segunda-feira, 30 de junho de 2008

A política do bloco neoliberal

«Se a banca tivesse pago a taxa legal, o Estado teria arrecadado só nestes quatro anos (2004-2007) mais 1.563 milhões de euros de receita fiscal (…) Se analisarmos a variação da taxa efectiva de imposto paga pela banca no período 2004-2007 constatamos que, em 2006, após a denuncia do escândalo ela aumentou 4,4 pontos percentuais pois, entre 2005 e 2006, passou de 13,5% para 17,9%, mas em 2007 registou um forte retrocesso pois caiu para apenas 15,9%, que corresponde a apenas 59% da taxa legal, ou seja, a banca em 2007 pagou apenas um pouco mais de metade da taxa legal que é exigida às outras empresas». Conclusões de um estudo de Eugénio Rosa a partir do Relatório de Estabilidade Financeira do Banco Portugal. O discurso sobre o rigor orçamental, a inevitável contracção da provisão pública e o combate a supostos privilégios assenta em bases muito frágeis. A solidez da hegemonia do capital financeiro, por sua vez, alimenta-se da continuada complacência e duplicidade do bloco neoliberal.

domingo, 29 de junho de 2008

Mercado e Estado II

O meu ponto é que a oposição Mercado-Estado é fictícia, ou talvez melhor, um hábito de pensamento que esconde mais do que aquilo que permite ver. Comecei por sugerir que por trás do conceito abstracto de «mercado» existem na realidade mercados que diferem em qualidade. Todos somos capazes de apreender estas diferenças de qualidade, mesmo quando discordamos quanto à apreciação que fazemos de cada tipo de mercado em particular. Agora quero ser mais claro.

Entre o mercado municipal da minha terra, que muito aprecio e que não gostaria de ver destruído pela concorrência das grandes superfícies, e outros mercados, igualmente existentes, as diferenças de qualidade são evidentes. Na realidade, no mundo em que vivemos há mercados que são repugnantes; tão repugnantes do ponto de vista moral aos olhos de uma esmagadora maioria que o Estado os proíbe. Estou a pensar no mercado de seres humanos ou de órgãos humanos, por exemplo. Existem ainda outros que são pelo menos contestados e muitas vezes igualmente ilegais: os mercados de sexo ou de narcóticos, por exemplo.

O que há de comum entre o mercado municipal da minha terra e os mercados repugnantes que referi como exemplo? Em todos eles há um bem (ou bens) a que se pode aceder através de um pagamento em dinheiro. Tudo o resto são diferenças.

Serve isto para dar mais um passo. A existência de um mercado particular depende de um entendimento (de natureza moral) acerca do bem cuja transformação em objecto de comércio se contempla. Este entendimento é sempre sancionado pelo Estado, quer quando o permite, quer quando o proíbe. Em ambos os casos o Estado está presente. No primeiro, a proteger os direitos de propriedade do detentor do bem e a zelar pelo cumprimento dos termos contratuais da transacção, no segundo, a procurar impedir que a transacção tenha lugar. Mercado e Estado talvez comecem já a surgir embutidos um no outro. Mas a história continua.

sábado, 28 de junho de 2008

Grandes transformações: no século XIX e hoje

Saldanha Sanches escreveu no Expresso: “Hoje, com o euro, a contenção de despesas é uma imposição porque há uma disciplina semelhante à do padrão-ouro. Sem o regresso a um escudo desvalorizável (a opção da esquerda), o orçamento tem que estar equilibrado e só depois de o ter equilibrado o Governo readquire alguma liberdade de escolha.”

Ou seja, temos pela frente apenas duas opções: aceitar a actual política económica da UE ou abandonar a UE. Se, em vez da sua preferência pela ortodoxia, Saldanha Sanches se tivesse interessado pela experiência do economista do desenvolvimento
Albert Hirschman, saberia que há uma outra possibilidade. Em situações de crise, não temos forçosamente que escolher entre “acomodamento” ou “abandono”; também é possível “erguer a voz”. Quer dizer, optar pela participação crítica propondo uma alternativa que rasgue novos horizontes e mobilize para uma saída da crise.

Claro que há uma alternativa à actual construção da UE. Saldanha Sanches, Vital Moreira, e demais mentores do social-liberalismo português, não a reconhecem porque usam os óculos do pensamento liberal de novo dominante na ciência económica. Algo que faz lembrar os anos 20-30 do século passado – anos da
crise do padrão-ouro, o espartilho da política económica de então – quando as ideias de Keynes eram desprezadas pela academia. Se, em vez da sua preferência pela ortodoxia, Saldanha Sanches se tivesse interessado pelo institucionalismo de Karl Polanyi, saberia que a imposição dessa disciplina monetária, conjugada com a livre circulação de capitais permitida à alta finança da época, contribuiu decisivamente para a crise global do capitalismo e a eclosão da 2ª Grande Guerra. Uma alternativa aos binómios “liberalismo” versus “proteccionismo” e “mercado” versus “Estado” acabou por emergir após muito sofrimento e destruição dando origem aos “trinta gloriosos” anos de crescimento da Europa e às suas variantes de um Estado de Bem-Estar.

