O problema de Portugal vai muito para lá das sanções. Depois do choque do Brexit e estando a União Europeia a desfazer-se aos poucos, a tentação para dar um salto em frente vai ser enorme.
No último barómetro do Observatório sobre as Crises e Alternativas (OCA) é lembrado o documento conhecido por Relatório dos 5 presidentes. E analisam-se os riscos que Portugal poderá ter pela frente.
Este relatório tem pouco mais de um ano e representou um guião para uma reforma da União Económica e Monetária - em três etapas que deveriam decorrer entre julho de 2015 e 2025 – e que ocorreria em “quatro frentes” – União Económica, União Financeira, União Orçamental e União Política –, envolvendo todos os estados-membros da atual zona euro. Era um novo projecto com uma nova vanguarda, um eixo franco-alemão e uma UE a duas velocidades. Novas adesões eram adiadas para depois de 2025. Talvez certas forças na Turquia tenham percebido o que lhe estava reservado e decidiram fazer a sua jogada, da pior maneira.
Ora, uma Europa a duas velocidades cria novos problemas. "Se a proposta franco-alemã for esta", refere o barómetro do OCA, "Portugal ficará colocado perante uma situação dilemática muito difícil. Caso insista em bater-se por integrar o núcleo duro, dando largas à obsessão pela participação no pelotão da frente que nos levou à adesão ao euro, terá de sujeitar-se a um enquadramento político ideologicamente condicionado e sustentado em mecanismos disciplinares
reforçados. Se procurar, ou aceitar, ficar fora dele, sujeitar-se-á a um enquadramento semelhante e ainda a usar como sua uma moeda (o euro) que passa a ser mais do que nunca gerida em função dos interesses e necessidades de um núcleo duro em que nem sequer participa."
Se estivesse no Governo, o que decidiria? Como desatar este nó górdio, esta camisa de onze varas?
domingo, 31 de julho de 2016
É basicamente isto
Usar o facto de não ter havido sanções para crer em intervenções avulsas, do Presidente, do ministro de Negócios Estrangeiros e até de dirigentes europeístas de partidos como o Livre, pretender que isso significa que a Europa afinal funciona “bem” e os que a criticam não têm razão é mais uma cegueira a acrescentar a muitas outras que se repetem há quinze anos. Aliás, se, nesta matéria, só houvesse direito a falar caso se tivesse acertado nalguma coisinha nestes últimos anos, nenhum europeísta teria sequer a possibilidade de dizer alguma coisa.
José Pacheco Pereira, Público.
Sendo basicamente isto, tenho uma ou outra divergência sobre temas europeus com Pacheco Pereira, nada de especial, dadas as bem mais importantes convergências soberanistas democráticas: o mito dos pais fundadores europeus e a metáfora da cegueira aplicada às elites do poder europeu que têm o comando da situação no centro.
Os chamados pais fundadores, gente politicamente das direitas na sua maioria (ou das alas direitas de uma social-democracia então genericamente na oposição na sua minoria), tinham desconfianças em relação à democracia de massas, particularmente aplicada ao campo socioeconómico, que tratavam também de conter por via supranacional.
Eu prefiro pensar que “eles” não são cegos, embora o seu até agora globalmente triunfante projecto, com uma cada vez mais transparente orientação de classe, tenha naturalmente de se desenrolar num conflitual contexto de incerteza, o que significa que os efeitos imprevistos, não-intencionais, nunca podem ser erradicados.
sábado, 30 de julho de 2016
A raiz do problema
Peço-vos que percam dez minutos para ouvir este excerto de comunicação do general Wesley Clark, com quase nove anos. Bem sei que o seu passado não é isento de pedras no caminho. Mas vale a pena ouvi-lo.
Fala - nas suas palavras - de um golpe de Estado nos Estados Unidos em 2001 que determinou uma nova política externa dos EUA - que estava já em preparação há anos -, uma nova política não discutida pelas instituições democráticas ou pelo povo desse país. Uma nova política externa para ganhar posições "antes do surgimento de uma nova superpotência" e que passava por derrubar regimes políticos em sete países do Médio Oriente, enquanto a Rússia não pudesse fazer alguma coisa. Tem alguma ideia de quais seriam esses sete países?
Sobre o mesmo assunto, mas mais sobre o grupo Estado Islâmico, veja-se esta entrevista muito dura da Aljazeera. É preciso um maior paciência, porque dura 47 minutos. Mas vejam-se apenas os primeiros minutos (a partir de 7'40'') desta conversa com Michael T. Flynn, ex-chefe da DIA (Defense Intelligence Agency), o serviço norte-americano especializado em defesa e inteligência militar.
E depois ouçam outra vez os apelos à guerra, feitos pelos ridículos - e que se dizem socialistas - Hollande e Valls. Voltem a ouvir as emissões de 24 horas feitas pelas principais televisões do mundo após cada atentado ou ataque, e sintam o ridículo da recente decisão do jornal Le Monde - de um jornal! - de passar a não mencionar o nome daqueles que praticam actos de terror, como forma de não os promover. Sintam aquele aperto no estômago sobre as expressões usadas pela comunicação social: "Subitamente radicalizou-se".
A informação sobre as guerras passou há muito a ser censurada e autocensurada. Quase só vemos as imagens das bombas a vir do céu, limpas. Mas raramente vemos o seu efeito. Apenas escombros. Como uma bomba de neutrões: podem não existir (banidas pelo cinismo de matar vidas e preservar a propriedade), mas mediaticamente reinam. As televisões cortam as imagens do terror vindo do céu porque são ataques à privacidade, por ser um acto de sensacionalismo. Passamos a poder ver as guerras à hora de jantar e nas séries televisivas. Isso não evita que passemos a ser intervenientes desta guerra a partir do momento que ela nos bate à porta, em atentados, em refugiados, que empurram as nossas sociedades para viveiros explosivos da extrema-direita. Mas estaremos a combater os verdadeiros causadores do mal?
Vejam o vídeo.
E depois pensem na urgência de discutir políticas. E na impotência que sentirão para as poder mudar. Depois leiam o que se passou com o FMI, a troika e os resgates recentes a países como Grécia, Portugal, Irlanda, Chipre... e vejam que esta a centralização das decisões e a consequente opacidade de quem as toma fazem parte deste sistema que gostaríamos que fosse uma democracia.
Fala - nas suas palavras - de um golpe de Estado nos Estados Unidos em 2001 que determinou uma nova política externa dos EUA - que estava já em preparação há anos -, uma nova política não discutida pelas instituições democráticas ou pelo povo desse país. Uma nova política externa para ganhar posições "antes do surgimento de uma nova superpotência" e que passava por derrubar regimes políticos em sete países do Médio Oriente, enquanto a Rússia não pudesse fazer alguma coisa. Tem alguma ideia de quais seriam esses sete países?
Sobre o mesmo assunto, mas mais sobre o grupo Estado Islâmico, veja-se esta entrevista muito dura da Aljazeera. É preciso um maior paciência, porque dura 47 minutos. Mas vejam-se apenas os primeiros minutos (a partir de 7'40'') desta conversa com Michael T. Flynn, ex-chefe da DIA (Defense Intelligence Agency), o serviço norte-americano especializado em defesa e inteligência militar.
E depois ouçam outra vez os apelos à guerra, feitos pelos ridículos - e que se dizem socialistas - Hollande e Valls. Voltem a ouvir as emissões de 24 horas feitas pelas principais televisões do mundo após cada atentado ou ataque, e sintam o ridículo da recente decisão do jornal Le Monde - de um jornal! - de passar a não mencionar o nome daqueles que praticam actos de terror, como forma de não os promover. Sintam aquele aperto no estômago sobre as expressões usadas pela comunicação social: "Subitamente radicalizou-se".
A informação sobre as guerras passou há muito a ser censurada e autocensurada. Quase só vemos as imagens das bombas a vir do céu, limpas. Mas raramente vemos o seu efeito. Apenas escombros. Como uma bomba de neutrões: podem não existir (banidas pelo cinismo de matar vidas e preservar a propriedade), mas mediaticamente reinam. As televisões cortam as imagens do terror vindo do céu porque são ataques à privacidade, por ser um acto de sensacionalismo. Passamos a poder ver as guerras à hora de jantar e nas séries televisivas. Isso não evita que passemos a ser intervenientes desta guerra a partir do momento que ela nos bate à porta, em atentados, em refugiados, que empurram as nossas sociedades para viveiros explosivos da extrema-direita. Mas estaremos a combater os verdadeiros causadores do mal?
Vejam o vídeo.
E depois pensem na urgência de discutir políticas. E na impotência que sentirão para as poder mudar. Depois leiam o que se passou com o FMI, a troika e os resgates recentes a países como Grécia, Portugal, Irlanda, Chipre... e vejam que esta a centralização das decisões e a consequente opacidade de quem as toma fazem parte deste sistema que gostaríamos que fosse uma democracia.
sexta-feira, 29 de julho de 2016
Revisitar o pós-troika da direita
Num momento em que o FMI vem reconhecer os erros do programa de «ajustamento» (mesmo que com uma intenção meramente instrumental, como sugere o João Rodrigues), afirmando que a aplicação da austeridade em Portugal foi como «pôr um cão a perseguir a própria cauda»; e quando as teses da direita, sobre o «cenário negro», o «diabo que vem aí» e o «não há alternativa», esbarram de forma cada vez mais violenta com a realidade, vale a pena rever este vídeo do Ricardo Paes Mamede, sobre os planos orçamentais que a PAF tinha para o período 2014-2018 (caso tivesse conseguido eleger uma maioria parlamentar nas últimas legislativas).
A coreografia do FMI
Para fazer face às consequências sistematicamente desastrosas das suas prescrições concretas para países concretos, o FMI desenvolveu, desde o final dos anos noventa, uma coreografia de manutenção do paradigma assente em dois movimentos fundamentais.
Em primeiro lugar, começar a reconhecer, em geral, que os críticos tinham razão, embora minimizando as traduções de tal reconhecimento nos programas concretos: a austeridade é mesmo recessiva, os controlos de capitais fazem sentido para reduzir a instabilidade, o incremento das desigualdades sociais registado prejudica o crescimento económico.
Em segundo lugar, criar instrumentos de avaliação dos programas, o tal gabinete de avaliação independente funciona desde 2001. Depois dos avanços neoliberais terem sido garantidos, transformando a crise numa oportunidade, vem dizer que se devia ter sido menos optimista, ido mais devagar e, aqui e ali, alargado o menu do diagnóstico e das políticas, por exemplo, no campo da reestruturação da dívida ou no da atenção aos bancos. Nada de novo, portanto.
Obviamente, ao pé das instituições europeias, BCE e CE, o FMI até parece um polícia bom, tendo, em alguns momentos, revelado mais pragmatismo, sem deixar de partilhar os objectivos para as periferias europeias. No FMI têm de conhecer a diferença entre desvalorização cambial e desvalorização interna.
