As últimas notícias acerca da crise na zona euro dão-nos conta da tentativa do eixo franco-alemão de estabelecer regras comuns à condução das políticas públicas – inscrição de limites de défice na constituição, fim aos arranjos institucionais que indexam os salários à inflação de certos países, etc – além da tentativa de oferecer novas competências ao reforçado fundo de estabilidade europeu, como a possibilidade deste comprar títulos de dívida pública no mercado secundário (aos bancos, portanto). As medidas avançadas não surpreendem: pretendem tornar a austeridade a regra da governação europeia ao mesmo tempo que identificam o trabalho como a variável de ajustamento da competitividade dos países da UE. Obviamente, a oposição europeia rapidamente se fez sentir. Não tanto porque estas são regras cegas face a realidades económicas muito díspares, mas porque colocam em causa entendimentos sócio-políticos onde se alicerçou todo o modelo económico de muitos dos países da UE. De facto, esta receita não é mais do que a aplicação do modelo de gestão macro-económico alemão ao resto da Europa.
No entanto, para melhor se perceber esta resposta à crise, convém olhar para a trajectória dos diferentes capitalismos europeus nos últimos vinte anos e abstrairmo-nos da actual conjuntura da Grande Recessão. É sabido que o capitalismo alemão e o dos seus satélites (Holanda, Áustria, Dinamarca) assentou num sector exportador de bens de capital tecnologicamente muito avançado desde o pós-guerra. Estas economias excedentárias beneficiavam assim dos mercados norte-americanos e da recuperação da economia europeia. Neomercantilismo moderno (expressão cunhada neste excelente artigo, que pilho alegremente neste post). Por outro lado, países como Portugal, Espanha e Grécia não puderam embarcar nesta aventura neomercantilista de crescimento económico exclusivamente promovido pelas exportações, devido às suas debilidades estruturais (tecido empresarial tecnologicamente pobre, normalmente mão-de-obra intensivo). Portugal não teve nenhum ano de excedente comercial desde a segunda grande guerra. Numa posição intermédia nesta posição neomercantilista de procura incessante de excedentes externos que, por mera aritmética, nem todos os países podem gerar, estão países como a Itália ou a França. O primeiro, sempre beneficiou de desvalorizações da sua moeda para manter um sector exportador competitivo (sobretudo, à custa do marco alemão). A França por sua vez, sempre balançou entre excedentes e défices externos.
Com o processo de reunificação alemã e o investimento interno que tal implicou, a Alemanha perdeu parte da sua favorável posição externa face á restante UE devido a maior inflação e custos salariais, incorrendo em inéditos défices externos. Esta situação foi entendida como uma oportunidade para os franceses que, numa altura de paridade entre o franco e o marco conseguiam excedentes comerciais, para avançar no projecto europeu de moeda única que lhes permitia o melhor de dois mundos: manter de facto a paridade franco-marco, aparentemente sem custos para a economia francesa; conseguir construir uma entidade europeia de fixação das taxas de juro onde tivessem uma palavra a dizer (ao contrário do que acontecia com o Bundesbank, cuja política monetária causou uma recessão europeia no inicio da década de noventa). Um modelo de integração monetária onde parecia que todos ganhavam. O tiro saiu pela culatra.
A reacção das elites alemãs aos défices externos foi uma profunda reestruturação do seu capitalismo, transferindo parte da sua indústria para os novos mercados de Leste onde a mão-de-obra barata abundava e, graças às altas taxas de desemprego internas, impondo uma compressão salarial que deixava um diferencial entre produtividade e salários muito favorável às empresas. Ou seja, transferiram a parte menos competitiva da sua indústria para fora, aumentaram o desemprego e contraíram o seu mercado interno, o que, por sua vez, permitiu uma eficaz política de compressão salarial (inédita desde o pós-guerra) que beneficiou os sectores de alta-tecnologia virados para o mercado externo. Uma política reforçada no contexto da moeda única, onde os países tradicionalmente deficitários não conseguiam competir graças às elevadas taxas de câmbio com que entraram na União monetária e à incapacidade de conseguirem os mesmos diferenciais entre produtividade e salários da economia alemã.
Os países tradicionalmente deficitários viram os seus défices aumentar, com o seu crescimento económico baseado numa mistura insustentável de financiamento barato dos países excedentários e transferências de fundos estruturais, num contexto de concorrência acrescida nos seus mercados de produto. Privada da sua arma neomercantilista, a desvalorização da lira, a Itália afundou-se numa década de estagnação, com a sua posição externa a tornar-se negativa a partir de 2005. O mesmo aconteceu com França, que, entretanto, foi atrás da retórica alemã da disciplina orçamental, embora tenha um problema grave de contas públicas.
Aqui chegados percebemos o beco em que se encontra hoje a Europa. Por um lado, uma Alemanha e seus satélites que tenta impor as suas receitas no contexto europeu – uma receita de que os trabalhadores alemães bem se podem queixar -, na esperança de salvaguardar a sua posição na economia global, onde o euro é basilar, e do seu exposto sistema financeiro, essencial na reciclagem dos seus excedentes. Por outro, um conjunto de países deficitários (uns mais que outros) que esperam ser recompensados por garantias financeiras que não resolvem os seus problemas estruturais.
