa, um programa de investimento público é produtivo, gera maior arrecadação, reduz a necessidade de endividamento.

Ler Alejandro Nadal: O governo controla o gasto, não o défice.

Economia para todos

Chama-se Economia para Todos e é um curso de Economia que terá lugar todas as terças-feiras de Março na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa. José Reis abre amanhã e eu fecho no fim do mês. O programa e outros detalhes estão no blogue desta iniciativa.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Universidade "Estado Mínimo, Crise Máxima"

Watch live video from forummanifesto on Justin.tv
Transmissão em Directo e Gravações aqui

UNIVERSIDADE DE PRIMAVERA DO FÓRUM MANIFESTO

Estado Mínimo, Crise Máxima

25 a 27 de Fevereiro, Ovar

PROGRAMA

25 de Fevereiro, Sexta 21H

Conferência de abertura: ‘Estado e Sociedade’

Luís Fazenda e José Manuel Pureza

26 de Fevereiro, Sábado

10h – 12h30

Sessão de trabalho – Serviço Nacional de Saúde

Aula: Pedro Ferreira – Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Mesa Redonda: com João Semedo

14h30 – 17h30 Sessão de trabalho – Educação

Aula: Manuel Sarmento – Universidade do Minho

Mesa Redonda: com Ana Drago e Maria José Araújo

18h

Mesa redonda ‘A nova esquerda e os novos na esquerda’

Com Hugo Ferreira, Gonçalo Monteiro, Pedro Feijó e José Miranda

Moderação de Daniel Oliveira

21h

Sessão de trabalho – Cultura

Com Catarina Martins

27 de Fevereiro, Domingo

10h – 12h30

Sessão de trabalho Segurança Social

Aula: Carvalho da Silva – Secretário-Geral da CGTP

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A austeridade é necessária para Portugal sair da crise?

Esta é a pergunta que o blogue Massa Monetária do Negócios nos colocou. Álvaro Santos Pereira diz que "A austeridade é necessária mas não é suficiente". "Austeridade permanente? Não, obrigado", digo eu.

As ideias são uma força material...



"A autoridade, uma construção intensamente social, sobrepõe-se aos factos quando a correlação de forças é desfavorável à reforma. Os simples factos, mesmo que sejam factos no valor de 2 biliões de dólares, raramente vencem uma boa ideologia." O economista político Mark Blyth tem uma interessante reflexão no blogue Triple Crisis sobre a ausência de mudança no paradigma económico dominante. Blyth está bem posicionado para o fazer. Afinal de contas, trata-se do autor de um dos melhores livros que já li sobre a interacção entre as ideias e as transformações institucionais em contexto de crise económica: Great Transformations.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Tudo na mesma?

Vale a pena ler o informativo artigo de Mariana Santos sobre as reformas na arquitectura económica europeia: No fundo, tudo na mESMA. Não percebo por que é que a imprensa continua a referir-se ao fundo europeu de estabilidade financeira como uma “ajuda externa”. Repito: trata-se, na ausência de mudanças inesperadas na configuração do fundo, de garantir a estabilidade dos investimentos do sector financeiro do centro nas periferias à custa das classes populares. Mas não é verdade que será o governo português a escolher activar o fundo? O facto de se escolher não quer dizer necessariamente que se aceita uma estrutura que só gera opções trágicas. De qualquer forma, a política com p pequeno é mesmo a política nacional que não põe em causa esta insustentável estrutura europeia. É a política da dependência, a política da “ajuda”.

Governar para a estatística (III)

Na linha da fixação de metas quantitativas como finalidade de política, que se tornou moda na UE, o governo português impôs a si mesmo um objectivo adicional: atingir um nível de exportações equivalente a 40% do PIB até 2020.

Não questiono a pertinência do tema: como aqui afirmei, a prioridade atribuída aos sectores transaccionáveis é uma boa intenção, que só peca por vir com 20 anos de atraso. Mas a fixação de uma meta artificial contém a mesma falta de racionalidade e riscos de efeitos perversos que as metas orçamentais ou de I&D.

A meta não é racional por três motivos principais: primeiro, ela não reflecte o que importa verdadeiramente medir – o valor acrescentado – ignorando que algumas importantes exportações correspondem a actividades fortemente importadoras, que deixam pouco rendimento em Portugal; em segundo lugar, o valor das exportações portuguesas depende menos da capacidade competitiva das empresas portuguesas do que da evolução dos preços nos mercados internacionais (não é por acaso que os produtos que mais contribuíram para o crescimento das exportações portuguesas na última década foram as matérias-primas e energéticas: a procura das economias emergentes e os eventos especulativos trataram de puxar para cima os preços desses bens, contribuindo para aumentar o valor das exportações… mas também das importações, pelo que a deterioração da balança comercial prosseguiu); em terceiro lugar, nos próximos dez anos o valor cambial do euro (que Portugal não controla) será muito mais relevante para o desempenho exportador do que os esforços internos.

Ou seja, se em 2020 atingirmos a nova meta para as exportações, isso pouco nos dirá acerca do reforço da competitividade externa das empresas domésticas – e ainda menos sobre a sustentabilidade da economia portuguesa. Não obstante, se se levar a sério aquela meta, iremos assistir ao longo da próxima década a fenómenos como a promoção de investimentos (nacionais e estrangeiros) de reduzida qualidade desde que em actividades fortemente exportadoras; a canalização dos apoios públicos para a produção de bens e serviços para exportação, mesmo que de baixo valor acrescentado e emprego criado; e, claro está, muita contabilidade criativa por parte de empresas que irão mascarar-se do que for preciso para acorrer aos dinheiros públicos.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O Elefante na sala


"Não são só os alemães. É espantoso como toda esta crise foi orçamentalizada [fiscalized, no inglês]; Os défices, que são de forma esmagadora, um resultado da crise, foram retroactivamente considerados a causa. E ao mesmo tempo, pessoas influentes em todo o Mundo agarraram-se à ideia de austeridade expansionista, tornando-se cada vez mais determinadas na sua defesa enquanto a alegada evidência histórica se desmoronou."

Paul Krugman

É de facto espantoso que se esqueça que os problemas orçamentais são o resultado da crise. Não apenas da crise, mas sobretudo da crise. Quanto mais não seja, porque se agravaram decisivamente depois. Só não é tão espantoso por ser uma narrativa que tem óbvias conveniências em termos da agenda política liberal. Para já, porque permite atirar para segundo plano, quer a desregulação dos mercados financeiros que provocou a crise, quer as assimetrias na construção europeia que lhe potenciaram o impacto. Mas também porque, se aceitamos que o que criou toda esta situação foi um surto despesista, então nada como cortar a eito para resolver o problema. E onde é que se corta? Nas políticas públicas.

Tudo depende de nós.



O Governo corre contra o tempo. Procura desesperadamente obter financiamento fora do “mercado”. Mas a autonomia financeira para alguns meses de pouco servirá. O BCE tem nas mãos o financiamento dos bancos portugueses e, por conseguinte, tem o poder de precipitar a qualquer momento o telefonema que o Primeiro-Ministro fará a pedir ajuda a Bruxelas.

Uma vez que Angela Merkel não tem margem de manobra para aceitar um acordo sobre o Fundo de Estabilização que abra a porta à mutualização da dívida dos Estados-Membros, começa a ficar claro que não só vamos ter de aceitar um empréstimo em condições gravosas (taxa de juro incomportável, austeridade selvagem, degradação adicional do Estado social), como nem sequer serão tomadas decisões que acabem com a especulação contra o euro. Arrumado Portugal, segue-se a Espanha.

Tudo indica que a Eurozona está presa do discurso populista contra os “países despesistas” da periferia da União, um discurso com grande aceitação junto das classes populares dos países ricos do centro que há muito estão sujeitas à política de “moderação salarial”, com deslocalizações da indústria e cortes no Estado social, para responder à pressão competitiva da globalização sem freio. De pouco importa que o problema da dívida soberana seja sobretudo o resultado da especulação financeira desenfreada e dos inevitáveis desequilíbrios macroeconómicos entre países de muito desigual nível de desenvolvimento integrados numa zona monetária sem integração política. O que importa é que a narrativa neoliberal é hegemónica nos meios de comunicação social.