Enfim, contra os europeístas de todos os partidos, o outro nome da complacência na melhor das hipóteses, não é aliás por acaso que na literatura da economia política internacional devotada a temas europeus tem crescido a ideia do chamado “resgate europeu do Consenso de Washington” original, criticando os que chegaram a pensar no “resgate europeu do Estado nacional”, que eventualmente terá ocorrido, mas numa fase da integração há muito desgraçadamente ultrapassada.
quinta-feira, 28 de julho de 2016
A insustentável inconsistência dos seres
«Não há nenhuma razão para agravar o tratamento da Comissão Europeia dentro do procedimento por défice excessivo na medida em que, fora o que foi contabilizado por causa do Banif, Portugal não teve um défice acima dos 3% em termos nominais.» (Pedro Passos Coelho a 13 de maio, dez dias depois de a Comissão Europeia ter indicado que a decisão sobre sanções seria tomada considerando um défice de 3,2% em 2015)
«Este procedimento não se refere só ao desempenho do passado, mas com a trajetória para o futuro. O que a Comissão está a dizer é que não acredita na consistência das medidas do Governo até 2019.» (Miguel Morgado a 12 de maio, dois dias depois do primeiro debate de orientação do colégio de comissários, em que Bruxelas considerou a possibilidade de aplicar sanções a Portugal e Espanha)
«[Portugal poderá vir a ser alvo de sanções porque] muitos dos governos da Europa têm dúvidas sobre aquilo que se está a passar no país, (...) sobre as reformas importantes que estão a ser revertidas, sobre a maneira como estamos a andar para trás em vez de andar para a frente.» (Pedro Passos Coelho a 23 de julho, o dia em que constava que Bruxelas iria pedir a suspensão de 16 fundos estruturais como sanção a Portugal).
«Hoje é um dia bom para Portugal. (...) O ano de 2015 foi avaliado, os resultados foram avaliados, sabemos que o resultado dessa avaliação é sanções zero para Portugal. (...) Portugal cumpriu e qualquer tipo de sanção seria injusto e injustificado.» (Miguel Morgado a 27 de julho, o dia em que a Comissão Europeia decidiu cancelar a aplicação de sanções a Portugal).
quarta-feira, 27 de julho de 2016
Uma pedra a menos no caminho e o essencial dos problemas por resolver
Sejamos claros: a não aplicação de uma multa a Portugal retira uma pedra do caminho, mas deixa o essencial dos problemas por resolver.
A Comissão Europeia e o Ecofin assumiram formalmente que Portugal e Espanha não tomaram as medidas necessárias para cumprir as regras europeias. Ou seja, apesar dos cinco anos de austeridade destruidora, apesar da co-responsabilidade das instituições europeias pelo falhanço dessa estratégia (que, como os próprios vieram agora reconhecer, não permitiu que as metas fossem alcançadas, depois de toda a sucessão de aumentos de impostos e cortes na despesa), as instituições europeias decidiram que os países em causa não cumpriram as regras e que são culpados por isso. A decisão de não avançar com uma multa não anula aqueles pressupostos.
A decisão hoje tomada será utilizada para reforçar o nível de pressão sobre o governo português. A narrativa é fácil de perceber. Estão a dizer-nos: “vocês são irresponsáveis, vocês não fizeram o que deviam; resolvemos dar-vos mais uma hipótese, mas é bom que façam tudo o que vos dissermos daqui para a frente”. E o poder de chantagem continua bem presente, como fica claro das declarações que vamos ouvindo.
Entretanto, os problemas fundamentais continuam por resolver. As regras da União Europeia e da zona euro continuam a assumir que um país que se encontre em crise nada pode fazer que não seja acentuar a degradação da actividade económica e dos direitos sociais e laborais. Não havendo solução à vista que dê resposta às enormes diferenças nas estruturas económicas dos países participantes na UE, as economias mais frágeis continuarão a enfrentar condições de financiamento muito mais desfavoráveis, tornando-as vulneráveis aos humores dos mercados financeiros internacionais e, por conseguinte, ao poder de chantagem de quem na UE está numa posição financeira vantajosa.
Em suma, a decisão da Comissão Europeia dá com uma mão o que sabe que pode tirar com a outra. Esta decisão não torna menos premente a necessidade de questionar as regras europeias – nem de nos prepararmos de todas as formas para fazermos valer as nossas posições. Por outras palavras, as mensagens do vídeo abaixo continuam tão válidas como antes.
A Comissão Europeia e o Ecofin assumiram formalmente que Portugal e Espanha não tomaram as medidas necessárias para cumprir as regras europeias. Ou seja, apesar dos cinco anos de austeridade destruidora, apesar da co-responsabilidade das instituições europeias pelo falhanço dessa estratégia (que, como os próprios vieram agora reconhecer, não permitiu que as metas fossem alcançadas, depois de toda a sucessão de aumentos de impostos e cortes na despesa), as instituições europeias decidiram que os países em causa não cumpriram as regras e que são culpados por isso. A decisão de não avançar com uma multa não anula aqueles pressupostos.
A decisão hoje tomada será utilizada para reforçar o nível de pressão sobre o governo português. A narrativa é fácil de perceber. Estão a dizer-nos: “vocês são irresponsáveis, vocês não fizeram o que deviam; resolvemos dar-vos mais uma hipótese, mas é bom que façam tudo o que vos dissermos daqui para a frente”. E o poder de chantagem continua bem presente, como fica claro das declarações que vamos ouvindo.
Entretanto, os problemas fundamentais continuam por resolver. As regras da União Europeia e da zona euro continuam a assumir que um país que se encontre em crise nada pode fazer que não seja acentuar a degradação da actividade económica e dos direitos sociais e laborais. Não havendo solução à vista que dê resposta às enormes diferenças nas estruturas económicas dos países participantes na UE, as economias mais frágeis continuarão a enfrentar condições de financiamento muito mais desfavoráveis, tornando-as vulneráveis aos humores dos mercados financeiros internacionais e, por conseguinte, ao poder de chantagem de quem na UE está numa posição financeira vantajosa.
Em suma, a decisão da Comissão Europeia dá com uma mão o que sabe que pode tirar com a outra. Esta decisão não torna menos premente a necessidade de questionar as regras europeias – nem de nos prepararmos de todas as formas para fazermos valer as nossas posições. Por outras palavras, as mensagens do vídeo abaixo continuam tão válidas como antes.
Sensatez
«As sanções não iriam corrigir o passado e seriam contraproducentes, num momento em que as pessoas têm dúvidas sobre a Europa» (Pierre Moscovici)
Adenda 1: Qual é a parte do «corrigir o passado» que Helena Pereira (no Expresso) parece não ter entendido, quando considera que «PSD e CDS veem a sua governação (de 2015) reconfortada» (como bem assinala a Shyznogud)?
Adenda 2: Uma explanação mais desenvolvida dos argumentos de Moscovici: «Por que é que não poderíamos sancionar Espanha e Portugal».
Na crista da onda, conforme a maré
A Assunção Cristas que exige que o Governo faça «voz grossa» em Bruxelas é a mesma Assunção Cristas que considera, perante os sinais de firmeza do executivo na questão das sanções (quando estas começaram a pairar de forma mais ameaçadora no horizonte), que o Governo anda a «brincar com o fogo». Como quem diz «façam o favor de berrar, mas berrem baixinho».
Nada de novo. Assunção Cristas limita-se a seguir as pisadas do anterior líder do partido, Paulo Portas, que apresentou uma demissão irrevogável para recuar logo de seguida, justificando mais tarde a manobra com um «o que tem que ser teve muita força». A mesma Assunção Cristas, que depois de integrar um governo que diminuiu rendimentos e empobreceu o país, acelerando a queda da natalidade e fazendo disparar a emigração, vem na legislatura seguinte apresentar um pacote legislativo «amigo das famílias».
Tudo na melhor tradição dos camaleões políticos, que adaptam sem escrúpulos o discurso às circunstâncias, ignorando responsabilidades próprias e contradições. Como diz o João Ramos de Almeida, é triste, é muito triste.
Nada de novo. Assunção Cristas limita-se a seguir as pisadas do anterior líder do partido, Paulo Portas, que apresentou uma demissão irrevogável para recuar logo de seguida, justificando mais tarde a manobra com um «o que tem que ser teve muita força». A mesma Assunção Cristas, que depois de integrar um governo que diminuiu rendimentos e empobreceu o país, acelerando a queda da natalidade e fazendo disparar a emigração, vem na legislatura seguinte apresentar um pacote legislativo «amigo das famílias».
Tudo na melhor tradição dos camaleões políticos, que adaptam sem escrúpulos o discurso às circunstâncias, ignorando responsabilidades próprias e contradições. Como diz o João Ramos de Almeida, é triste, é muito triste.
Viva a Guerra!
Goya |
É catastrófico este apelo governamental à guerra! É de curtas vistas associar este acto como um ataque aos católicos, como se a sociedade se dividisse por religiões. Nice já provocou uma onda de racismo contra os muçulmanos. As declarações feitas ontem a quente são explosivas. E tudo me lembra a famosa reacção de Miguel de Unamuno à estranha e paradoxal frase "Viva la Muerte", lançada em pleno alvor da guerra civil de Espanha, nas celebrações do dia da raça, em Outubro de 1936, quando eram estigmatizados o país basco e a Catalunha, quando o general Millán-Astray gritou "Morra a inteligência! Viva a Morte!", recolhendo entusiasmado aplausos dos falangistas.
O Governo francês embarcou numa perigosa deriva em que tenta salvar a cabeça, antes das eleições que se perdem para a extrema-direita. O problema é que quanto mais a esquerda imitar a direita, quanto mais não conseguir ter uma visão própria, mais isso tende a promover a direita.
Que triste pedagogia para os jovens, que vazia e criminosa promoção à guerra geral. Como é estúpido este apelo ao ódio para ganhar a guerra ao ódio!
Veja-se a seguir algumas declarações recolhidas ontem pela BFMTV, que podem ser encontradas na totalidade aqui
13h27 - O ministro do interior Bernard Cazeneuve, recém chegado à localidade, associa-se à "grande solidariedade" com os católicos.
13h30 - O ex-primeiro-primeiro-ministro francês Jean-Marc Ayrault apela à unidade do povo francês. "Nestas circunstâncias, só pode haver uma mensagem: 'Mantenhamo-nos unidos'. Aqueles que estão na origem destes atentados, penso no de Nice e ainda nos dos últimos dias na Alemanha, querem dividir as sociedades, as democracias, a nossa forma de vida conjunta entre crentes e não crentes, entre católicos e muçulmanos, entre laicos e crentes".