Não tendo percebido que a “economia de mercado” em que vivemos foi uma construção histórica resultante do entrelaçamento de lutas sociais e políticas, debates teóricos e confrontos ideológicos, os defensores acríticos da construção europeia agarram-se aos “enormes avanços sociais” inscritos nos Tratados de Amesterdão e Lisboa e não vêm que a sua dimensão social está gravemente prejudicada pela disciplina monetarista inscrita no âmago dos Tratados da UE através do PEC e do BCE. Para a esquerda socialista, a alternativa não passa nem pela saída do euro (como afirma Saldanha Sanches e sugere
Vital Moreira) nem pela submissão a uma constituição geradora de estagnação e divergência económica (ver Jörg Bibow).

Bastaria lerem algumas publicações académicas respeitáveis para sentirem o ridículo de afirmações como a de que a esquerda (convenientemente apelidada de “radical”) se bate por
“uma imaginária “integração alternativa” cuja natureza aliás não definem”. De facto, só não vê as propostas concretas quem não quer ... ou não pode. Para começar, sugiro a leitura das seguintes contribuições (C. Mathieu/H. Sterdyniak, Arestis/Sawyer, EuroMemorandum 2007). Depois, se as emoções não toldarem a razão, talvez comecem a perceber que as convergências à esquerda são realmente possíveis; claro, longe das suas Novas Fronteiras.

Rectificação de um erro

Num post que fiz neste blogue acusei injustamente o PS de não se ter oposto ao projecto de directiva da UE sobre a duração máxima do tempo de trabalho por semana tal como fez, por exemplo, a Espanha/PSOE. Venho por isso reconhecer o erro e lamentá-lo.

Na mesma linha, escrevi no Público de 23/6/2008: “Uma notícia recente do PÚBLICO (11/6/08) relatava que foi aprovado pela UE um projecto de directiva que prevê que o horário de trabalho semanal se possa estender até às 65 horas. Tal opção foi descrita como “a Europa dos patrões” (Manuel António Pina, JN, 11/6/08), “o regresso ao século XIX” (PSOE) e a criação de “uma sociedade de escravos” (Dom Januário T. Ferreira, Expresso, 21/6/08). Segundo a notícia, apenas Espanha, Grécia, Hungria, Chipre e Bélgica declararam firme oposição à directiva, no sentido de que não venha a ser aprovada pelo PE. Perante o silêncio do governo, fica a ideia de que uma boa dose de europeísmo crítico só faria bem ao PS.”

Porém, o assessor de imprensa do Ministério do Trabalho e da Solidariedade (MTS), José Pedro Pinto, bem como alguns leitores deste blogue (e o meu amigo Pedro Adão e Silva), advertiram-me que errei.

Escreveu-me José Pedro Pinto (num email): "Fala o Dr. André Freire do "facto" de Portugal, via Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, ter acompanhado a proposta da Presidência em exercício da União Europeia que pretende alterar a directiva do tempo de trabalho. Ora, dispensando-me eu de detalhar que as alterações propostas (que ainda têm que ser aprovadas pelo Parlamento Europeu) apenas se referem ao chamado opt-out, mecanismo apenas accionado na UE pelo Reino Unido, e não ao tempo de trabalho semanal (48 horas na UE, 40 horas em Portugal), apenas quero informá-lo que Portugal se posicionou contra esta proposta de directiva (exactamente a mesma posição adoptada pelo Governo espanhol)."

Reconheço o meu erro e lamento-o.

Porém, tal deveu-se a uma notícia do Público que não vi desmentida pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade.

Dizia o Público de 11/6/08, página 38: “A confederação europeia de sindicatos (ETUC) reagiu com uma posição oposta, considerando «inaceitável» a decisão. Esta posição é partilhada pela Espanha, Bélgica, Grécia, Hungria e Chipre, os cinco países que criticaram veementemente os termos do acordo, face ao qual se abstiveram. Os cinco pretendem agora convencer o Parlamento Europeu, co-legislador com os governos, a alterar a decisão num sentido mais favorável aos trabalhadores.”