Muito provavelmente pela mão do PSD, os Portugueses terão de suportar uma deflação (austeridade selvagem no Estado, privatização de sectores do Estado social, redução dos salários também no sector privado) imposta por Bruxelas e mais que desejada pelos "falcões" do PSD. É uma fatalidade? Não, não é. Está nas mãos dos cidadãos portugueses dizer NÃO por (pelo menos) três grandes razões: 1) Com uma deflação não conseguiremos pagar as dívidas, como os exemplos da Grécia e Irlanda sugerem; 2) Os bancos alemães, franceses e outros tinham obrigação de avaliar melhor a sustentabilidade do crédito que concederam anos a fio, sabendo muito bem que o país não tinha capacidade competitiva para crescer e permanecer solvente; 3) Quem deve pagar a crise deve ser quem mais beneficiou das suas causas, as classes de mais elevados rendimentos e a finança.

E então? Se nos mobilizarmos como os cidadãos do outro lado do Mediterrâneo, podemos eleger um governo que atenda a estas razões, um governo que reestruture a dívida pública e promova uma política de crescimento apoiada por uma fiscalidade corajosamente progressista. Ao fim de um ano teríamos um crescimento que nos daria força negocial para negociar a reestruturação da dívida para um montante e calendário suportáveis. E teríamos posto Bruxelas no seu lugar. Mais importante, teríamos evitado um desastre social e estaríamos em melhores condições para exigir algumas derrogações aos Tratados que possibilitem políticas de desenvolvimento industrial (política orçamental activa, política industrial, discriminação fiscal para a produção de bens transaccionáveis).

Tudo depende de nós.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

As Entorses do Pensamento


Os números da Execução Orçamental estão a originar um concurso de contorcionismo entre o Governo e a Direita. É bastante comum que toda a gente pegue pelo lado que mais lhe agrada e isso faz parte da política.

Acontece que os números de Janeiro deste ano se prestam particularmente a excessos de interpretação, sobretudo no que diz respeito à Receita. Sendo números relativos ao primeiro mês de um ano em que entram em vigor várias alterações fiscais por comparação com um ano que teve alterações fiscais a meio. Assim, há que ter em conta que:

1. Os dados de Janeiro de 2011 comparam com Janeiro de 2010, o que significa que expressam as alterações fiscais do OE2011 (IVA) e ainda as do PEC (IRS, IRC e mais IVA). Assim sendo, as variações homólogas de Janeiro nunca seriam uma boa medida do ajustamento no final do ano, já que o segundo trimestre comparará com meses em que já vigorava o PEC II.

2. O aumento da receita fiscal de 350 inclui 50 que dizem respeito à amnistia fiscal para repatriamento de capitais (a segunda deste Governo, que quer mostrar que quem deve, não tem nada a temer);

3. Os resultados são ainda influenciados de forma anormal pela entrada em Janeiro de receitas tributárias relativas a dividendos distribuídos que foram antecipados para o final de 2010, para evitar as novas regras de tributação.

4. Assim, os resultados da receita são marcados fundamentalmente por um aumento extraordinário de 125 milhões do IRC (amnistia e dividendos), 76 milhões de IRS (reflexo do aumento do IRS do PEC) e 60 milhões do IVA (+3p.p. do que em Janeiro do ano passado).

O Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, provavelmente por ser incapaz de fazer as figuras que faz o nosso Primeiro-Ministro, lá reconheceu que este arranque se diluirá ao longo do exercício. Com efeito, o que uma análise mais cuidada dos dados mostra é que não é possível extrapolar estes números para o conjunto do exercício. Nem na sua dimensão, nem no contributo relativo das várias componentes.

Há uma coisa, no entanto, que é muito evidente. Com o país novamente em recessão e com a diminuição drástica dos impostos que irão ser pagos pela banca, quem vai suportar o ajustamento orçamental são aqueles sobre quem irá incidir o aumento do IVA e do IRS e os cortes salariais e das prestações sociais, que são as duas variáveis que contribuíram para a contenção da despesa.

O que Sócrates considera muito positivo é um processo de expropriação dos expropriados do costume, num contexto que voltou a ser de recessão económica.

Querem pior?

A resposta da Direita é que o problema é o ajustamento ser feito do lado da receita. Só é pena não completar o raciocínio. Se não é pelo lado da Receita, é por onde? É que o desajustamento orçamental foi pelo lado da Receita, como se pode ver pelos dados das Contas Gerais do Estado (2008-2009):



O que a Direita propõe é que um desajustamento orçamental, criado pela quebra de receita decorrente da crise económica, seja corrigido através da despesa. Certamente que muito haverá a cortar em desperdícios mas, entendamo-nos bem, um ajustamento orçamental desta magnitude, ou se faz com crescimento e uma reforma fiscal corajosa, ou se faz com cortes nos serviços públicos, investimento público e prestações sociais e mais impostos para os mesmos. O Governo e o PSD fizeram as suas escolhas. Infelizmente, são demasiado parecidas.

Governar para a estatística (II)

A UE não se contentou com impor critérios arbitrários e contraproducentes no domínio das práticas orçamentais. A 'Estratégia de Lisboa', lançada em 2000, trouxe as inúmeras ‘metas de Lisboa’, a mais simbólica das quais consiste em atingir um nível de despesas em actividades de investigação e desenvolvimento (I&D) equivalente a 3% do PIB (parece haver na UE uma obsessão por este número).

Houve, desde o início, quem tenha chamado a atenção para o facto de as despesas em I&D dependerem fortemente da estrutura produtiva e de dimensão das empresas: só países sobreespecializados em sectores produtivos directamente baseados em conhecimento científico, e com uma forte presença de empresas de muito grandes dimensões, atingem intensidades de despesas em I&D tão elevadas.

Dez anos depois foram raros os países que atingiram aquela meta. Mas pelo caminho todos tentaram, com efeitos nem sempre acertados: prioridade dos apoios públicos para actividades intensivas em I&D, independentemente do seu contributo para o emprego e o produto, ou da sua relevância estratégica; fomento da oferta de recursos humanos e de actividades (públicas e privadas) intensivas em I&D, independentemente da capacidade de absorção do tecido produtivo (ou do sistema científico); e, como sempre, muita contabilidade criativa - no caso das metas orçamentais ainda há quem se apoquente com as práticas de contabilidade criativa, aqui nem isso é verdade (haverá mesmo quem acredite que as despesas empresariais com I&D em Portugal aumentaram de 0,31% do PIB em 2005 para 0,8% em 2009 em resultado de um excepcional ritmo de transformação estrutural?).

Mas como a moda tarda em passar, a nova 'Estratégia Europa 2020' insiste em manter intacta a meta dos 3% de despesas em I&D sobre o PIB. A falta de racionalidade e os riscos de efeitos preversos continuam a não ser uma preocupação fundamental - o fetichismo do número sobrepõe-se, uma vez mais.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A estrutura do desemprego

O processo de financeirização das economias capitalistas maduras, ou seja, o processo de aumento da importância dos agentes, mercados e motivos financeiros foi a principal transformação engendrada pela liberalização económica a partir da década de oitenta. O domínio do capital financeiro que circula sem entraves e o regime de política económica que lhe está associado à escala europeia têm gerado uma oscilação entre crises financeiras e económicas e níveis de crescimento medíocre. O poder e as exigências de um capital cada vez mais impaciente traduziram-se dentro da empresa numa aliança entre accionistas e gestores de topo para extrair bónus e dividendos à custa do esforço da esmagadora maioria dos trabalhadores, reduzidos a um mero custo a economizar. Isto tem gerado, à escala europeia, uma quebra dos rendimentos do trabalho a favor dos rendimentos do capital, um aumento das desigualdades salariais, uma quebra do investimento criador de capacidade produtiva adicional e um correspondente aumento do desemprego. Os crescentes lucros têm sido precisamente apropriados, sob a forma de dividendos, pelos impacientes accionistas com cada vez mais poder perante uma grande massa de trabalhadores cada vez mais desprotegida. Temos também assistido, à escala europeia e mundial, a desequilíbrios insustentáveis nas relações internacionais: modelos nacionais assentes no endividamento, que, em alguns casos, compensou temporariamente os efeitos negativos da estagnação salarial e do investimento na procura, tendo como contrapartida modelos exportadores agressivos, assentes na compressão salarial permanente e cujos excedentes são reciclados, mal reciclados, por mercados financeiros especializados em gerar bolhas. O aumento da presença e do controlo públicos do crédito ou a taxação das transacções financeiras são hoje a melhor forma de começar a responder, no campo das propostas, a esta desastrosa hegemonia do capital financeiro. Só quebrando-a é que podemos voltar a pensar num regime de pleno emprego, tal como vigorou antes da instituição de um regime dominado pela finança de mercado que tão bem servido uma minoria.