13h34 - François Hollande apela ao apoio à guerra. Recém-chegado a Saint-Etienne-du-Rouvray, François Hollande denunciou o "cobarde atentado de um padre da paróquia , por dois terroristas do Daesh". "A ameaça continua muito elevada. O grupo do Daesh declarou-nos guerra . Nós devemos levara cabo esta guerra [contra o Daesh], no respeito pela lei". "O meu pensamento está com todos os católicos da França".
terça-feira, 26 de julho de 2016
Triste, é muito triste
É triste ver em jovens dirigentes de partidos antigos a mesma táctica de fuga para a frente, de repetir as mesmas críticas que nunca conseguiram fazer a si próprios. Telejornal de ontem, Assunção Cristas à saída de Belém: "Não vemos sinais claros, no actual Orçamento (...), claramente incapaz de relançar a economia, claramente incapaz de criar emprego. Não há emprego a ser criado de forma sustentável". A Radio Renascença colocou mais ideias: "O desemprego infelizmente também não decresceu de forma significativa”, declarou Assunção Cristas. “Isso preocupa-nos porque estas políticas, com esta solução das esquerdas unidas, não nos parece que estejam a fazer nada de bem à economia, à vida dos portugueses, numa perspectiva de médio-longo prazo. O grande problema do país é o emprego. Só há mais emprego com investimento e nós não vemos investimento”, sublinhou a líder do CDS.
Acordou tarde para o problema e sobretudo quando está na oposição. Com a ajuda dos valores compilados pelo Nuno Serra e chamando a atenção para o facto de se estar a justar estimativas (INE) com dados administrativos (desempregados ocupados). Mas não pude resistir, depois de ter visto as declaraões citadas pela Rádio Renascença.
O que me aflige - mas não estranha - é o despudor total.
Há mais de seis anos atrás, Paulo Portas dizia o mesmo do Governo Sócrates, sem que nos anos seguintes fosse capaz de olhar com rigor, seriedade e honestidade para o que o CDS fez ao país - e de que ainda é responsável. Os videos não são pré-históricos, mas têm a estranha e reveladora patine da falta de pudor. Diria mesmo agora: da capacidade de mentir sem corar.
Acordou tarde para o problema e sobretudo quando está na oposição. Com a ajuda dos valores compilados pelo Nuno Serra e chamando a atenção para o facto de se estar a justar estimativas (INE) com dados administrativos (desempregados ocupados). Mas não pude resistir, depois de ter visto as declaraões citadas pela Rádio Renascença.
Há mais de seis anos atrás, Paulo Portas dizia o mesmo do Governo Sócrates, sem que nos anos seguintes fosse capaz de olhar com rigor, seriedade e honestidade para o que o CDS fez ao país - e de que ainda é responsável. Os videos não são pré-históricos, mas têm a estranha e reveladora patine da falta de pudor. Diria mesmo agora: da capacidade de mentir sem corar.
Lançamento, hoje: «Segurança Social - Defender a Democracia»
«Se um em cada cinco dos desempregados e um em cada dois dos que saíram de Portugal durante a 'troika' estivessem a trabalhar cá, o défice português seria zero, porque se pagariam menos cinco mil milhões de euros de subsídio de desemprego e o aumento da receita da segurança social – por causa das pessoas que estariam a trabalhar – seria de 1.300 a 2.700 milhões de euros. Não teríamos défice simplesmente.
(...) Quisemos apresentar ao grande público informação rigorosa sobre como ler os números, como perceber a pobreza, o desemprego, as prestações sociais e como conhecer os detalhes para que qualquer pessoa possa formar a sua opinião com um fundamento sólido.
(...) Nós estamos no patamar abaixo do que era necessário na experiência democrática, do ponto de vista da informação geral aos cidadãos e é verdade também que estas dificuldades por falta de preparação, informação, ou, por vezes, por algum enviesamento ideológico.»
Excertos da entrevista de Francisco Louçã ao Diário Económico, por ocasião da edição do livro «Segurança Social - Defender a Democracia», que será lançado hoje, a partir das 18h00, no Centro Cultural de Belém (Sala Amália Rodrigues), em Lisboa. A apresentação da obra estará a cargo de Ana Feijão (Assessora do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda); Manuel Carvalho da Silva (Investigador do CES) e Cláudia Joaquim (Secretária de Estado da Segurança Social). Apareçam.
segunda-feira, 25 de julho de 2016
Ladrões batem novo recorde
Pela primeira vez desde a sua criação em Abril de 2007, o total mensal de visitas ao Ladrões de Bicicletas foi superior a 100 mil durante três meses seguidos (Maio, Junho e Julho). Este ano o descanso será ainda mais merecido.
Perdidos ideologicamente na tradução
“Um súbito aumento da população, frequentemente concentrado em regiões específicas, produzirá também um aumento excessivo de serviços públicos-chave, como a educação e os cuidados de saúde.” Excerto de um artigo do social-liberal Adair Turner sobre o Brexit.
No entanto, no Negócios perderam-se na tradução: “overcrowding”, no original, não é obviamente “aumento excessivo”, mas sim sobrelotação, como de resto se percebe pela frase completa (bem sei que corrigida deve ser soar chocante para certos ouvidos):
“Um súbito aumento da população, frequentemente concentrado em regiões específicas, produzirá também uma sobrelotação de serviços públicos-chave, como a educação e os cuidados de saúde, a menos que isso seja compensado por um aumento bem planeado e bem financiado do investimento público. No Reino Unido, esse investimento não aconteceu.”
Não é a primeira vez que vejo jornais portugueses perdidos ideologicamente na tradução. Seja como for, a posição de Turner é crescentemente contraditória, dado que as forças da globalização, e a sua expressão continental, a UE, impedem as tais políticas bem planeadas que incrustrariam social e democraticamente a economia. Para tal, é preciso mesmo desglobalizar...
domingo, 24 de julho de 2016
sábado, 23 de julho de 2016
Sobre o vírus "radicalizado"
Fonte: Europol, relatórios sobre terrorismo |
De cada vez que há um atentado, surgem as declarações oficiais de que, subitamente, os terroristas se tinham "radicalizado". Como se tratasse de um vírus apanhado algures, longe de todos nós, as pessoas normais. Aqueles que nunca matariam.
Há dias, a comunicação social citou o relatório da Europol para alertar os portugueses de que Portugal estava cada vez mais na lista de ataques terroristas. Não acompanhei a generalidade dos jornais sobre o assunto, mas pelos destaques com que fui impactado, presumo que não tenham ido mais longe.
O assunto é, contudo, demasiado sério para que nos possamos ficar por meras declarações de que, mais dia menos dia, estaremos igualmente a ser bombardeados com declarações - à la Valls - de que teremos de nos habituar a viver sob terrorismo. Não temos. Queremos viver em paz. Mas na minha opinião, a política externa ocidental não tem contribuído para isso. Pelo contrário.
Olhe-se para o gráfico acima, para os números do que se passa na Europa, partindo da mesma fonte, citada pela comunicação social, mas trabalhando os dados relativos aos anos de 2006 a 2015. Estranhamente, os relatórios da Europol omitem - nos anexos exaustivos - o número de mortos dos atentados cometidos. Incluí nos "ataques" e nas "pessoas detidas" tanto os cometidos - como se refere nos relatórios - pela extrema-direita, pela extrema-esquerda, por actos religiosos, etc., porque me interessa o ambiente de violência latente, o caldo gerador do terrorismo.
E agora compare-se com o que se passa no outro lado do mundo. E veja-se as linhas desse gráfico.
Leituras
«A Goldman tem uma longa experiência de recrutamento de perfis políticos e económicos importantes, antigos comissários europeus ou ex-presidentes de bancos centrais. (...) É a solução perfeita. Barroso é liberal, conservador e atlantista, como os líderes da Goldman Sachs. Como ex-Presidente da Comissão, o posto por onde passam os dossiers em Bruxelas, ele conhece todos os recantos da máquina europeia, os seus governos, os dirigentes dos bancos centrais de cada Estado-Membro, etc. Depois do Brexit - um golpe muito duro para a banca, que concentra em Londres a maior parte dos seus funcionários na Europa - Barroso vai ajudar a Goldman a tomar as decisões corretas.»
Marc Roche, A Goldman Sachs encontrou o seu novo «missi dominici» de luxo
«Barroso desafia as leis da física, andando pelo mundo sem coluna vertebral e mantendo-se, ainda assim, sempre de pé. Mas por mais que me apetecesse escrever sobre ele, Barroso limitou-se a fazer a progressão natural na carreira de “gestor de inevitabilidades políticas que a globalização impõe às economias abertas”. (...) É impossível olhar para a União Europeia e não ver a Goldman Sachs por todo lado, sobretudo em todo o lado onde encontramos as causas ou as supostas “soluções” para a crise. Há anos que este grupo financeiro se dedica a comprar políticos no ativo ou a colocar pessoas suas em cargos públicos relevantes. E é apenas a mais alarve, não temendo dar nas vistas.»
Daniel Oliveira, Coitado do Barroso
«A notícia de que Durão Barroso ia trabalhar para o Goldman Sachs apanhou-me de surpresa. Sempre pensei que Durão já trabalhava para o Goldman há muitos anos. Não fiquei chocado. Tenho mais receio dos que vêm do Goldman para cá do que os que vão de cá para lá. Para mim, o Goldman Sachs não é currículo, é cadastro. (...) Durão ajudou a encenar a cimeira das Lajes e as armas químicas invisíveis que justificaram a guerra do Iraque. O Goldman maquilhou as contas da Grécia para justificar a entrada no Euro. São também o homem e a instituição que muito fizeram para conduzir a Zona Euro para uma crise sem precedentes. Têm tudo para dar certo. Foram feitos um para o outro. Imagino que a lista de casamento esteja num "offshore".»
João Quadros, Durão gelatina
sexta-feira, 22 de julho de 2016
Circula o cherne
Dimitrios Papadimoulis, eurodeputado do Syriza e vice-presidente do chamado parlamento europeu, insurgiu-se na passada quarta-feira, em artigo no Público, contra a ida de Barroso para a Goldman Sachs, lembrando, entre outras coisas, as políticas neoliberais promovidas pela Comissão Europeia quando este último foi presidente.
Acontece que o Syriza cresceu durante esses anos em oposição a essas políticas, mas depois aceitou implementá-las, confirmando de forma decisiva o triunfo político das forças sociais que a venal transição de Barroso acaba por simbolizar.
Este eurodeputado termina a lembrar o eurocepticismo assim promovido por Barroso, associando esta tendência à extrema-direita, esperando assim implícita e penosamente que as elites do poder se rendam a uma suposta razoabilidade europeísta para combater o que no fundo tantas vezes lhes tem sido funcional.
O moralismo é o que resta quando não se tem instrumentos de política e quando não se está disposto a recuperá-los. O moralismo e os EUA, agora transformados em equivocada referência. Assim se revela a impotência absoluta e também assim se abre o caminho às direitas, a todas elas. O drama é claro: a esquerda europeísta pode desaparecer que cada vez menos darão politicamente pela diferença.
O que dizer mais dos que pretendem “mudar a Europa” e trazê-la de volta a um qualquer lugar imaginado de justiça social, um truque gasto, gasto, enquanto aceitam ser a face interna da economia política da regressão no seu assim fundadamente desesperançado país?