Claro está que as propostas de governação económica estão votadas ao fracasso (ainda bem, digo eu, dado o seu conteúdo) num contexto de União a 27. Só a austeridade generalizada parece poder sobreviver como compromisso europeu. A saída pode passar por uma Europa com diversas configurações - não tanto “à la carte”, mas antes em diversos círculos de compromisso de integração europeia. Nesta eventualidade a posição francesa é onde tudo se joga. Os interesses franceses num contexto de declínio económico, aliado a novas configurações do poder político que resultem das próximas presidenciais, podem conduzir a uma autonomização política em relação ao diktat alemão. Se a aliança entre a periferia europeia se concretizasse, provavelmente poderíamos ter outro motor europeu. Mas jogamos aqui com a improvável convergência entre diferentes forças sociais e um tempo que as periferias já não têm…
Caro Nuno, é um conteúdo alemão mas usando um intrumento francês, ou não?
ResponderEliminarJorge Rocha
Check this out:
ResponderEliminarhttp://www.alternet.org/story/149806/vision%3A_everyday_brits_are_in_revolt_against_wealthy_tax_cheats_--_can_we_do_that_here
"... exposto sistema financeiro, essencial na reciclagem dos seus excedentes."
ResponderEliminarParece-me crucial analisar esta questão mais a fundo.
Em primeiro lugar esses excedentes deverão ter sido aplicados pelos (cidadãos) alemães em depósitos sem risco junto da sua banca.
Os bancos alemães, por sua vez, utilizados os depósitos para financiar Estados e a banca comercial estrangeira não assumindo assim directamente o risco de maus investimentos (isto é, considerando que esse risco era praticamente nulo).
Os Estados e bancos estrangeiros assim financiados, por sua vez, injectaram esses fundos na chamada "economia real" dos seus países assumindo os riscos desses investimentos (empréstimos imobiliários, empréstimos a empresas, ...).
Quando a a taxa de incumprimento por parte de
Se os excedentes Alemães tivessem sido aplicados directamente em fundos imobiliários Espanhóis, por exemplo, a crise imobiliária em Espanha tinha feito cair a cotação desses fundos passando assim o risco (e a desvalorização dos activos) para os bancos alemães sem que isso afectasse a banca Espanhola (que simplesmente se limitava a comercializar e a gerir esses fundos).
Ou seja, não seria preferível que a "reciclagem" de excedentes fosse feita através de mecanismos transparentes em que os aforradores assumissem o risco dos seus investimentos?
Excelente artigo que vai ao encontro do que tenho defendido em posts anteriores.
ResponderEliminarA única saída para os países da periferia (os PIGS mais a Itália) é uma aliança entre eles, com o apoio da França (e, eventualmente, da Bélgica e do próprio Luxemburgo) que permite criar uma alternativa às soluções preconizadas pela Alemanha.
O problema é que a estratégia de Sarkozy é ir-se escondendo atrás de Merkel, talvez para ganhar tempo. Mas a verdade é que a França tem também um défice orçamental muito elevado (julgo que mais de 7%) e uma forte tradição de intervencionismo estatal. Duvido muito que a maioria dos franceses aceite as "reformas estruturais" que o neoliberalismo quer impor. Se o aumento da idade de reforma para os 62 anos gerou tanta contestação, o que acontecerá se o governo tentar impor os 67, como pretende Merkel?
Salvaguardadas as devidas distâncias, a atitude de Sarkozy faz lembrar a da Polónia, em 1938, quando aceitou participar no desmembramento da Checoslováquia após a invasão alemã, pensando, com isso, apaziguar Hitler. Viu-se!
Se a França apoiasse os países periféricos numa ação de resistência às intenções alemãs, talvez colocasse Merkel na defensiva.
Até porque, para a Alemanha, a saída do euro e o regesso ao marco seria um mau negócio, pois este ficaria muito valorrizado face ao primeiro e a sua economia perderia competitividade face à França e aos países periféricos.
Jorge Martins, o que defende é irrealista. Os paises do Sul podem constituir uma união latina, mas nunca uma moeda europeia. Se existisse essa aliança a Alemanha sairia do euro e todos os países do norte e do centro e do leste a acompanhariam. não percebo por que motivo não apoiam a proposta já feita neste blogue de Jacques Sapir de saida do euro: aceite a realidade: paises falidos não podem propor o que quer que seja.
ResponderEliminarjorge Rocha
E será que seria do interesse da Alemanha sair do euro?
ResponderEliminarNão sou economistas, mas parece-me que, se a Alemanha voltasse ao marco, este seria uma moeda muito forte; se o euro se mantivesse com a presença da França, da Bélgica, do Luxemburgo, da Itália e dos PIGS, desvalorizaria. Não iria isso criar um problema de competitividade aos alemães, cuja economia se baseia largamente nas exportações?
A verdade é que os países "falidos" podem condicionar os seus credores. Se estes perceberem que os devedores os podem arrastar com eles, talvez pensem duas vezes antes de os executar. Ou não será assim?
Claro que, para isso, era preciso que a França assumisse as suas divergências com a Alemanha antes que esta lhe desse o "abraço do urso".
Infelizmente, não parece ser o caso. Sarkozy julga que pode aplacar Merkel pondo-se atrás dela. Mas se os PIGS caírem, a seguir vai a Itália, a Bélgica e ...? "Voila"!
A nossa estratégia: chantagem!
ResponderEliminar"... se os PIGS caírem, a seguir vai a Itália, a Bélgica e ...? "Voila"!"
Alguém tem de nos pagar as dívidas ou então dar dinheiro senão ... voilá!
E o que estam a Alemanha e seus aliados a fazer sobre os países da periferia? Não é chantagem?
ResponderEliminarLogo, para chantagista, chantagista e meio. Voilá!
Errata: "estão"
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