Marx, não Malthus


A propósito da actual crise dos preços dos alimentos, argumenta-se por vezes (inclusive nas nossas caixas de comentários) que esta mais não é do que um reflexo das condições da oferta e da procura no longo prazo. Segundo esta linha de raciocínio neo-malthusiana, o aumento dos preços dos alimentos é algo de inevitável dada a finitude dos recursos do planeta e o crescimento inexorável da população mundial. A actual crise – com todas as repercussões a que já estamos a assistir ao nível da incidência de fome e da emergência de conflitos - seria apenas a pálida antecipação de um futuro apocalíptico em que a humanidade finalmente pagará o preço da sua incontrolável prolificidade.

Acontece que esta linha de raciocínio é falsa. Primeiro que tudo, o crescimento da população não é inexorável. Embora a população mundial deva continuar a crescer durante ainda mais algumas décadas em resultado da inércia demográfica, é hoje em dia praticamente certo que a queda abrupta da fecundidade a nível mundial (sim, inclundo nos países em desenvolvimento, onde o número médio de filhos por mulher passou de seis para três nos últimos quarenta anos) deverá garantir a inversão da tendência de crescimento na segunda metade do século XXI.

Em segundo lugar, e mais importante, a produção alimentar mundial também tem crescido – na verdade, mais depressa do que a população. O gráfico em cima, construído a partir de dados da FAO, ilustra o crescimento da produção total mundial de arroz, milho e trigo (a título de exemplo) entre 1961 e 2009. Dividindo pela população mundial em cada ano, verificamos que a produção anual per capita de arroz passou de 70kg em 1961 para 99kg em 2009; a de milho de 67kg para 120kg; e a de trigo de 72kg para 100kg.

Nem a fome e desnutrição a nível mundial, nem a crise dos preços dos alimentos se devem à escassez actual ou futura de alimentos. A actual crise dos preços dos alimentos resulta principalmente da amplificação especulativa de flutuações de curto prazo e não tem nada a ver com a tendência de longo prazo ao nível da produção per capita de alimentos. Quanto à fome e à desnutrição globais, resultam, mais do que de qualquer outra coisa, do facto do acesso à alimentação por parte de uma parte crescente da população mundial ser mediada pelo mercado, no contexto de uma distribuição do rendimento extremamente desigual e iníqua.

Mas para entender melhor estas últimas questões, as categorias de análise mais úteis são as de um outro economista clássico que não Malthus…

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Governar para a estatística (I)

A moda das metas quantitativas como bitola das políticas públicas veio para ficar.

A União Europeia vem revelando uma particular afeição por esta abordagem. Com o Tratado de Maastricht, em 1992, fixou cinco metas para a chamada convergência nominal, cujo cumprimento determinaria a decisão de integração de um país na moeda única. Duas dessas metas – os 3% do PIB para o défice orçamental e 60% do PIB para a dívida pública – passariam a ser parte integrante da arquitectura de gestão macroeconómica do euro. Desde o início, muitos alertaram para a fraca racionalidade e os riscos de efeitos perversos que tais metas artificiais criaram. Não foi preciso esperar muito: privatizações a preço de saldo, redução do investimento público e contabilidade nacional criativa passaram a ser parte do quotidiano da zona euro desde então. Quando chegou a crise da dívida soberana do pós-subprime tornou-se um pouco mais claro que estas práticas têm pouco a ver com a estabilidade financeira e a sustentabilidade das finanças públicas.

Eu disse?

Fiquei chocado ao ler na Pública de hoje um título assim: “Não gostam do mundo tal como é? Pois bem, a alternativa é a distopia totalitária, o comando da sociedade por um tirano, ou um computador, diz o economista José Castro Caldas”. Que horror. Eu disse isto?

Não, não disse. Felizmente ainda tenho o texto que mandei para o Público e que alguém que fabrica títulos, e eu não sei que é, resolveu manipular.

Já agora, aqui está o que realmente disse depois de ter visto o tal filme de um tal movimento Zeitgeist.

“Não sabia o que era o movimento Zeitgeist quando fui ver o filme de mais de duas horas e meia que está disponível numa página portuguesa desse movimento. Comecei de mente aberta, com interesse, depois passei à perplexidade. No fim estava indignado.
Em primeiro lugar o interesse: no prelúdio, uma história bem contada sobre o que se aprende jogando ao Monopólio em pequenino; depois, um conjunto de entrevistas a neurocientistas e biólogos com uma crítica dos determinismos genéticos, que me pareceu informada, e uma boa caracterização do ambiente físico e social na activação de disposições latentes e de mutações; por fim, uma abordagem já não tão informada, mas mesmo assim relativamente séria, da “economia mercantil monetarizada”, isto é, do capitalismo, acompanhada de uma caracterização das suas disfunções mais dramáticas na sua fase financiarizada. Nada de particularmente novo, mas mesmo assim, não é todos os dias que se ouvem estas coisas na TV.
Em segundo lugar, a perplexidade: chegados ao momento das alternativas, surge subitamente uma personagem alucinada que parece ser o guru do movimento, descrevendo o mundo “como deve ser”. Era um mundo com a “ciência” e “a tecnologia” no comando. Com recursos identificados à escala global e centros de produção optimamente localizados, com volumes de produção calculados a partir de necessidades humanas claramente quantificadas, com trabalho humano substituído por robots, tudo isto comandado por um supercomputador que realizava os cálculos que nenhuma mente humana isolada, ou conjunto de mentes humanas, é capaz de efectuar. Na escala micro, cidades (falanstérios) em que o lugar do Forum era ocupado de novo por um supercomputador que geria a colmeia.
Por fim a indignação: aqui está, com roupagens revolucionárias, uma encenação quase-perfeita da crítica ultra-liberal a tudo o que queira romper com o status quo. Não gostam do mundo tal como ele é? Pois bem, a alternativa é a distopia totalitária. O comando da sociedade por um tirano, ou um computador. Querem mudar as coisas nem que seja um pouco? Não vale a pena, qualquer passo é um avanço no plano inclinado que leva ao totalitarismo.
Se não é esta intenção do filme, não poderia parecer mais. Até pela estética que utiliza – saída de um estúdio de filmes publicitários – o filme parece ser um produto deliberadamente concebido para desacreditar a genuína crítica da “economia mercantil monetarizada” e desencorajar o esforço criativo de mudança. Zeitgeist? Que será isso? Continuo sem saber, mas a avaliar pelo filme parece-me gato por lebre.”

2003: o ano em que o Estado se endividou a mais de 10%


Face ao mais que credível cenário da insustentabilidade da dívida pública portuguesa, já aqui temos argumentado pela necessidade de a reestruturar. Encetar este processo quanto antes pouparia aos portugueses anos de austeridade e recessão inglórias e, sobretudo se num esforço conjunto com os outros países periféricos, colocaria Portugal numa posição de maior força face aos nossos principais credores (os bancos alemães e franceses). Também já aqui argumentei pela necessidade de uma auditoria independente à dívida pública que torne todo este processo transparente e conduzido segundos os nossos interesses, tendo assim acesso à informação sobre a forma como nos endividámos, em que termos e com que propósitos. Um processo que abriria o caminho à discussão sobre a legalidade, legitimidade e sustentabilidade da dívida, ao mesmo tempo que contribuiria certamente para que este tipo de processos se guiasse por normas e práticas mais transparentes e democráticas no futuro.

Um bom exemplo do possível trabalho que uma comissão de auditoria poderia escrutinar é o caso, razoavelmente bem conhecido, da venda de créditos fiscais e da segurança social ao Citigroup em 2003, liderada por Manuela Ferreira Leite. Esta foi uma operação ruinosa de antecipação de receitas fiscais (contabilizadas como receitas extraordinárias), que, segundo a estimativas do IDEFE (entidade avaliadora do negócio) nessa altura, significou, na prática, um endividamento de 1,765 mil milhões de euros do Estado português a mais de 10% de taxa de juro a dez anos (a taxa actual é de 7,5%). A operação é complicada e vale mesmo a pena ler o excelente trabalho do jornalista João Ramos de Almeida (aqui e aqui), feito numa altura em que os jornais generalistas ainda tinham bons suplementos de economia.

Contudo, o que é mais interessante é a escolha de financiamento em 2003. O Estado podia ter-se endividado nos mesmos montantes nos mercados de capitais a 4,375%, menos de metade do preço. Ou seja, estamos perante um negócio opaco e ruinoso, sem qualquer benefício para os portugueses e que só contribuiu para a aldrabar as contas orçamentais do Governo de então. Legítimo?