Acontece que o Syriza cresceu durante esses anos em oposição a essas políticas, mas depois aceitou implementá-las, confirmando de forma decisiva o triunfo político das forças sociais que a venal transição de Barroso acaba por simbolizar.
Este eurodeputado termina a lembrar o eurocepticismo assim promovido por Barroso, associando esta tendência à extrema-direita, esperando assim implícita e penosamente que as elites do poder se rendam a uma suposta razoabilidade europeísta para combater o que no fundo tantas vezes lhes tem sido funcional.
O moralismo é o que resta quando não se tem instrumentos de política e quando não se está disposto a recuperá-los. O moralismo e os EUA, agora transformados em equivocada referência. Assim se revela a impotência absoluta e também assim se abre o caminho às direitas, a todas elas. O drama é claro: a esquerda europeísta pode desaparecer que cada vez menos darão politicamente pela diferença.
O que dizer mais dos que pretendem “mudar a Europa” e trazê-la de volta a um qualquer lugar imaginado de justiça social, um truque gasto, gasto, enquanto aceitam ser a face interna da economia política da regressão no seu assim fundadamente desesperançado país?
A montanha do desemprego e a Direita
Fonte: IEFP |
O volume de pessoas que apareceu nos centros de emprego - fosse desempregada ou não - para pedir um emprego não parou de subir desde então. O terror apenas se atenuou quando a troika e os dois partidos chegaram à conclusão de que não era possível continuar com a anterior política. Todo o programa foi interrompido. Manteve-se o aperto fiscal que ainda não foi desatado, sob pressão comunitária. Desde aí, desde 2014, que o mercado de trabalho tem reanimado um pouco. Os dados divulgados ontem mostram-no. Ainda assim, são 700 mil pessoas que procuram um emprego. Caso se estime o desemprego lato pelos dados do INE - juntando os desempregados, os inactivos desencorajados ou indisponíveis e o subemprego - essa realidade ainda abrangia no 1º trimestre 2016 cerca de 1,133 milhões de pessoas, quando já foi 1,469 milhões no 1º trimestre de 2013.
Para esta evolução, têm contribuído diversos elementos. Veja-se este gráfico que apura os fluxos de ano para ano em cada uma daquelas realidades. O que se vê?
quinta-feira, 21 de julho de 2016
Nem subsídios nem sopas: o RSI é um instrumento de inclusão
Num seminário comemorativo do vigésimo aniversário do RMG/RSI, realizado no início de julho, o Gabinete de Estudos e Planeamento do MTSSS apresentou um balanço retrospetivo da medida, coligindo informação que vale a pena consultar e reter. Nesse retrato dos últimos vinte anos há, entre outros, um dado particularmente interessante, relativo às principais ações contratualizadas com os beneficiários, por área de inserção.
Esta é talvez a vertente menos conhecida do RSI, amplamente ignorada pela comunicação social e deliberadamente omitida pelos partidos de direita (no primeiro caso para vender notícias mais «apelativas» e no segundo para captar votos, indo ambos à boleia do discurso populista em torno do «subsídio à preguiça» e da «subsídio dependência»). Não fosse assim e talvez se tivesse hoje uma noção mais clara de que o RSI não é apenas um valor pecuniário atribuído aos beneficiários, comportando também o desenvolvimento de ações em diferentes domínios (da escolarização de crianças e jovens ao apoio psicossocial e na organização da vida quotidiana das famílias, do desenvolvimento de competências pessoais e sociais à melhoria da empregabilidade e inserção no mercado de trabalho).
Talvez este desconhecimento generalizado quanto aos processos de acompanhamento técnico e social, que permitam tentar combater pela raiz a exclusão, tenha contribuído para que a direita substituísse com grande facilidade o RSI por «cantinas sociais», recuperando o moralismo e a caridade como eixos centrais de uma «política social» bolorenta e retrógrada, que acabaria por se revelar bastante mais cara e ineficaz. Para a coligação PSD/PP, aos pobres bastava que não morressem de fome e por isso a «sopa» era suficiente, não fosse mais qualquer coisinha desmotivá-los na procura de emprego e levá-los a recusar o baixo salário de que dependia, nos termos do seu projeto político, a competitividade da economia nacional.
Podemos questionar-nos sobre os obstáculos com que uma medida emancipatória como o RSI se confronta. De uma cultura técnica de Serviço Social ainda muito assistencialista (e que portanto tem dificuldade em compreender o «espírito» da medida, concentrando-se mais no julgamento moral e na fiscalização do que na procura e construção de soluções), à própria cristalização (por vezes geracional) das situações de pobreza, passando ainda pela dificuldade em encontrar respostas de inclusão pelo trabalho, a mais robusta das formas de inclusão. O que não podemos é pensar que a exclusão se resolve de modo sustentável encarando os «subsídios» (incluindo o RBI, Rendimento Básico Incondicional) ou as «sopas» como fins em si mesmos, e não como instrumentos de inclusão.
Esta é talvez a vertente menos conhecida do RSI, amplamente ignorada pela comunicação social e deliberadamente omitida pelos partidos de direita (no primeiro caso para vender notícias mais «apelativas» e no segundo para captar votos, indo ambos à boleia do discurso populista em torno do «subsídio à preguiça» e da «subsídio dependência»). Não fosse assim e talvez se tivesse hoje uma noção mais clara de que o RSI não é apenas um valor pecuniário atribuído aos beneficiários, comportando também o desenvolvimento de ações em diferentes domínios (da escolarização de crianças e jovens ao apoio psicossocial e na organização da vida quotidiana das famílias, do desenvolvimento de competências pessoais e sociais à melhoria da empregabilidade e inserção no mercado de trabalho).
Talvez este desconhecimento generalizado quanto aos processos de acompanhamento técnico e social, que permitam tentar combater pela raiz a exclusão, tenha contribuído para que a direita substituísse com grande facilidade o RSI por «cantinas sociais», recuperando o moralismo e a caridade como eixos centrais de uma «política social» bolorenta e retrógrada, que acabaria por se revelar bastante mais cara e ineficaz. Para a coligação PSD/PP, aos pobres bastava que não morressem de fome e por isso a «sopa» era suficiente, não fosse mais qualquer coisinha desmotivá-los na procura de emprego e levá-los a recusar o baixo salário de que dependia, nos termos do seu projeto político, a competitividade da economia nacional.
Podemos questionar-nos sobre os obstáculos com que uma medida emancipatória como o RSI se confronta. De uma cultura técnica de Serviço Social ainda muito assistencialista (e que portanto tem dificuldade em compreender o «espírito» da medida, concentrando-se mais no julgamento moral e na fiscalização do que na procura e construção de soluções), à própria cristalização (por vezes geracional) das situações de pobreza, passando ainda pela dificuldade em encontrar respostas de inclusão pelo trabalho, a mais robusta das formas de inclusão. O que não podemos é pensar que a exclusão se resolve de modo sustentável encarando os «subsídios» (incluindo o RBI, Rendimento Básico Incondicional) ou as «sopas» como fins em si mesmos, e não como instrumentos de inclusão.
quarta-feira, 20 de julho de 2016
Como é que se diz vitalpolitik em português?
Vital Moreira persiste no erro sobre o ordoliberalismo/neoliberalismo, agora em resposta a uma análise razoável de Francisco Louçã. Eu já aqui tinha escrito sobre este tema, incluindo sobre os mitos do social na economia social de mercado, tal como pensada originalmente pelos ordodoliberais, em resposta a Vital Moreira – Vitalpolitik –, ficando sem resposta. Apesar de tudo, vale a pena insistir em quatro pontos mais ou menos complementares.
Em primeiro lugar, todos os neoliberais relevantes, mas todos mesmo, dos ordoliberais alemães a Hayek e a Friedman, procuraram, sobretudo entre os anos trinta e os sessenta, distinguir entre o liberalismo clássico, supostamente baseado no laissez-faire, e um novo liberalismo económico, assente em regras, que estaria emergindo intelectualmente, podendo o texto de Milton Friedman, de 1951, – “Neo-liberalism and its prospects” – servir de bom e representativo exemplo deste esforço comum; um texto pouco conhecido, mas que o seu principal biógrafo considerou relevante o suficiente para o colocar no livro The Indispensable Milton Friedman, confirmando de resto que a expressão neoliberalismo não é uma invenção dos críticos, mas antes um termo usado ocasionalmente pelos próprios, a começar pelo ordoliberal alemão Alexander Rustow logo em 1938.
Em segundo lugar, as tais regras flexíveis, mas sempre conformes à expansão dos mercados, seriam sobretudo forjadas em, e vigiadas por, instituições protegidas da democracia, dos bancos centrais às autoridades de regulação independentes, favorecendo na prática a transferência de recursos e de poder de baixo para cima. Esta generalidade admite divergências concretas, por exemplo sobre a natureza da concorrência, dentro de um movimento plural, como plurais são todas os feixes de ideias em movimento. A ideia de que o neoliberalismo se resume à Escola de Chicago é totalmente errada. O neoliberalismo é transatlântico desde as origens.
Em terceiro lugar, sendo a economia política alemã do pós-guerra marcada pelo ordoliberalismo, esta versão do neoliberalismo nunca teve aí o monopólio da política pública, felizmente, em particular nos anos sessenta e setenta, quando o movimento operário conseguiu conquistas relevantes. Onde os ordoliberais inscreveram desde muito cedo a sua visão pós-democrática da economia foi na integração europeia, onde os freios e contrapesos sempre foram menores, dada a sua escala e os agentes que aí operam.
Em quarto lugar, qualquer social-democrata consistente só pode dar combate ao neoliberalismo alemão, o ordoliberalismo, de matriz retintamente anti-keynesiana e anti-socialista desde sempre, e aos que procuram esvaziar por dentro o que ainda há de socialista nos partidos socialistas, até que não reste nada de nada, ou seja, até que só restem os Jeroen Dijsselbloem e os 10% ou menos que o seu partido trabalhista tem nas sondagens holandesas. Com a ajuda da sua UE e do seu Euro têm sido eficazes um pouco por todo o lado, reconheça-se, embora haja aqui e ali contramovimento, mas ainda longe de estar à altura do adversário, dado, entre outros, o lastro do europeísmo.
Lançamento: «Segurança Social - Defender a Democracia»
«Considerando as pressões internacionais existentes sobre o Estado português, e sendo este um dos debates atuais mais intensos, "Segurança Social" responde a esta discussão com base em informação estatística e documentos de referência, apresentando a possibilidade de construção de um sistema sólido de Segurança Social. Fruto de uma forte investigação sobre as políticas sociais, "Segurança Social" levanta variadas questões sobre regras sociais e sugere respostas, apresentando as diferentes perspetivas dos autores que, em conjunto, procuram responder a uma preocupação comum: a de que os sistemas de proteção social são formas essenciais da democracia. "Segurança Social" nasceu dos trabalhos das Oficinas sobre Políticas Alternativas e conta com o contributo de outros investigadores em políticas sociais, Manuel Pires, Maria Clara Murteira, Nuno Serra e Ricardo Antunes.»
Lançamento na próxima terça-feira, 26 de Julho, a partir das 18h00, no Centro Cultural de Belém (Sala Amália Rodrigues) em Lisboa. Coordenado por Francisco Louçã, José Luís Albuquerque, Vítor Junqueira e João Ramos de Almeida, o livro «Segurança Social - Defender a Democracia» será apresentado por Ana Feijão (Assessora do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda); Manuel Carvalho da Silva (Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) e Cláudia Joaquim (Secretária de Estado da Segurança Social). Estão todos convidados, apareçam.
terça-feira, 19 de julho de 2016
Leituras
«Temos democracias parlamentares, mas a maioria das decisões é tomada noutros sítios, há um défice democrático nos EUA e na Europa. Não compreendo porque é que Cameron convocou o referendo, foi uma loucura. Julgo que nunca acreditou que iria perder. O resultado deve ser interpretado como um grande voto de protesto. É o equivalente a dizer "não", e as pessoas teriam dito "não" a praticamente tudo. Há um enorme descontentamento que foi canalizado para esse voto. Algum dele não tem nada que ver com a UE, mas é contra a forma como as elites tomaram decisões, disseram às populações que estas decisões beneficiariam todos, e a maioria não viu nenhum benefício no seu nível de vida ou rendimentos. Na verdade, muita gente perdeu nos últimos sete ou oito anos.
Há algumas boas razões para as pessoas se interrogarem sobre para que querem esta UE quando ela faz coisas como fez à Grécia e está neste momento a ameaçar fazer a Portugal. Era suposto ser uma união de ajuda mútua e parece ser uma união cada vez mais com os grandes a porem os pequenos em sentido. Por isso, há algumas boas razões para o voto para lá das que são habitualmente referidas como a xenofobia. Há um lado de xenofobia, mas seria errado interpretar o voto como apenas o resultado disso.»
Da entrevista de David Harvey a Alexandra Prado Coelho, no Público do domingo passado. Da crise imobiliária e financeira à crise da democracia. Das questões do trabalho e do emprego ao «direito à cidade» e à «qualidade de vida» enquanto objetos políticos. «Ler Marx hoje continua a fazer todo o sentido», defende o geógrafo marxista, para quem «foi a urbanização [mesmo nas suas formas mais «insanes»] que salvou a economia capitalista do colapso económico». A ler na íntegra.
segunda-feira, 18 de julho de 2016
O velho sonho de entrar na CGD
Nada disto é novo. A velha questão que se está a perfilar nos mais recentes episódios sobre a Caixa Geral de Depósitos (CGD) é apenas a pressão à abertura ao capital privado - leia-se estrangeiro - da principal instituição financeira nacional que, por acaso, é pública.
O BCE - como supervisor do sistema financeiro europeu - está a tentar reduzir ao máximo o número de instituições financeiras a controlar. E acaba por se comportar como um intermediário dos grandes interesses financeiros internacionais. Foi assim com o Banif. E tudo parece se concretizar no caso da CGD. Nem que isso represente passar por cima da vontade do poder político soberano nacional.
Começou por limitar-se a possibilidade pelo Estado para reforçar o capital da CGD. Depois, face ao absurdo que era a UE permitir o reforço do capital dos bancos privados, mas não o dos públicos, surgem por parte das instâncias comunitárias as limitações à aplicação de verbas públicas por prejudicar as metas orçamentais previstas. Aplicam-se sanções, nem que sejam simbólicas, mas tudo aparenta ter outro objectivo. As metas não são importantes: a meta é a CGD.
E mais recentemente, o FMI vem lembrar que o nosso sistema financeiro tem lacunas de risco sistémico mundial... como se nada se tivesse passado quando cá estiveram.
Neste contexto, o PSD tem-se comportado nos últimos anos como um agente de mão dessa vontade. E Marques Mendes acentua esse disparate, até para o seu próprio partido. Veja-se a recente cronologia.
O BCE - como supervisor do sistema financeiro europeu - está a tentar reduzir ao máximo o número de instituições financeiras a controlar. E acaba por se comportar como um intermediário dos grandes interesses financeiros internacionais. Foi assim com o Banif. E tudo parece se concretizar no caso da CGD. Nem que isso represente passar por cima da vontade do poder político soberano nacional.
Começou por limitar-se a possibilidade pelo Estado para reforçar o capital da CGD. Depois, face ao absurdo que era a UE permitir o reforço do capital dos bancos privados, mas não o dos públicos, surgem por parte das instâncias comunitárias as limitações à aplicação de verbas públicas por prejudicar as metas orçamentais previstas. Aplicam-se sanções, nem que sejam simbólicas, mas tudo aparenta ter outro objectivo. As metas não são importantes: a meta é a CGD.
E mais recentemente, o FMI vem lembrar que o nosso sistema financeiro tem lacunas de risco sistémico mundial... como se nada se tivesse passado quando cá estiveram.
Neste contexto, o PSD tem-se comportado nos últimos anos como um agente de mão dessa vontade. E Marques Mendes acentua esse disparate, até para o seu próprio partido. Veja-se a recente cronologia.
domingo, 17 de julho de 2016
Euro-visões que nos custaram mesmo muito caro
Quando as coisas apertam, não há como apelar à tradição inventada dos grandes líderes europeus, procurando inspiração na sua visão. Para não irmos mais longe, podemos procurar inspiração em Helmut Kohl, François Mitterrand ou Jacques Delors. Podemos procurar inspiração no Tratado de Maastricht, a sua grande obra. É claro que logo em 1992 uns economistas chatos e anacrónicos, caso de um tal de Wynne Godley, na tradição keynesiana de Cambridge, disseram mal de tal visão, com a seguinte previsão de padrões:
“A ideia central do Tratado de Maastricht é a de que os países da Comunidade Europeia devem avançar para a união económica e monetária, com uma moeda única gerida por um banco central independente. Mas como é que a restante política económica deve ser conduzida? Dado que o Tratado não propõe qualquer instituição para lá do banco europeu, os seus patrocinadores têm de presumir que nada mais seja necessário. Mas isto só seria correcto se as economias modernas fossem sistemas auto-regulados sem necessidade de qualquer gestão (…) [O] poder de emitir a sua própria moeda, de recorrer ao financiamento do seu próprio banco central, é a principal dimensão da independência nacional. Se um país perde este poder é reduzido ao estatuto de uma autoridade local ou de uma colónia. As autoridades locais e regionais não podem desvalorizar, mas também não podem financiar-se através da criação monetária, enquanto os outros métodos de financiamento estão sujeitos a regulação central. E também não podem mexer nas taxas de juro. Como as autoridade locais não possuem instrumentos de política macroeconómica, as suas escolhas políticas são reduzidas a assuntos menores, um pouco mais de educação aqui, um pouco menos de infraestrutura ali (…) Se um país não pode desvalorizar e não recebe transferências orçamentais niveladoras, então nada deterá um processo cumulativo de declínio terminal, culminando, no fim, na emigração, como única alternativa à pobreza e à fome.”
sábado, 16 de julho de 2016
Euro-fantasias que nos custaram muito caro
Houve economistas que perceberam muito bem a perversidade da criação do euro. Um deles, Rudiger Dornbusch, escreveu isto (Foreign Affairs, September 1, 1996 - Euro Fantasies: Common Currency as Panacea):
A luta para alcançar a união monetária, na fórmula de Maastricht, pode vir a ser recordada como uma das mais inúteis batalhas da história europeia. Os custos para lá chegar são grandes, os benefícios económicos pequenos, e a probabilidade de um desaire enorme. (…)
A crítica da UEM mais séria é a de que, abandonando os ajustamentos pela taxa de câmbio, transfere para o mercado do trabalho a tarefa de ajustar a competitividade e os preços relativos [produção interna versus produção importada] (…)
Se uma região entra em declínio porque, por exemplo, as suas exportações se tornaram obsoletas, a deflação tem que desempenhar o papel da desvalorização. (…)
Nas regiões atrasadas o desemprego aumentará, assim como os problemas sociais e as queixas contra a integração. (…) Se as taxas de câmbio são abandonadas, enquanto instrumento económico, qualquer outra coisa terá de ocupar o seu lugar. Os promotores de Maastricht cautelosamente evitaram dizer qual seria essa outra coisa. Mercado de trabalho competitivo é a resposta, mas essa é uma palavra feia numa Europa do Bem-Estar social.(Também publicado aqui)
sexta-feira, 15 de julho de 2016
Teatro de um mundo complexo
“Città del Vaticano” é uma peça que integra o programa do Festival de Teatro de Almada de 2016. Como o título indicia, trata-se de uma crítica feroz (e algo parcial) à estrutura hierárquica e às práticas da Igreja Católica, feita por jovens que a viveram por dentro. Na verdade, a peça é muito mais do que isso: ela oferece uma análise profunda da Europa dos dias de hoje. E é por isso que trago aqui o assunto à baila.
É mais fácil compreender “Città del Vaticano” começando pelo fim. Na última cena um dos actores/personagens, Gabriel (nesse momento estava a fazer dele próprio), reproduz a carta que escreveu ao seu filho que está para nascer. Explica-lhe que ele e o seu namorado decidiram ser pais, contando com ajuda de Tatjana (outro membro do elenco e sua ex-namorada) para levar o projecto avante. A criança que está para nascer é profundamente desejada e terá à sua espera uma família que a ama. Uma família com dois pais e uma mãe, diferente de outras mas não menos família por isso. O mundo é um lugar complexo e o objectivo da carta é preparar a criança para essa complexidade.
Neste mundo, explica Gabriel, há dez mil tipos de família. E há também dez mil formas de acreditar em Deus. Quando crescer, o filho terá de escolher o tipo de família que quer constituir (se quiser constituir família) e o Deus em que quer acreditar (se quiser acreditar em algum). Terá também de escolher em que país quer viver e até que nacionalidade quer ter – como aconteceu com o próprio Gabriel, que é francês e filho de portugueses, vivendo e trabalhando na Bélgica e em Itália, passando grande parte do seu tempo em viagem pela Europa. Ou como a mãe Tatjana, com origens portuguesas, suíças e alemãs, também ela a viver em Bruxelas.
Talvez quando a criança crescer as coisas já não sejam assim na Europa. Pode ser que trabalhar e viver em diferentes países já não seja tão fácil. Pode ser que cidades como Veneza, Estocolmo, Amesterdão e Lisboa tenham sido alagadas devido às alterações climáticas. Pode ser que a Europa já não seja aquele continente onde se pode passear tranquilamente pelas ruas, vendo arte e cultura espalhados por toda a parte. Ou onde se pode estar simplesmente sentado numa esplanada no centro de uma cidade, a beber um copo de vinho e a ler um jornal.