(agradecimentos à Eugénia Pires que me chamou a atenção para este negócio)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Consequências da hegemonia

Publicado em 2003, este livro reúne contributos de economia política crítica da configuração neoliberal da integração europeia. A conclusão de Alan Cafruny é actual. Deixo alguns excertos traduzidos: “A quase ausência de um orçamento comunitário não permite políticas redistributivas com o alcance necessário para minimizar o desenvolvimento desigual, compensando as economias mais fracas que perderam o instrumento da desvalorização cambial (...) O problema da debilidade da procura é central para explicar os problemas económicos da Europa na última década. A não ser que o orçamento da União aumente substancialmente e que seja desenvolvida uma política orçamental europeia, as realidades do desenvolvimento desigual a nível nacional ameaçarão, mais tarde ou mais cedo, a estabilidade do mercado interno e limitarão a coesão da classe capitalista transnacional europeia (...) Se a presente trajectória de crescimento baixo e de desemprego de massas continuar, o conflito sobre os termos da união monetária intensificar-se-á (...) O capital europeu não tem sido bem servido pela rendição condicional do trabalho: a ausência de pressões sociais que sirvam de freio não gera os incentivos para que o capital transcenda os seus interesses de curto prazo e estabeleça instituições regionais que possam sustentar a estabilidade social e a autonomia monetária. Na ausência destas instituições, a Europa neoliberal está condenada a confrontar-se com uma combinação de racionalidade de mercado e de nacionalismo ressurgente que se reforçam mutuamente.”

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Desunião

Maria João Rodrigues, antiga ministra do Emprego de António Guterres e conselheira especial da União Europeia, lançou hoje um forte apelo ao Governo português para que rapidamente “mobilize todos os recursos diplomáticos” e os “aliados” de Portugal na União Europeia para combater a corrente “bem organizada” que encara a contenção orçamental e um maior aumento da competitividade à custa da redução dos salários na periferia como a única saída para a actual crise na Zona Euro.

Mais detalhes aqui. É caso para dizer que mais vale tarde do que nunca. Será que Sócrates continuará a apodar de "histórica" toda a cimeira europeia que reforça este desastre periférico?

Crítica do Pacto de Competitividade


"A procura da competitividade a qualquer preço pode tornar-se contraproducente se for baseada na redução dos salários em vez dos aumentos da produtividade. Por um lado, os ganhos em termos de quotas de mercado que ela permitiria fazem-se necessariamente à custa dos parceiros comerciais mais próximos, o que não é recomendável como modelo de crescimento para uma zona económica integrada como a zona euro.

Por outro lado, os ganhos de competitividade que resultam de uma moderação salarial reduzem o consumo das famílias, retirando ao crescimento um motor essencial, sobretudo quando este tipo de estratégia é seguido por um grande país [ver gráfico].

A inserção dos países da zona euro no comércio internacional é certamente um elemento-chave do crescimento, mas ela será mais eficaz se for suportada por uma política de inovação activa e coordenada em vez de uma espiral de baixa dos salários."

[Carta do OFCE, aqui]

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Bruxelas em estado de choque

É preciso ler um jornal irlandês para ficarmos a saber como reagiu a liderança neoliberal europeia ao programa e à campanha eleitoral do principal partido da oposição na Irlanda, o Fine Gael. Se passar a chefiar o governo como indicam as sondagens, o Fine Gael (centro-direita) quer que Bruxelas reduza substancialmente a taxa de juro da "ajuda" que recebeu do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (em média 5,8%) e, se tal não for concedido a curto prazo, decidirá unilateralmente uma reestruturação da dívida de dois bancos que foram nacionalizados e afundaram as finanças públicas da Irlanda. Tal "corte" atingiria em cheio bancos ingleses e alemães. Chocante!

É uma forma de lidar com a austeridade selvagem imposta por Angela Merkel que devia fazer reflectir os restantes países da periferia da UE. Mas parece que por cá se prefere a diplomacia do "bom aluno" para ir à boleia do que se vier a decidir sobre o Fundo e as condições impostas à desesperada Irlanda. Em vez da acção concertada da periferia, temos o "cada um por si". O pior dos cenários.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Acrescentos e precisões


Numa posta que escrevi há tempos, toquei algo superficialmente numa série de temas relacionados com o desenvolvimento internacional. Por uma questão de clareza e rigor, quero agora regressar com um pouco mais de profundidade a dois ou três aspectos que então referi.

O primeiro é o ‘mapa distorcido’ novamente reproduzido em cima, que retirei de www.worldmapper.org e apresentei na altura como representando a distribuição mundial da riqueza em 2002. Cometi aí uma imprecisão, aliás algo grosseira. Primeiro que tudo, porque o que aqui está representado é o produto (variável de fluxo) e não a riqueza (variável de stock). Em segundo lugar, e mais importante, porque o mapa ilustra bem a desigualdade entre países e continentes, mas não tem em conta a desigualdade dentro de cada país, ou no seio da população mundial como um todo. Falta a componente inter-individual da desigualdade, que decorre principalmente da posição de classe. Por confrangedor que seja, o mapa representa apenas uma parte da desigualdade global – a realidade é bastante pior.

A segunda questão tem a ver com a defesa da remoção das quotas e tarifas no acesso ao mercado norte-americano e europeu por parte das exportações originárias dos países menos desenvolvidos. Não se trata aqui de um argumento geral em favor do comércio desregulado. O comércio “livre” é o proteccionismo dos poderosos: dadas as enormes diferenças ao nivel da dotação infraestrutural e do controlo político e tecnológico sobre os processos produtivos monopolistas e quase-monopolistas, a desregulação contribui para a desestruturação da produção nos países mais pobres, para o aprofundamento da desigualdade e para a instabilidade global. Isso é tanto mais perverso quanto se trate de produtos essenciais, como os alimentos, em relação aos quais a soberania produtiva é mais importante do que a suposta “eficiência global”. Dito isto, defender a abolição de barreiras proteccionistas no caso específico do acesso aos mercados do Norte por parte dos exportadores do Sul é defender a remoção de um dos mecanismos que aprofundam a desigualdade e o desequilíbrio. O aumento das receitas de exportações dos países do Sul não reverte automaticamente para os respectivos assalariados ou camponeses, como é óbvio – mas permite potenciar as dinâmicas de acumulação nesses países e isso, se acompanhado por suficientes sucessos ao nível da luta pela repartição dos benefícios, constitui um progresso em termos globais.

A terceira precisão tem a ver com a defesa de uma política migratória mais progressista através da "concessão de um contingente extraordinário de vistos a migrantes oriundos de países vítimas de catástrofes". É certo que, como referi na altura, esta medida constitui apenas um avanço meramente simbólico. Entendamo-nos: os fluxos migratórios auto-regulam-se, sendo determinados na sua maior parte pela procura (ou seja, pelos empregadores) no contexto de mercados de trabalho que são, sempre, segmentados e socialmente incrustados; tipicamente, políticas migratórias mais restritivas têm como único resultado que os mesmos fluxos passam a ter um carácter irregular, com todas as desvantagens que daí advêm para todos os trabalhadores (nacionais e imigrantes); e, consequentemente, a posição progressista em relação à política migratória tem necessariamente de passar pela sua completa liberalização, ainda que enquadrada pelo planeamento. Dito isto, mesmo um avanço tímido como o que é atrás referido poderia, e poderá, constituir um progresso efectivo, na medida em que reflicta e contribua para a progressiva tomada de consciência de que: (i) a possibilidade de migração constitui uma das vias mais eficazes para a melhoria da situação dos migrantes, das suas famílias e, em certas circunstâncias, das suas comunidades; e (ii) o regime internacional de restrição da liberdade de movimentos e de instalação em que hoje vivemos (e que muitos consideram natural e inevitável) é nada mais nada menos do que um apartheid global, que urge desconstruir e abolir. Foi possível na África do Sul e quase todos festejámos. Façamo-lo agora à escala mundial.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Entreter a pobreza

Uma decisão conjunta da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu estabeleceu 2010 como o Ano Europeu de Luta contra a Pobreza e a Exclusão Social. Exacto, 2010, um ano em grande para a agenda política das soluções recessivas à escala europeia. O ano do Cavalo de Tróia, em que o imperativo de combate ao défice nos países periféricos estabeleceu escrupulosamente as regras da batalha: cortar nas despesas sociais e nos salários, deixando a salvo os interesses financeiros, a economia especulativa, a espiral do endividamento privado e a injustiça fiscal.

Seguindo as orientações da própria iniciativa comunitária, tratou-se essencialmente de "responsabilizar e mobilizar o conjunto da sociedade", descentrando das instâncias estatais a responsabilidade colectiva no combate à exclusão social. Nada de contraditório, portanto, com o rumo austeritarista definido: conter o défice cerceando as funções sociais do Estado, sacrificando as classes com menores recursos e transmutando a lógica de direitos estabelecidos numa difusa e incerta responsabilidade da sociedade no seu todo, sem explicitamente configurar, atribuir ou firmar qualquer espécie de compromisso.

Vale a pena espreitar o conjunto de iniciativas que preencheram, entre nós, a "celebração" do Ano Europeu de combate à Pobreza e Exclusão Social (AECPES) e que consumiram, aparentemente de modo exaustivo, os cerca de 700 mil euros orçamentados. São essencialmente conferências, debates, mostras e colóquios. Que envolveram sobretudo pessoas e instituições conhecedoras dos contornos da pobreza e da exclusão. Parole, parole, parole. À perplexidade que fomos sentindo ao ver os spots publicitários, a intercalar as notícias sobre os PECs e os cortes sociais, junta-se este confrangedor balanço (sobretudo no confronto com que um ano assim deveria significar). Na página portuguesa do AECPES figura a tshirt aqui ao lado. Não, não precisam fazer um desenho, já percebemos tudo.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O socialismo europeu de Vital Moreira

[Figura extraída deste relatório]

Poul Nyrup Rasmussen, presidente do grupo parlamentar dos socialistas europeus, veio a público rejeitar o Pacto de Competitividade proposto por Angela Merkel e Nicolas Sarkozy. Vital Moreira (VM) ficou chocado e, segundo a folha electrónica dos socialistas portugueses no Parlamento Europeu (aqui), tomou as dores por essa proposta:

Intervindo na reunião do Grupo Socialista do Parlamento Europeu esta semana, em Bruxelas, Vital Moreira pronunciou-se no sentido de que o Grupo não deve adoptar posições críticas que ponham em risco o reforço e a flexibilização do "fundo de estabilidade do euro", visto que este é essencial para dar confiança aos mercados e para aliviar a pressão sobre os países mais vulneráveis em termos de dívida pública. Vital Moreira considerou também que é inteiramente justificável que a União obrigue os Estados-Membros a corrigir os seus défices orçamentais, bem como os seus défices de competitividade, pois estes não somente dificultam a consolidação orçamental, como sobretudo constituem o principal obstáculo duradouro ao crescimento e ao emprego, sendo responsáveis pelos graves desequilíbrios internos dentro da UE, que põem em causa a coesão económica e a estabilidade do euro. Vital Moreira apelou ao Grupo Socialista Europeu para não cair numa "síndroma de oposição", que leva "a criticar soluções que não deixaríamos de tomar se estivéssemos no governo dos principais Estados-Membros.

VM não é economista mas não se coíbe de dar razões económicas para a aceitação desse pacto. Infelizmente, o resultado é mesmo mau. VM quer que a União Europeia “obrigue os Estados-Membros a corrigir … os seus défices de competitividade”.

Acontece que a competitividade é uma noção relativa. Somos mais ou menos competitivos relativamente a um concorrente. Todos sabemos que as empresas portuguesas são menos competitivas que as alemãs no que toca à inovação (tecnológica, organizacional). Agora, faz sentido que o Estado Português seja obrigado a tornar as suas empresas tão competitivas como as alemãs? E já agora, o que é que andamos a fazer desde os tempos do PEDIP I ?

Muito provavelmente Vital Moreira estaria a referir-se à competitividade-custo, caso em que a evolução dos salários e da produtividade do trabalho nas empresas industriais portuguesas relativamente às alemãs se torna determinante. Acontece que desde 1999 que a Alemanha empreendeu um conjunto de reformas laborais, algumas com o acordo dos sindicatos, no sentido de ir tornando mais precário o trabalho e de conter drasticamente os aumentos salariais. A tal ponto que a parte dos salários no valor acrescentado da Alemanha caiu de 65,4% para 62,2% entre 2003 e 2007. Assim, a recuperação das exportações alemãs foi em boa parte conseguida à custa de uma desinflação competitiva em que a estagnação dos salários nominais desempenhou um papel determinante.

Por conseguinte, segundo Vital Moreira, para que as empresas portuguesas “reduzam o seu défice de competitividade” relativamente às alemãs, o estado português deve (nos termos do Pacto de Competitividade) decretar o congelamento dos salários das empresas industriais, no mínimo. Entretanto, para não perder competitividade relativamente às empresas portuguesas, o estado espanhol (cumprindo também o Pacto de Competitividade) acabará por decretar já não o congelamento mas antes uma redução dos salários das suas empresas. E assim por essa Europa fora, numa espiral descendente em que caminharíamos heroicamente para uma Grande Depressão ... ainda mais endividados.

Segundo Vital Moreira, é com este pacto que a Europa reduzirá os seus graves desequilíbrios internos e recuperará a estabilidade do euro. É caso para dizer que Vital Moreira continua a desbravar Novas Fronteiras.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Usar todas as armas


O melhor é os países periféricos usarem a reestruturação da dívida para pressionar a Europa, dizendo: têm de nos emprestar dinheiro com juros mais baixos, caso contrário nunca iremos escapar a um default. Acho que Portugal deveria usar a ameaça de default para pedir juros mais baixos ao fundo europeu.

Matt King, director de estratégia do Citigroup.

Com as taxas de juro nestes níveis, apenas atenuadas pelas intervenções do BCE no mercado secundário, e perante políticas de austeridade cada vez mais contraproducentes, vai sendo altura de mudar as regras do jogo. Repito-me:

Os países periféricos, na linha do que tem sido proposto por vários economistas críticos, devem avançar com uma auditoria à sua dívida, preparando o caminho para uma reestruturação por sua iniciativa. De qualquer forma, esta reestruturação é inevitável na ausência de mudanças no enquadramento europeu. Estas mudanças só poderão surgir precisamente se houver uma iniciativa diplomática concertada das periferias que use a arma dos fracos: não podemos pagar a estas taxas, vamos lá renegociar com transparência até porque há dívida odiosa (a auditoria revelará certamente mais submarinos e outras brincadeiras internacionais...).

Só com a ameaça credível da reestruturação, liderada por uma aliança de países, é possível introduzir as reformas europeias que urgem: emissão de euro-obrigações, mudança do papel do BCE, maior flexibilidade das regras do mercado interno para permitir políticas industriais de apoio a novos sectores económicos, maior controlo dos fluxos financeiros, um orçamento europeu que seja a contrapartida a essa escala da perda de instrumentos de política económica à escala nacional, harmonização fiscal, etc. Só assim se poderão debelar os desequilíbrios que este euro reforçou.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Ajuda às más práticas...

Berlim dá desta forma o sinal de que aceita ajudar os países em dificuldades de financiamento, mas impõe como condição a adopção por todos das práticas alemãs de boa gestão económica.

Ajudar? Boas práticas alemãs de gestão económica? Duplo equívoco de Isabel Arriaga e Cunha. Não há qualquer ajuda alemã aos países em dificuldades, mas apenas ajuda ao seu sistema financeiro que está altamente exposto à dívida das periferias, como já antes tinha estado exposto ao subprime norte-americano. Além disso, estamos a falar de financiamento com taxas de juro elevadas e com condições inaceitáveis. Quanto às boas práticas de gestão económica, estamos a falar do quê? De uma taxa de crescimento económico anual na Alemanha de 1,6%, entre 1999 e 2007, ou de -0,8%, entre 2008 e 2010 (o crescimento anual da Zona Euro foi de 2,1% e de -0,8% e o de Portugal foi de 1,7% e de -0,8% nos mesmos períodos, como se indica neste estudo)? Da dívida pública alemã que devido a um regime de baixo crescimento se fixava em 75%, em 2009, pouco abaixo da média da União. Falamos das violações do PEC quando foi preciso? Podemos se calhar estar a falar na redução das despesas públicas em percentagem do PIB neste período, um dos poucos países avançados a alcançar duvidoso feito como parte de uma reestruturação neoliberal que terá contribuído para que o crescimento da pobreza e da desigualdade tenha sido aí, segundo a OCDE, mais rápido do que em qualquer outro país desenvolvido. Estaremos a falar da posição externa favorável da Alemanha muito à custa dos trabalhadores alemães que viram o peso dos seus rendimentos no PIB cair 3,2 pontos percentuais, uma compressão salarial pouco cooperativa, que contagiou a economia europeia e que explica esta fraca performance económica? Como sublinha o economista alemão Till van Treeck, este modelo é ineficiente economicamente, injusto socialmente e prejudicial para a integração europeia. É claro que o chamado capitalismo renano, como já defendi, mantém algumas práticas interessantes, por exemplo em matérias de relações laborais, que ajudaram a evitar uma grande destruição de emprego nesta crise, heranças de tempos mais progressistas, mas estas práticas passaram a estar subordinadas a uma estratégia competitiva prejudicial à economia europeia e que não é logicamente universalizável (os excedentes comerciais de uns são os défices de outros...). É então preciso que se deixe de pensar as questões europeias através do quadro de prioridades das elites políticas alemãs e do capital industrial-financeiro que suporta as políticas de austeridade.