Mas Gabriel lembra ao seu filho que esta não é a Europa de toda a gente que por aqui habita. Muitos daqueles que cresceram na Europa nunca viveram ou trabalharam noutros países – ou só o fizeram por desespero. Muitos nunca puderam visitar Veneza ou Amesterdão, poucos têm possibilidade de se sentar numa esplanada do centro de Paris a beber champanhe. Para aqueles que vivem nos bairros sociais dos arredores de Paris (e de muitas outras cidades), o medo e a insegurança não são novidade. Para estes, a novidade consiste em perceber que aqueles que sempre os trataram como cidadãos de segunda categoria hoje vivem o medo e a insegurança na pele – e não conseguem deixar de sentir algum prazer por isso.
O filho de Tatjana, de Gabriel e do seu namorado nascerá numa Europa apanhada entre a recessão económica, o desemprego e a precariedade, as desigualdades e as exclusões sociais profundas, a crise dos refugiados, os ataques terroristas, o medo e a insegurança generalizados – e os movimentos nacionalistas e xenófobos que se alimentam deste caldo, fomentando o ódio aos estrangeiros, às minorias étnicas, aos judeus e aos muçulmanos, aos homossexuais e a todas as pessoas que defendem ideias diferentes.
É um mundo complexo, este – para o qual temos de estar preparados, pelo qual vale a pena lutar e que, se tudo correr bem, a criança que está para nascer vai gostar de conhecer.
É mais fácil compreender “Città del Vaticano” começando pelo fim. Na última cena um dos actores/personagens, Gabriel (nesse momento estava a fazer dele próprio), reproduz a carta que escreveu ao seu filho que está para nascer. Explica-lhe que ele e o seu namorado decidiram ser pais, contando com ajuda de Tatjana (outro membro do elenco e sua ex-namorada) para levar o projecto avante. A criança que está para nascer é profundamente desejada e terá à sua espera uma família que a ama. Uma família com dois pais e uma mãe, diferente de outras mas não menos família por isso. O mundo é um lugar complexo e o objectivo da carta é preparar a criança para essa complexidade.
Neste mundo, explica Gabriel, há dez mil tipos de família. E há também dez mil formas de acreditar em Deus. Quando crescer, o filho terá de escolher o tipo de família que quer constituir (se quiser constituir família) e o Deus em que quer acreditar (se quiser acreditar em algum). Terá também de escolher em que país quer viver e até que nacionalidade quer ter – como aconteceu com o próprio Gabriel, que é francês e filho de portugueses, vivendo e trabalhando na Bélgica e em Itália, passando grande parte do seu tempo em viagem pela Europa. Ou como a mãe Tatjana, com origens portuguesas, suíças e alemãs, também ela a viver em Bruxelas.
Talvez quando a criança crescer as coisas já não sejam assim na Europa. Pode ser que trabalhar e viver em diferentes países já não seja tão fácil. Pode ser que cidades como Veneza, Estocolmo, Amesterdão e Lisboa tenham sido alagadas devido às alterações climáticas. Pode ser que a Europa já não seja aquele continente onde se pode passear tranquilamente pelas ruas, vendo arte e cultura espalhados por toda a parte. Ou onde se pode estar simplesmente sentado numa esplanada no centro de uma cidade, a beber um copo de vinho e a ler um jornal.
Mas Gabriel lembra ao seu filho que esta não é a Europa de toda a gente que por aqui habita. Muitos daqueles que cresceram na Europa nunca viveram ou trabalharam noutros países – ou só o fizeram por desespero. Muitos nunca puderam visitar Veneza ou Amesterdão, poucos têm possibilidade de se sentar numa esplanada do centro de Paris a beber champanhe. Para aqueles que vivem nos bairros sociais dos arredores de Paris (e de muitas outras cidades), o medo e a insegurança não são novidade. Para estes, a novidade consiste em perceber que aqueles que sempre os trataram como cidadãos de segunda categoria hoje vivem o medo e a insegurança na pele – e não conseguem deixar de sentir algum prazer por isso.
O filho de Tatjana, de Gabriel e do seu namorado nascerá numa Europa apanhada entre a recessão económica, o desemprego e a precariedade, as desigualdades e as exclusões sociais profundas, a crise dos refugiados, os ataques terroristas, o medo e a insegurança generalizados – e os movimentos nacionalistas e xenófobos que se alimentam deste caldo, fomentando o ódio aos estrangeiros, às minorias étnicas, aos judeus e aos muçulmanos, aos homossexuais e a todas as pessoas que defendem ideias diferentes.
É um mundo complexo, este – para o qual temos de estar preparados, pelo qual vale a pena lutar e que, se tudo correr bem, a criança que está para nascer vai gostar de conhecer.
Submetemo-nos de vez, ou acabamos com o protectorado?
Os analistas da direita chamam a nossa atenção para a ameaça de sanções a Portugal e a possibilidade de isso vir a gerar desconfiança nos mercados, o que fará subir as taxas de juro que o Tesouro terá de pagar por novas emissões de dívida. Partem do pressuposto de que a decisão de compra e venda das obrigações de Portugal depende da confiança que a nossa economia e o nosso governo inspiram. No actual contexto, nada de mais errado.
Se a desconfiança fosse o factor determinante, as taxas nunca teriam baixado desde 2012 pela simples razão de que um governo endividado em moeda de que não é soberano, amarrado num colete de forças jurídico que fez dele um protectorado sem política económica, não tem qualquer possibilidade de pagar uma dívida insustentável. Por muita austeridade que aplique, como o próprio Fundo Monetário admite. De facto, só a política monetária do BCE, ameaçando comprar tudo no mercado secundário ou, desde há algum tempo com o Quantitative Easing, comprando um montante fixo mensal, têm mantido as taxas de juro num estado de acalmia.
Porém, a resistência do Governo às aplicação de medidas de austeridade adicionais (leia-se: recusa da total submissão) suscitou a raiva dos falcões do Eurogrupo, da CE e do BCE. Isso foi motivo bastante para, invocando a necessária "prudência" (a mesma que teve de adoptar com a Grécia), desde Março o BCE ter passado a comprar dívida pública portuguesa em quantidades muito abaixo do nível a que vinha fazendo ("travagem a fundo", regozija-se o Observador). É esta dinâmica que António Costa e os seus aliados não podem contrariar, por muito que protestem.
Portanto, mais dia menos dia, o PS e o BE terão de fazer a escolha que até hoje têm evitado sequer enunciar: submetemo-nos de vez, ou acabamos com o protectorado?
E não me venham dizer que o povo não está preparado porque essa foi a desculpa de Tsipras e será sempre a de todos os que se recusam a prepará-lo para enfrentar a realidade. A preparação já devia estar a ser feita, enunciando com rigor a escolha que vem a caminho. A quem interessa a voz grossa dos que apoiam o governo, mas evitam falar com clareza do que aí vem? A quem interessa o discurso da indignação do BE, exigindo um referendo ao Tratado Orçamental, dessa forma legitimando a entrega da soberania que a formulação da pergunta, sob a forma de referendo, por si só significa?
(Também publicado aqui)
Zona de festa
E eis que acontece o que estava previsto.
Mais um atentado em França - sempre em França. Os mesmos responsáveis políticos fazem declarações guerreiras, com a mesma eficácia das anteriores. No dia da Liberdade, Hollande prolonga o estado de emergência por mais três meses e declara que vão prosseguir as iniciativas militares no Iraque e na Síria. "Continuaremos a fustigar quem nos ataca no nosso próprio solo", é uma triste resposta de Hollande que não tem tido qualquer pejo de agir fora do "seu" solo. Desde 2001, que ouvimos estes peitos cheios de ar que, a coberto de agendas bem mais obscuras, redundam em centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados.
Ao mesmo tempo que se espalha a destruição no exterior da Europa - ainda vista como uma bolha de segurança para as pessoas que vivem nesses países atormentados e que são atraídos para a paz como por uma forte luz - os cidadãos europeus vão apanhando com os estilhaços da guerra feita fora de casa. E vão assistindo - repita-se, assistindo - a uma sociedade cada vez mais fechada e militarizada, repleta de Green-zones e Fun-zones.
Se a União Europeia se desconstrói e desmorona como um prédio a implodir em câmara lenta, muito se deve a toda à sua política monetária/cambial e à sua política externa, entregue aos seus Estados membros sob a forma de venda de armamento, apoio militante a facções nos terrenos circundantes, incursões militares. Tudo acompanhado internamente por uma subida da extrema-direita em diversos países e uma desconfiança em crescendo.
Se o objectivo foi premeditado, tem sido um sucesso.
Mais um atentado em França - sempre em França. Os mesmos responsáveis políticos fazem declarações guerreiras, com a mesma eficácia das anteriores. No dia da Liberdade, Hollande prolonga o estado de emergência por mais três meses e declara que vão prosseguir as iniciativas militares no Iraque e na Síria. "Continuaremos a fustigar quem nos ataca no nosso próprio solo", é uma triste resposta de Hollande que não tem tido qualquer pejo de agir fora do "seu" solo. Desde 2001, que ouvimos estes peitos cheios de ar que, a coberto de agendas bem mais obscuras, redundam em centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados.
Ao mesmo tempo que se espalha a destruição no exterior da Europa - ainda vista como uma bolha de segurança para as pessoas que vivem nesses países atormentados e que são atraídos para a paz como por uma forte luz - os cidadãos europeus vão apanhando com os estilhaços da guerra feita fora de casa. E vão assistindo - repita-se, assistindo - a uma sociedade cada vez mais fechada e militarizada, repleta de Green-zones e Fun-zones.
Se a União Europeia se desconstrói e desmorona como um prédio a implodir em câmara lenta, muito se deve a toda à sua política monetária/cambial e à sua política externa, entregue aos seus Estados membros sob a forma de venda de armamento, apoio militante a facções nos terrenos circundantes, incursões militares. Tudo acompanhado internamente por uma subida da extrema-direita em diversos países e uma desconfiança em crescendo.
Se o objectivo foi premeditado, tem sido um sucesso.
quinta-feira, 14 de julho de 2016
Coincidências
Ontem participei num animado debate em Lisboa sobre o Brexit na livraria Tigre de Papel, um agradável espaço situado na Rua de Arroios, onde por acaso já morei nos meus tempos de Lisboa. Na livraria estava a venda, por 50 cêntimos, um livro, de 1992, intitulado The Times Guide to the Single European Market (guia do Times para o mercado único europeu), que me foi simpaticamente oferecido. Uma boa recordação do debate. Abro o livro e encontro este aviso, de 1991, de Nigel Lawson, Ministro das Finanças de Margaret Thatcher, a do no, no, no: “Nada seria mais adequado para favorecer o crescimento da Frente Nacional do senhor Le Pen do que a criação de uma união monetária”. Um quarto de século depois a filha aí está.
quarta-feira, 13 de julho de 2016
Por que andamos a ser ameaçados com sanções
É o que procuro explicar neste vídeo em menos de cinco minutos (numa parceria com o Nuno Fonseca).
“Portugal está sob a ameaça de sanções por parte das lideranças europeias. O motivo apresentado foi o incumprimento das metas orçamentais no período de 2013 a 2015. Na verdade, estas ameaças são acima de tudo uma forma de chantagem, cujo objectivo não podemos ignorar: trata-se de fazer regressar a Portugal a estratégia da austeridade.