Para cidadãos praticantes...

A sublevação tunisina ressoa para lá do mundo árabe. Muitos dos seus detonadores estão presentes noutros lugares: um crescimento desigual, um desemprego elevado, manifestações reprimidas por fortes aparelhos policiais, uma juventude instruída e sem saídas, burguesias parasitárias que vivem como turistas nos seus próprios países. Os tunisinos não vão acabar com todos estes males ao mesmo tempo, mas libertaram-se do jugo da fatalidade. «Não há alternativa», repetiram-lhes. Eles responderam-nos que, «por vezes, o impossível acontece».

Serge Halimi

A melhor forma de criar músculo cidadão, que é o que pode levar o sangue dos recursos comuns aos sítios onde ele é necessário, é aprofundar a memória dos direitos que nos melhoraram como civilização, ter hoje uma prática que defenda os pilares do Estado social e nunca perder de vista os processos democráticos de aferição das finalidades que perseguimos. Isso faz-se nos dias das eleições e nos outros dias todos. Participando. É que, em rigor, o cidadão não participante é uma ilusão. Não existe. Só continuam a chamar-lhe cidadão para ele não descobrir que é um mundo antigo que estão a reconstruir em seu redor. Revoltar-se-ia?

Sandra Monteiro

O sumário do número de Fevereiro do Le Monde diplomatique - edição portuguesa está disponível aqui.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Como morrer da cura?

Mais um debate sobre o FMI, desta vez organizado pelos Precários Inflexíveis, no próximo Sábado às 21h30m na Lx Factory em Lisboa. Apareçam. Defenderei o que já defendi na conferência do IDEFF. As conclusões do último conselho europeu só reforçam a ideia de que o FMI já aterrou na Portela, mas com escala em Bruxelas. As políticas de austeridade consolidam um capitalismo medíocre, mas com poder para transferir todos os custos sociais para os trabalhadores, sob a forma de desemprego e de precariedade. A desregulamentação das relações laborais, sob a capa do combate a um mercado de trabalho dito dual, alastrará a insegurança laboral, ainda para mais num contexto de cortes nos apoios sociais. Trata-se sempre de fazer do trabalho, dos salários directos e indirectos, a variável de ajustamento. Assim não se criam os empregos de que necessitamos. A União Europeia está construída para favorecer esta regressão. A sua reforma urge, mas está bloqueada...

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Classe

Enquanto a direita intransigente anda entretida a inventar lutas de gerações, mais um estudo, desta vez sobre determinantes sociais da saúde, indica que a questão social é fundamentalmente uma questão de classes sociais e das suas desigualdades: “a classe é mais importante que a geografia para explicar desigualdades em saúde (…) todas as medidas que combatem desigualdades nos rendimentos têm efeitos na saúde" (Público). Um resumo do estudo de Ricardo Antunes pode ser encontrado no observatório das desigualdades. A injustiça social faz mesmo mal à saúde.

Publicado no Arrastão

A crise continua

A recente promessa da Alemanha de um alargamento do Fundo Europeu de Estabilização Financeira em troca da germanização da Eurozona é mais um passo no sentido da instituição do neoliberalismo na União Europeia. O Tratado de Lisboa (Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia) diz no Artº 121-nº 2 que o Conselho Europeu estabelece “orientações gerais das políticas económicas dos Estados-Membros e da União.” Agora, em sintonia com uma ideia muito cara aos conservadores e liberais no Parlamento Europeu - a “apropriação” pelos Estados-Membros do princípio da “política orçamental prudente” - a Alemanha e a França vêm dizer-nos que chegaram a um acordo sobre, entre outras coisas, a necessidade de os Estados inscreverem na sua legislação uma norma que trava os défices públicos.

Caso a norma seja idêntica à que a Alemanha inscreveu na sua Constituição, isso significaria que, em tempos normais, os países deixariam de poder assumir défices virtuosos, aqueles que resultam de despesa e investimento públicos que inegavelmente apoiam o crescimento económico. E também significaria, a menos que dentro de dias venham a recuar, que também estaria vedado o recurso de um Estado-Membro a políticas orçamentais activas para combater uma recessão. Como refere o regulamento sobre o procedimento por défices excessivos actualmente em discussão no Parlamento Europeu, apenas seriam tolerados défices acima dos 3% do PIB “em caso de uma crise económica grave de natureza geral.” (ver aqui, p. 13-c) )

Por outro lado, sabendo que um persistente saldo das contas públicas próximo do equilíbrio significa a prazo uma dívida pública tendencialmente nula, então salta à vista o absurdo de tal regra. Seria até contraditória com o valor de referência inscrito no Tratado da União (dívida pública inferior a 60% do PIB). É possível que estas propostas venham a ser revistas até à cimeira de Março. Ainda assim, é caso para nos perguntarmos se os altos dirigentes da França e da Alemanha entendem minimamente o que está em causa.

Bem diz Wolfgang Münchau: “Não sei bem qual é a crise que o mecanismo da Ms Merkel se propõe resolver. Aquela que tenho observado ao longo do último ano vai continuar.”

domingo, 6 de fevereiro de 2011

No capitalismo realmente existente

As vozes e os interesses dos mais pobres contam pouco na política norte-americana (...) os grandes ganhadores de todo o tipo de ‘inovações financeiras’ nas últimas três décadas não foram os pobres (nem as classes médias), mas indivíduos já muito bem pagos (...) O ajustamento à crise foi transferido para o resto da sociedade, particularmente para os que têm menos formação e menos remuneração, que agora perderam as suas casas, postos de trabalho e a esperança para os seus filhos. Estas pessoas não causaram a crise, mas estão a pagá-la.

Simon Johnson, MIT, ex-economista-chefe do FMI

Até há pouco o tópico das desigualdades e suas consequência económicas, políticas e morais negativas, associado ao processo de financeirização do capitalismo, induzido politicamente pela acção de forças que desmantelaram o controlo sobre a finança, só interessava a economistas políticos heterodoxos. Agora, a economia convencional começa a acordar para a vida no capitalismo realmente existente, embora sem abandonar fixações com equilíbrios gerais e outras fantasias de mercado. Através do artigo de Simon Johnson, dei com esta apresentação de Daron Acemogolu, um dos economistas ortodoxos mais cotados do momento. E até no vox já se fala da relação entre aumento da desigualdade, o aumento do endividamento dos mais pobres e a fragilidade financeira. É claro que nenhuma destas análises se compara à que consta deste livro, escrito por quem já anda na economia política crítica, com sensibilidade teórica e empírica impar, há algum tempo.

A falência do neomercantilismo europeu

As últimas notícias acerca da crise na zona euro dão-nos conta da tentativa do eixo franco-alemão de estabelecer regras comuns à condução das políticas públicas – inscrição de limites de défice na constituição, fim aos arranjos institucionais que indexam os salários à inflação de certos países, etc – além da tentativa de oferecer novas competências ao reforçado fundo de estabilidade europeu, como a possibilidade deste comprar títulos de dívida pública no mercado secundário (aos bancos, portanto). As medidas avançadas não surpreendem: pretendem tornar a austeridade a regra da governação europeia ao mesmo tempo que identificam o trabalho como a variável de ajustamento da competitividade dos países da UE. Obviamente, a oposição europeia rapidamente se fez sentir. Não tanto porque estas são regras cegas face a realidades económicas muito díspares, mas porque colocam em causa entendimentos sócio-políticos onde se alicerçou todo o modelo económico de muitos dos países da UE. De facto, esta receita não é mais do que a aplicação do modelo de gestão macro-económico alemão ao resto da Europa.

No entanto, para melhor se perceber esta resposta à crise, convém olhar para a trajectória dos diferentes capitalismos europeus nos últimos vinte anos e abstrairmo-nos da actual conjuntura da Grande Recessão. É sabido que o capitalismo alemão e o dos seus satélites (Holanda, Áustria, Dinamarca) assentou num sector exportador de bens de capital tecnologicamente muito avançado desde o pós-guerra. Estas economias excedentárias beneficiavam assim dos mercados norte-americanos e da recuperação da economia europeia. Neomercantilismo moderno (expressão cunhada neste excelente artigo, que pilho alegremente neste post). Por outro lado, países como Portugal, Espanha e Grécia não puderam embarcar nesta aventura neomercantilista de crescimento económico exclusivamente promovido pelas exportações, devido às suas debilidades estruturais (tecido empresarial tecnologicamente pobre, normalmente mão-de-obra intensivo). Portugal não teve nenhum ano de excedente comercial desde a segunda grande guerra. Numa posição intermédia nesta posição neomercantilista de procura incessante de excedentes externos que, por mera aritmética, nem todos os países podem gerar, estão países como a Itália ou a França. O primeiro, sempre beneficiou de desvalorizações da sua moeda para manter um sector exportador competitivo (sobretudo, à custa do marco alemão). A França por sua vez, sempre balançou entre excedentes e défices externos.

Com o processo de reunificação alemã e o investimento interno que tal implicou, a Alemanha perdeu parte da sua favorável posição externa face á restante UE devido a maior inflação e custos salariais, incorrendo em inéditos défices externos. Esta situação foi entendida como uma oportunidade para os franceses que, numa altura de paridade entre o franco e o marco conseguiam excedentes comerciais, para avançar no projecto europeu de moeda única que lhes permitia o melhor de dois mundos: manter de facto a paridade franco-marco, aparentemente sem custos para a economia francesa; conseguir construir uma entidade europeia de fixação das taxas de juro onde tivessem uma palavra a dizer (ao contrário do que acontecia com o Bundesbank, cuja política monetária causou uma recessão europeia no inicio da década de noventa). Um modelo de integração monetária onde parecia que todos ganhavam. O tiro saiu pela culatra.

A reacção das elites alemãs aos défices externos foi uma profunda reestruturação do seu capitalismo, transferindo parte da sua indústria para os novos mercados de Leste onde a mão-de-obra barata abundava e, graças às altas taxas de desemprego internas, impondo uma compressão salarial que deixava um diferencial entre produtividade e salários muito favorável às empresas. Ou seja, transferiram a parte menos competitiva da sua indústria para fora, aumentaram o desemprego e contraíram o seu mercado interno, o que, por sua vez, permitiu uma eficaz política de compressão salarial (inédita desde o pós-guerra) que beneficiou os sectores de alta-tecnologia virados para o mercado externo. Uma política reforçada no contexto da moeda única, onde os países tradicionalmente deficitários não conseguiam competir graças às elevadas taxas de câmbio com que entraram na União monetária e à incapacidade de conseguirem os mesmos diferenciais entre produtividade e salários da economia alemã.

Os países tradicionalmente deficitários viram os seus défices aumentar, com o seu crescimento económico baseado numa mistura insustentável de financiamento barato dos países excedentários e transferências de fundos estruturais, num contexto de concorrência acrescida nos seus mercados de produto. Privada da sua arma neomercantilista, a desvalorização da lira, a Itália afundou-se numa década de estagnação, com a sua posição externa a tornar-se negativa a partir de 2005. O mesmo aconteceu com França, que, entretanto, foi atrás da retórica alemã da disciplina orçamental, embora tenha um problema grave de contas públicas.

Aqui chegados percebemos o beco em que se encontra hoje a Europa. Por um lado, uma Alemanha e seus satélites que tenta impor as suas receitas no contexto europeu – uma receita de que os trabalhadores alemães bem se podem queixar -, na esperança de salvaguardar a sua posição na economia global, onde o euro é basilar, e do seu exposto sistema financeiro, essencial na reciclagem dos seus excedentes. Por outro, um conjunto de países deficitários (uns mais que outros) que esperam ser recompensados por garantias financeiras que não resolvem os seus problemas estruturais.

Claro está que as propostas de governação económica estão votadas ao fracasso (ainda bem, digo eu, dado o seu conteúdo) num contexto de União a 27. Só a austeridade generalizada parece poder sobreviver como compromisso europeu. A saída pode passar por uma Europa com diversas configurações - não tanto “à la carte”, mas antes em diversos círculos de compromisso de integração europeia. Nesta eventualidade a posição francesa é onde tudo se joga. Os interesses franceses num contexto de declínio económico, aliado a novas configurações do poder político que resultem das próximas presidenciais, podem conduzir a uma autonomização política em relação ao diktat alemão. Se a aliança entre a periferia europeia se concretizasse, provavelmente poderíamos ter outro motor europeu. Mas jogamos aqui com a improvável convergência entre diferentes forças sociais e um tempo que as periferias já não têm…

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Desassossegos e desafios

"O Colóquio Portugal entre desassossegos e desafios propõe-se discutir a actual condição do país, a partir de um balanço reflexivo e prospectivo sobre as transformações que vêm marcando a situação interna de Portugal e a sua inserção internacional. As mudanças que têm vindo a desenrolar-se desde o 25 de Abril de 1974, sobre o pano de fundo dos processos de democratização, descolonização, integração europeia e modernização socioeconómica, fazem-se sentir em dois planos combinados. Por um lado, no plano interno, a acelerada modernização económica e cultural do país tem-se feito acompanhar de alterações acentuadas nas condições e nos modos de vida dos indivíduos e dos grupos sociais. Desenham- se novos protagonismos, oportunidades e expectativas de vida, mas também novos padrões de desigualdade, segmentação e exclusão social. Por outro lado, no plano externo, sob os efeitos da aceleração dos processos de globalização, do fim da presença colonial e da adesão à União Europeia, o país foi traçando novos alinhamentos internacionais. Nesse quadro, emergem novos e heterogéneos modelos de relacionamento com os países de expressão portuguesa e as antigas colónias. A compreensão aprofundada do modo como Portugal se vem reajustando a esta nova conjuntura é um aspecto fundamental para o entendimento da sociedade portuguesa."

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Moralismo europeu...

A evolução das economias capitalistas já por várias vezes expôs a inanidade de constranger a política económica por regras que dão dignidade a números arbitrários para o défice orçamental e para a dívida pública. Limites que nenhum governo democrático, em tempos de crise aguda do capitalismo maduro, poderá cumprir sem gerar ainda mais desemprego e exclusão social. Por muito que isto desgoste os moralistas das finanças públicas, os défices e a dívida são sobretudo a consequência do andamento da economia. Por exemplo, a incensada e muito liberal Irlanda, que tinha uma dívida pública de 25% do PIB em 2007, ultrapassa os 90% em 2010; a Zona Euro tinha um défice de 0,6% do PIB em 2007 e de mais de 6% em 2009; a dívida pública estava em 66% em 2007 e passou para os 80% em 2010: crise e o correspondente colapso das receitas e aumento das despesas, a par com a luta por saber quem paga o ajustamento. Perante o fracasso de pactos estúpidos, maus substitutos dos instrumentos de política económica que se perderam à escala nacional sem que outros fossem criados à escala europeia, há sempre alguém que decide dar um passo em frente: Os pactos falharam? Demos-lhes dignidade constitucional. Moralismo redobrado com uma conversa sobre “credibilidade” que esconde a hegemonia política de um sistema financeiro disfuncional e o abandono de qualquer propósito público de combate ao desemprego à escala europeia e nacional. Esquecem-se que o desemprego é sobretudo o resultado de uma configuração do capitalismo europeu que incentiva o tratamento dos salários apenas como um custo a conter e não como uma fonte de procura e que não criou uma política económica europeia coordenada promotora do investimento, do emprego e bloqueadora de estratégias de competitividade à custa do mundo do trabalho: os problemas passam por aqui. A moralidade, pelo contrário, não passa por esta desunião europeia sob comando de utopias ordoliberais alemãs. Deixo-vos um gráfico bem ilustrativo de problemas europeus que a crise só acentuou:

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Sem stress?

Está tudo a correr bem: em 2010, o lucro dos três maiores bancos privados nacionais cresceu 8%, face a 2009, para quase mil milhões de euros. É a banca, aparentemente, a conseguir transferir o stress para outros. Questão de poder. Entretanto, segundo o Negócios, e isto até custa a crer, o “encargo fiscal do BCP, BES e BPI caiu 83%” no mesmo período, o que terá ajudado no aumento dos lucros, claro. Isso e os empréstimos do BCE a taxas de juro quase nulas. O BCE está aí para as curvas dos bancos, mas não para as dos Estados que amparam os bancos e que depois ficam na sua dependência. É a vida no capitalismo financeirizado. Os riscos financeiros, que são muitos neste regime, são sempre socializados. Por isso é que o controlo público dos bancos deveria ser superior.