Depois de cinco anos de degradação social, as lideranças europeias entendem que Portugal precisa de prosseguir com a redução dos direitos sociais e laborais, ameaçando com a possibilidade de sanções financeiras caso isso não se verifique.
Qual o sentido disto tudo?
Os que defendem a aplicação de sanções dizem que para o euro funcionar têm de existir regras, e que essas regras têm de ser cumpridas.
Mas há duas perguntas que temos de fazer:
• quais são os impactos da aplicação dessas regras?
• e quem beneficia com elas?
Segundo as regras em vigor, quando um país é atingido por um choque económico significativo, sejam quais forem as razões desse choque, não lhe resta outra alternativa senão agravar a recessão, aumentando o desemprego, a emigração e a destruição das capacidades produtivas – como sabemos por experiência própria.
As regras em vigor também obrigam as economias a ser mais flexíveis, ou seja, a facilitar os despedimentos e a reduzir os direitos sociais. Dizem os defensores desta lógica que o euro só é viável se as economias forem flexíveis. Dizem também que se essa flexibilidade existir, todos os países beneficiarão com a integração económica e monetária.
Esta lógica, porém, ignora um facto básico: os países da União Europeia têm estruturas produtivas profundamente distintas e níveis de desenvolvimento muito desiguais. Não é por se tornarem ainda mais flexíveis, ou por adoptarem políticas orçamentais rigorosas, que as economias mais frágeis vão conseguir lidar com aquelas diferenças, sem terem de sujeitar as suas populações a um sofrimento prolongado.
Dou um exemplo: a percentagem de pessoas que trabalha em sectores de actividade intensivos em conhecimento é de cerca de 1/3 na Alemanha e na Holanda, mas de apenas 1/5 em Portugal ou na Grécia.
Outro exemplo: enquanto a Holanda e a Alemanha são sede de várias empresas-líder nos mercados globais, este tipo de empresas não existe em países como a Grécia e Portugal, onde predominam as empresas de muito pequena dimensão.
Estas diferenças implicam que as políticas económicas da União Europeia que interessam a uns países não interessam necessariamente aos outros. E as políticas que têm vindo a ser seguidas raramente são as que mais interessam a países como Portugal.
Pensemos em algumas opções decisivas que foram tomadas pela União Europeia desde a viragem do século:
• o alargamento a Leste
• os acordos de comércio e investimento com as economias emergentes da Ásia
• ou a política de Euro forte
Estas opções foram muito favoráveis para países com estruturas económicas mais robustas. Porém, tiveram efeitos devastadores em países como Portugal.
O mesmo se verifica com as principais medidas que foram tomadas nos tempos mais recentes – o Tratado Orçamental, a União Bancária, a imposição das chamadas “reformas estruturais”. Todas elas têm tornado a União Europeia anda mais desigual.
Na verdade, para muitos interesses económicos a divergência entre países da União Europeia não constitui um problema, pelo contrário. É do interesse das empresas multinacionais dos países mais ricos da União Europeia manter os salários baixos nos países da periferia: isso permite-lhes produzir a custos baixos dentro do continente europeu; além disso, como bem sabemos, leva muitos trabalhadores qualificados a fugir das periferias (onde não encontram emprego) para as economias centrais, que beneficiam assim de mão-de-obra qualificada que não tiveram de formar.
Também para os grupos financeiros dos países mais ricos da União Europeia interessa manter as periferias num estado permanente de crise. Como se sabe, quando há incerteza os investidores internacionais fogem das economias mais frágeis em direcção às mais fortes. Isto é hoje bem visível, com o valor dos bancos do sul da Europa a cair a pique, enquanto os países mais ricos atraem cada vez mais capitais, conseguindo até financiar-se a taxas de juro negativas.
Aqueles que defendem as regras em vigor afirmam que elas permitirão à União Monetária funcionar sem grandes sobressaltos no futuro. Mas o que temos de perceber é que a ausência de sobressaltos na zona euro não garante a melhoria do bem-estar para todas as populações europeias.
Pelo contrário: a imposição das regras em vigor na União Europeia tem como resultado a redução da coesão económica e social – exactamente o contrário do que nos disseram que a União Europeia pretendia ser.
E é precisamente em nome dos valores da solidariedade e da coesão na Europa, que devemos rejeitar a ameaça de sanções a Portugal, bem como as regras em que elas se baseiam.”
“Portugal está sob a ameaça de sanções por parte das lideranças europeias. O motivo apresentado foi o incumprimento das metas orçamentais no período de 2013 a 2015. Na verdade, estas ameaças são acima de tudo uma forma de chantagem, cujo objectivo não podemos ignorar: trata-se de fazer regressar a Portugal a estratégia da austeridade.
Depois de cinco anos de degradação social, as lideranças europeias entendem que Portugal precisa de prosseguir com a redução dos direitos sociais e laborais, ameaçando com a possibilidade de sanções financeiras caso isso não se verifique.
Qual o sentido disto tudo?
Os que defendem a aplicação de sanções dizem que para o euro funcionar têm de existir regras, e que essas regras têm de ser cumpridas.
Mas há duas perguntas que temos de fazer:
• quais são os impactos da aplicação dessas regras?
• e quem beneficia com elas?
Segundo as regras em vigor, quando um país é atingido por um choque económico significativo, sejam quais forem as razões desse choque, não lhe resta outra alternativa senão agravar a recessão, aumentando o desemprego, a emigração e a destruição das capacidades produtivas – como sabemos por experiência própria.
As regras em vigor também obrigam as economias a ser mais flexíveis, ou seja, a facilitar os despedimentos e a reduzir os direitos sociais. Dizem os defensores desta lógica que o euro só é viável se as economias forem flexíveis. Dizem também que se essa flexibilidade existir, todos os países beneficiarão com a integração económica e monetária.
Esta lógica, porém, ignora um facto básico: os países da União Europeia têm estruturas produtivas profundamente distintas e níveis de desenvolvimento muito desiguais. Não é por se tornarem ainda mais flexíveis, ou por adoptarem políticas orçamentais rigorosas, que as economias mais frágeis vão conseguir lidar com aquelas diferenças, sem terem de sujeitar as suas populações a um sofrimento prolongado.
Dou um exemplo: a percentagem de pessoas que trabalha em sectores de actividade intensivos em conhecimento é de cerca de 1/3 na Alemanha e na Holanda, mas de apenas 1/5 em Portugal ou na Grécia.
Outro exemplo: enquanto a Holanda e a Alemanha são sede de várias empresas-líder nos mercados globais, este tipo de empresas não existe em países como a Grécia e Portugal, onde predominam as empresas de muito pequena dimensão.
Estas diferenças implicam que as políticas económicas da União Europeia que interessam a uns países não interessam necessariamente aos outros. E as políticas que têm vindo a ser seguidas raramente são as que mais interessam a países como Portugal.
Pensemos em algumas opções decisivas que foram tomadas pela União Europeia desde a viragem do século:
• o alargamento a Leste
• os acordos de comércio e investimento com as economias emergentes da Ásia
• ou a política de Euro forte
Estas opções foram muito favoráveis para países com estruturas económicas mais robustas. Porém, tiveram efeitos devastadores em países como Portugal.
O mesmo se verifica com as principais medidas que foram tomadas nos tempos mais recentes – o Tratado Orçamental, a União Bancária, a imposição das chamadas “reformas estruturais”. Todas elas têm tornado a União Europeia anda mais desigual.
Na verdade, para muitos interesses económicos a divergência entre países da União Europeia não constitui um problema, pelo contrário. É do interesse das empresas multinacionais dos países mais ricos da União Europeia manter os salários baixos nos países da periferia: isso permite-lhes produzir a custos baixos dentro do continente europeu; além disso, como bem sabemos, leva muitos trabalhadores qualificados a fugir das periferias (onde não encontram emprego) para as economias centrais, que beneficiam assim de mão-de-obra qualificada que não tiveram de formar.
Também para os grupos financeiros dos países mais ricos da União Europeia interessa manter as periferias num estado permanente de crise. Como se sabe, quando há incerteza os investidores internacionais fogem das economias mais frágeis em direcção às mais fortes. Isto é hoje bem visível, com o valor dos bancos do sul da Europa a cair a pique, enquanto os países mais ricos atraem cada vez mais capitais, conseguindo até financiar-se a taxas de juro negativas.
Aqueles que defendem as regras em vigor afirmam que elas permitirão à União Monetária funcionar sem grandes sobressaltos no futuro. Mas o que temos de perceber é que a ausência de sobressaltos na zona euro não garante a melhoria do bem-estar para todas as populações europeias.
Pelo contrário: a imposição das regras em vigor na União Europeia tem como resultado a redução da coesão económica e social – exactamente o contrário do que nos disseram que a União Europeia pretendia ser.
E é precisamente em nome dos valores da solidariedade e da coesão na Europa, que devemos rejeitar a ameaça de sanções a Portugal, bem como as regras em que elas se baseiam.”
Do divórcio europeu e da desunião da Europa
O Portal da Opinião Pública da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) reúne resultados de inquéritos e sondagens sobre diversos temas (política, economia, religião, trabalho, etc.). Curiosamente, nas questões mais expectáveis do Eurobarómetro sobre a União Europeia («avaliação de pertença à UE» ou «benefício em pertencer à União Europeia»), a série de dados termina em 2011. E portanto, para se dispor de informação sistematizada sobre o sentimento político atual dos europeus face à Europa apenas sobram duas questões: «confiança na Comissão Europeia» e «confiança no Parlamento Europeu».
Relativamente à Comissão Europeia (CE), o principal motor da governação da UE, os resultados são particularmente expressivos: a desconfiança instalou-se e tem vindo a aumentar de forma galopante desde 2010. Se em 2007 eram 16 (em 27) os países a expressar níveis de confiança iguais ou superiores a 70%, esse número passa para apenas 5 em 2010, para 3 em 2012 e para «zero» desde então. Paralelamente, cresce sem cessar o número de países com níveis de confiança abaixo de 50%: nunca foram mais de 2 até 2009 e passam a ser 22 em 2015 (80%). Mais: se em 2009 apenas um país registava níveis de confiança inferiores a 30% (o Reino Unido, pois claro), em 2015 passam a ser 5 em 27 Estados membros (cerca de 18%).
Desengane-se porém quem acha que a desconfiança traduz apenas o efeito da imposição de políticas de austeridade à periferia europeia (onde a média da percentagem de pessoas que confiam na CE passa de 70 para 33% entre 2004 e 2015). Não. A quebra de confiança é generalizada e atinge também os países do centro europeu (com uma redução dos valores de 59 para 43%) e do leste europeu (de 69 para 42%, no mesmo período). Mais: os Estados membros da periferia europeia, que eram os que relevavam maior confiança na CE em 2004, são os que agora apresentam níveis de desconfiança mais elevados, demonstrando assim que o aprofundamento de clivagens e divergências entre os países também passa por aqui. Em termos globais, a confiança na Comissão Europeia cai 26 pontos percentuais em apenas doze anos, entrando no negativo a partir de 2013.