Publicado no arrastão

Economia política e moral

O Alexandre Abreu escreveu duas análises, que vale a pena recuperar, sobre o papel da especulação nos alimentos e as revoltas no sul global: De Wall-Street a Maputo e O nexo finança-fome. O Negócios deu-lhe finalmente voz, a propósito das preocupações da própria Comissão Europeia, já que os efeitos destes processos também se sentem no centro e agora há tímidas propostas a circular para limitar a especulação nos derivados. Entretanto, e porque a economia política tem de convergir com a “economia moral da multidão” no século XXI, com a complexidade dos factores que levam as pessoas a dizer nós, ao protesto e à revolta, leiam Paulo Granjo. E. P. Thompson, cujo ensaio está disponível numa edição primorosa da Antigona, anda por aí.

A campanha de desinformação liberal já começou


“Quando os desequilíbrios são grandes de mais e o sector público é demasiado pesado, só há duas maneiras para resolver o assunto: cortar nos salários e aumentar os impostos, ou reformar o Estado, racionalizá-lo e colocá-lo na proporção que a nossa produção de riqueza permite”. Assim falava Passos Coelho, no encerramento das jornadas parlamentares do PSD que decorreram esta semana em Braga.

Gostava de saber qual é para Passos Coelho a proporção do Estado que a 'nossa produção de riqueza permite'. É que olhando para o gráfico acima, com dados que antecedem o impacto da crise financeira, tenho dificuldade em ver uma relação clara entre os níveis de rendimento per capita dos países e a 'proporção do Estado' (medida pelas despesas públicas em percentagem do PIB).

Nele vejo países mais ricos com presenças muito fortes e menos fortes do Estado na economia. Não vejo que os países onde a presença do Estado é mais marcante tenham tido nos últimos anos desempenhos económicos inferiores (ou superiores). Constato, pelo contrário, que os países onde essa presença é maior (como a França, a Dinamarca ou a Suécia) são menos desiguais do que países de níveis de rendimento equivalentes onde o Estado desempenha um papel menor (como os EUA). Não deve ser por acaso.

Também não vejo que Portugal esteja numa posição em que a presença do Estado seja desproporcionada face à média dos países considerados (membros da UE, EUA e Japão).

Mas nada disto impedirá Passos Coelho de repetir à exaustão a sua lenga-lenga. O rosto do novo liberalismo luso, numa imitação gasta do Reaganiano "o Estado é parte do problema e não da solução", está convencido que esta é a onda que tem de navegar para conquistar o poder.

A nós cabe desmascarar a fraude e deixar claro que a sociedade que Passos Coelho almeja foi aquela que conduziu ao aumento das desigualdades sociais e da instabilidade económica nos últimos 30 anos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

“Economistas defendem que recurso ao FMI não é solução”

Uma surpresa logo pela manhã. Um título do Público onde está escrito com todas as letras: “Economistas defendem que recurso ao FMI não é solução”. Pergunto a mim mesmo: por que me surpreendo desta maneira? Bem, talvez porque defender que “recurso ao FMI não é solução” é o contrário do que estamos habituados a esperar “dos economistas”, ou melhor, do que estamos habituados a esperar que os jornais publiquem como sendo a opinião “dos economistas”. De resto, não está escrito no Público “os economistas defendem”, mas antes “economistas defendem”, isto é, há economistas que defendem… Isto não devia ser surpreendente, mas o certo é que o meu cérebro reage com estranheza.

Este título refere-se à cobertura da Conferência “Portugal 2011: Vir o Fundo ou ir ao fundo”, organizada pelo Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito dirigido por Eduardo Paz Ferreira, que se realizou ontem e anteontem com notável sucesso.

“Economistas defendem que recurso ao FMI não é solução” foi o que de fundamental a jornalista Ana Rita Faria retirou desta conferência e é interessante tentar saber porquê.

Estive lá e parece-me que o título não é absolutamente rigoroso num aspecto e é um pouco ambíguo noutro. Em primeiro lugar porque os que se exprimiram na Conferência não eram todos economistas. Em segundo lugar, porque mesmo os economistas que se pronunciaram emitiram diversas opiniões, justificando-as com razões igualmente diversas, e isto passa desapercebido na subtileza de um “economistas” que não tem de ser lido como “os economistas”.

Como sabemos, mas não é demais repetir, a economia não é estudada só por economistas e mesmo “os economistas”, nesta como em todas as questões, não têm “uma opinião”. O que há são diversas opiniões de diversos estudiosos da economia e de economistas diversos.

Mas estamos habituados a um espaço da comunicação económica habitado quase exclusivamente por economistas e ainda por cima por economistas que têm todos opiniões iguais ou muito parecidas. Como a mente humana tem tendência para inferências espontâneas, ninguém, incluindo as jornalistas, está livre de concluir espontaneamente que a opinião dos economistas residentes da televisão é a opinião “dos economistas”.

Na realidade, vi na conferência economistas e não economistas a defender que “o recurso ao FMI não é solução” e outros a defender o contrário, cada um com as suas razões. Uns, porque o FMI é inevitável e quanto antes melhor, outros, porque pode ser necessário “em último recurso”, outros ainda, porque o governo sem tutela é incapaz de disciplinar as finanças públicas, etc, etc. Mais uma vez pergunto: porque é que a jornalista reteve como conclusão significativa “Economistas defendem que recurso ao FMI não é solução”?

Encontro duas explicações. A primeira: a conferência estava organizada de forma a garantir em todos os painéis a expressão plural de opiniões. Não que existisse a priori uma paridade de pros e contras. Na realidade o que existia, contra o habitual, era a presença de diversas opiniões. Isto parece bastar para retirar alguma assertividade, digamos assim, à opinião “dos economistas”, isto é, torna mais difícil apresentar a opinião hegemónica como uma opinião ditada pela “ciência” já que mostra que na ciência há lugar para diversas opiniões. As opiniões pro (intervenção do FMI, neste caso) foram assim menos salientes do que é habitual, ao mesmo tempo que as opiniões contra foram, pelo menos, ouvidas, o que, pela surpresa, as torna notáveis. Mas isto não basta para explicar que exista um título no Público “Economistas defendem que recurso ao FMI não é solução”.

A segunda explicação: o leque dos que defenderam “que o recurso ao FMI não é solução” foi muito amplo, ultrapassando as expectativas dos participantes e provavelmente da jornalista do Público. Como ela escreve na notícia, o Dr. Henrique Granadeiro justificou a sua oposição a um convite aos Fundos “afirmando que a Grécia e a Irlanda em nada foram beneficiadas, pois têm de pagar juros elevados nos empréstimos do FMI e da EU e continuam a ser penalizadas nos mercados” e este vosso ladrão, sem discordar do Dr. Granadeiro (e concordando com outro ladrão que tinha falado na sessão anterior), disse que “o fundo aplicaria a sua típica receita de austeridade com efeitos recessivos, e Portugal arriscar-se-ia, então, a ir ao fundo com o fundo”. Por acaso, garanto-vos que foi por mero acaso, utilizamos os dois a mesma expressão: se é assim, FMI não, obrigado!

Nestes dias, na Conferência e fora dela, ouviram-se opiniões semelhantes a estas vindas dos mais variados quadrantes. E, antes destes dias, até Ricardo Espírito Santo veio à televisão opor-se à visita dos Fundos, se bem que por outras razões. Ele achava que a visita dos Fundos iria provocar uma fuga massiva de capitais como se verificou na Grécia e na Irlanda. E a “fuga dos capitais”, como sabemos, é o principal pesadelo de um banqueiro, quando não é a maior ameaça que ele pode brandir contra todos nós quando contemplamos fazer coisas de que ele não gosta. Argumento de peso portanto.

A jornalista do Público não pode ter deixado de ficar surpreendida contra a coincidência de opiniões de gentes tão diversas. Mais uma vez a inferência: a amostra pode ser pequena, mas se é variada, então, isso basta para a generalização espontânea: “Economistas defendem que recurso ao FMI não é solução”.

Não estou a protestar contra o título do Público. É claro que há economistas que acham que recurso ao FMI não é solução! É também claro que com estes economistas há muitos outros que têm a mesma opinião. Não é de espantar. Os Fundos falharam na Grécia e na Irlanda. O contágio não terminou. Mesmo em Bruxelas quase todos o reconhecem à boca pequena e muitos trabalham em planos B (como este) para salvar o euro. A resistência à vinda dos fundos tem sido portanto útil: tem dado tempo a que alternativas com algum bom senso venham à tona de água. Agora, mais do que nunca, era preciso que as “periferias” agissem em conjunto para reforçar precisamente as alternativas de bom senso.