No divórcio crescente com os povos europeus, o ponto de rutura é indisfarçável: 2010, o ano em que as «instituições» escolhem a austeridade moralista e punitiva como resposta à crise do euro, quando esta começa por se manifestar na Grécia. Se dúvidas restassem, o tempo encarregar-se-ia de as dissipar: cinco anos depois, os sacrifícios redentores da «austeridade expansionista» (corte de salários e pensões, desregulação do mercado de trabalho, desmantelamento de serviços públicos, política de privatizações, etc.) falharam em toda a linha. A opção pela austeridade, enquadrada por uma arquitetura europeia blindada e disfuncional, que foi cerceando a margem de manobra dos Estados, não só resolveu nenhum problema como agravou a divergência entre os povos europeus. Com o descrédito e o mal-estar a instalar-se, mesmo que fundados em razões muito diversas (da revolta na periferia pelos sacrifícios inúteis à recusa dos países do centro em reforçar as «ajudas» para «resgates»), a Europa faria bem em prestar a devida atenção ao que se está a passar e arrepiar caminho. Se quiser, claro. Sinais é coisa que não falta.
Relativamente à Comissão Europeia (CE), o principal motor da governação da UE, os resultados são particularmente expressivos: a desconfiança instalou-se e tem vindo a aumentar de forma galopante desde 2010. Se em 2007 eram 16 (em 27) os países a expressar níveis de confiança iguais ou superiores a 70%, esse número passa para apenas 5 em 2010, para 3 em 2012 e para «zero» desde então. Paralelamente, cresce sem cessar o número de países com níveis de confiança abaixo de 50%: nunca foram mais de 2 até 2009 e passam a ser 22 em 2015 (80%). Mais: se em 2009 apenas um país registava níveis de confiança inferiores a 30% (o Reino Unido, pois claro), em 2015 passam a ser 5 em 27 Estados membros (cerca de 18%).
Desengane-se porém quem acha que a desconfiança traduz apenas o efeito da imposição de políticas de austeridade à periferia europeia (onde a média da percentagem de pessoas que confiam na CE passa de 70 para 33% entre 2004 e 2015). Não. A quebra de confiança é generalizada e atinge também os países do centro europeu (com uma redução dos valores de 59 para 43%) e do leste europeu (de 69 para 42%, no mesmo período). Mais: os Estados membros da periferia europeia, que eram os que relevavam maior confiança na CE em 2004, são os que agora apresentam níveis de desconfiança mais elevados, demonstrando assim que o aprofundamento de clivagens e divergências entre os países também passa por aqui. Em termos globais, a confiança na Comissão Europeia cai 26 pontos percentuais em apenas doze anos, entrando no negativo a partir de 2013.
No divórcio crescente com os povos europeus, o ponto de rutura é indisfarçável: 2010, o ano em que as «instituições» escolhem a austeridade moralista e punitiva como resposta à crise do euro, quando esta começa por se manifestar na Grécia. Se dúvidas restassem, o tempo encarregar-se-ia de as dissipar: cinco anos depois, os sacrifícios redentores da «austeridade expansionista» (corte de salários e pensões, desregulação do mercado de trabalho, desmantelamento de serviços públicos, política de privatizações, etc.) falharam em toda a linha. A opção pela austeridade, enquadrada por uma arquitetura europeia blindada e disfuncional, que foi cerceando a margem de manobra dos Estados, não só resolveu nenhum problema como agravou a divergência entre os povos europeus. Com o descrédito e o mal-estar a instalar-se, mesmo que fundados em razões muito diversas (da revolta na periferia pelos sacrifícios inúteis à recusa dos países do centro em reforçar as «ajudas» para «resgates»), a Europa faria bem em prestar a devida atenção ao que se está a passar e arrepiar caminho. Se quiser, claro. Sinais é coisa que não falta.
Do Brexit ao Italexit?
Hoje à tarde participo, com Isabel Moreira e Álvaro Vasconcelos, num debate sobre o Brexit: andarei algures entre a repetição dos agradecimentos ao povo britânico e, como isto anda tudo ligado, a próxima crise, a da banca italiana, a enésima ilustração da inanidade, na melhor das hipóteses, da integração realmente existente: segundo a insuspeita The Economist, só será possível fazer aí alguma coisa de jeito, em matéria de capitalização bancária com dinheiros públicos, claro, suspendendo as regras da aberrante união bancária, o que diz tudo sobre tudo que importa nesta economia política. E talvez nem assim, direi eu: é que, cá como lá, não há banca que sobreviva a uma economia estagnada há duas décadas, que sobreviva ao crédito malparado que aí já atinge 18% do total, que sobreviva ao Euro. A banca acaba também por pagar, ironia, a austeridade inscrita num Euro que apoiou. E é preciso não esquecer que na Itália a dívida é sobretudo interna, detida por aforradores italianos, o que faz dos lesados do BES e do Banif uma brincadeira de crianças quando os credores forem chamados a pagar no contexto de resoluções na nossa senda. O bufão Renzi terá de fazer qualquer coisa para sobreviver a um referendo sobre política interna, mas com impactos externos. Bom, estou a divagar. Lá pelo meio, conto visitar uns becos intelectuais sem sardinheiras, onde vivem muitos intelectuais europeístas, incluindo alguns ditos de esquerda, os que confundem género humano com Manuel Germano.
Tem de haver muitos jornalistas fartos disto tudo
«Não é possível que quem manda no jornalismo em Portugal seja defensor de uma só ideia. Não é possível que todos queiram mais austeridade e que esse querer esteja meramente associado a "interesses" económicos. Também não é possível que todos queiram Passos Coelho de volta ou, simplesmente, o fim de um governo de "esquerda". O que se passa? É que, na verdade, quem tem actualmente poder num jornal, numa televisão, regra geral, tem um sentido de argumentação único ou quase. O caso das sanções é paradigmático. E chega-se a cúmulos cada vez mais altos.
Comecemos pelo início. A Comissão Europeia está obrigada a velar pelo cumprimento do Tratado Orçamental. É a lei. Um país que não cumpre o tratado deve ser sancionado. Em quanto? Depois se vê. Pode até ser zero. Estou a falar de países fracos, claro. Nenhum jornalista com responsabilidade disse isto. Ainda não ouvi nenhum, pelo menos. Depois, as sanções, objectivamente, são relativas a 2015 e a anos anteriores. Isso até concedem, de tão evidente que é, mas logo a seguir acrescenta-se um "toda a gente sabe" que as sanções são também para pedir um Plano B ao actual Governo. Prova? Nenhuma, que isto não é jornalismo, na verdade. Depois, os mercados, mas como é que os mercados não respondem?, perguntou alguém. Isso não interessa. O que interessa é que o Governo não "arrepia caminho" e daí as sanções. E por aí fora.
Mas de onde vem tanta falta de rigor, tanta invenção? Será que serve aos "grandes interesses"? O Brexit, que aparentemente não é do agrado desses tais grandes interesses, na Grã-Bretanha, e que foi em larga medida provocado por esta forma de jornalismo, é prova de que isso pode não ser bem assim. Será que serve a Passos Coelho? Claro que serve. Mas acreditamos mesmo que toda esta gente está a trabalhar para um ex-primeiro ministro? Mesmo que isso fosse possível, não chegaria como explicação. Proponho outra, pelo menos complementar. Durante cinco anos ou mais, os jornalistas da "frente" foram bombardeados com uma ideia, uma ideia única em que acabaram por acreditar. Foram cuidadosamente conversados, com entrevistas "exclusivas", com depoimentos, com press releases, com tudo e mais alguma coisa. Agora, não têm outra ideia e estão pregados a essa que lhes foi entregue. Chegaram a um beco sem saída. Claro que o caso é mais geral, pois é comum acreditar-se que Portugal não é a Suíça por causa dos políticos e, em particular, de um tipo de políticos. Mas o beco tem saída, a saída do conhecimento, da informação, da satisfação intelectual, diria. Dá é trabalho. Há seguramente excepções, óptimas excepções, mas que têm um espaço de trabalho nulo ou quase. Também posso estar a ver mal, claro. Na verdade, seria talvez preciso fazer alguma coisa, alguma reflexão, dentro da classe. Tem de haver muitos jornalistas fartos disto tudo.»
Pedro Lains, Uma tentativa de explicação
terça-feira, 12 de julho de 2016
Sem saída 2
Viver o dia-a-dia é um imenso exercício de ansiedade.
E começo logo de manhã ao ouvir a Helena Garrido na Antena 1 a comentar estranhas coisas que devem ser objecto de reflexão governamental:
1) que a OCDE vem dizer que Portugal é dos países com salários mais baixos e insegurança no trabalho, quando tanto a OCDE (vidé Álvaro Santos Pereira...) como a própria Helena Garrido sempre defenderam a redução dos salários nominais e o despedimento livre como forma de modernização;
2) que defender a soberania nacional é populismo, algo só próprio do Estado Novo (sic!);
3) que já vimos onde foi parar esse nacionalismo populista, como no Reino Unido...
Não acredita? Eu também não quis acreditar quando ouvi, mas veja:
Como dizia a Sophia: Quando, num casal, os dois pensam o mesmo, há um que não pensa.
E começo logo de manhã ao ouvir a Helena Garrido na Antena 1 a comentar estranhas coisas que devem ser objecto de reflexão governamental:
1) que a OCDE vem dizer que Portugal é dos países com salários mais baixos e insegurança no trabalho, quando tanto a OCDE (vidé Álvaro Santos Pereira...) como a própria Helena Garrido sempre defenderam a redução dos salários nominais e o despedimento livre como forma de modernização;
2) que defender a soberania nacional é populismo, algo só próprio do Estado Novo (sic!);
3) que já vimos onde foi parar esse nacionalismo populista, como no Reino Unido...
Não acredita? Eu também não quis acreditar quando ouvi, mas veja:
"Assistimos num novo tom de apelos ao nacionalismo e ao patriotismo, em que o governo e o Bloco de Esquerda assumem um protagonismo grande, em que nem consigo entender, uma vez que tudo isto tem raízes no Estado Novo e o PS foi um partido central com o PCP no combate a tudo o que de negativo tinha o Estado Novo que era colocar o país a preto e branco, isolado do resto do mundo. (...) O nacionalismo corre o risco de afastar mais investimento estrangeiro", etc., etc.A confusão pode ser fruto de muita coisa, nomeadamente da superficialidade de conhecimentos, em particular sobre o Estado Novo. Mas há algo de doentiamente enviesado na intelectualidade actual da direita ao defender que a soberania nacional é coisa do passado. Como se a sua bandeira fosse a levantada pela direita ordoliberal e todos estivessem bem juntos, como única salvaguarda de qualquer coisa.
Como dizia a Sophia: Quando, num casal, os dois pensam o mesmo, há um que não pensa.