Ora, o meu artigo é perfeitamente consistente com a notícia. (excepto na inferência interpretativa que fiz, “Perante o silêncio do governo, fica a ideia de que uma boa dose de europeísmo crítico só faria bem ao PS.”, que é isso mesmo: uma inferência interpretativa, uma inferência a partir de um facto; mas o facto relatado, que é o que o MTS identifica como errado, está consistente com a notícia, até mesmo o suposto “silêncio do governo”)

A notícia foi desmentida efectivamente (no Público) e escapou-me?

Sinceramente, não vi.

Se foi, há um lapso meu e só meu porque isso me escapou.

Mas se não foi, então eu apenas fui induzido em erro por uma notícia (de um jornal de referência a que dou inteira credibilidade) que não vi desmentida.

Neste caso, dir-me-ão que eu poderia ter feito mais pesquisa para validar a notícia, mas creio que também compreenderão facilmente que a feitura de um artigo de jornal não implica, a maior parte das vezes, que vamos fazer validação de notícias saídas em jornais de referência (sobretudo quando não as vimos desmentidas).

Dir-me-ão, também, que eu poderia ter contextualizado a notícia. Poderia, sim, mas estou certo que compreenderão também que não o fiz porque esse não era o assunto central da crónica.

É que, se o MTS não clarificou/desmentiu o teor da notícia, e ela de facto induz em erro, então talvez devesse tê-lo feito (se, como parece, e bem, dá bastante importância ao assunto).

Finalmente, enquanto cidadão português, fico muito contente em saber que “Portugal se posicionou contra esta proposta de directiva (exactamente a mesma posição adoptada pelo Governo espanhol)”, mas não é isso que qualquer leitor infere da referida notícia.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Mercado e Estado I

Opor Mercado e Estado (ou laissez-faire e planeamento central) como princípios antagónicos de ordem social é um hábito intelectual muito difundido. Para o contrair é preciso pouco: algum convívio com insípidos manuais de microeconomia ou, paradoxalmente, com velhos manuais de marxismo-lenismo. Mas para o mudar já é preciso algum esforço.

Podemos não questionar este hábito por julgar que ele nos confere algumas vantagens. Por exemplo: (1) permite-nos em debates classificar de forma expedita o oponente – defende que o Estado deve intervir, logo, é um inimigo do mercado; manifesta apreço por certas formas de relação mercantil, logo, é um (neo)liberal; (2) facilita o estabelecimento de um meio-termo – «economia social de mercado» ou «mercados regulados», por exemplo – onde supostamente se situariam a virtude e o bom senso.

Mas, quem pensar que estas habilidades retóricas contribuem pouco para a qualidade do debate, ou quem passou por experiências dissonantes, estará motivado para o esforço que a mudança de hábito requer. Sabendo que não é fácil, tentarei a persuasão.

Permitam-me que, para ir depressa, ilustre a tal experiência motivadora da revisão do hábito com um caso pessoal. Não sendo um crente na mão-invisível encontro-me muitas vezes a apreciar certos mercados. É o caso do mercado municipal da minha terra. Não é tanto a qualidade dos produtos (os legumes são óptimos, mas o peixe, francamente…), o que me agrada é o contexto, anónimo, não intrusivo, e ao mesmo tempo afável, que aí se pode experimentar. A última coisa que eu desejaria é que os produtores familiares deixassem de ter um espaço em que podem comercializar livremente os seus produtos. Sei no entanto que não é preciso vir lá «o comunismo» para que isso aconteça. Basta que na minha terra continuem a abrir grandes superfícies.

Já das grandes superfícies fujo eu a sete pés (embora tenha de reconhecer que o peixe é muito melhor e possivelmente mais barato) porque as experimento como espaços vazios de vida (social) de qualquer espécie – um dos tais não-lugares de que falam alguns sociólogos.

Isto serve-me para sugerir uma primeira ideia: “o mercado” enquanto tal não existe, é uma abstracção; o que existe são mercados particulares, a que costumes e normas particulares conferem qualidades distintas. Este é o primeiro passo. Chegaremos ao destino – a oposição Mercado-Estado é fictícia – mas como isso exige algum esforço é preferível ir caminhando por etapas.

Acrescentar pontos II

No quadro de uma economia anémica em desaceleração e com os efeitos da crise financeira ainda a fazerem-se sentir, o BCE prepara-se para subir uma vez mais as taxas de juro. A sua ortodoxia monetarista só está ao nível da sua complacência com a especulação financeira que desestabiliza as economias. Não esqueçamos que, como afirmou Andrew Watt, da rede europeia do trabalho para a política económica, «tanto em 1999-2000 como agora, o crescimento europeu terminou não devido à rigidez do mercado de trabalho, mas sim devido à correcção das bolhas especulativas nos mercados financeiros» (Financial Times, 13/05/2008). O argumento do BCE para aumentar a taxa de juro parece ser forte: o combate à inflação. No entanto, a evolução da taxa de inflação, fruto da subida internacional do preço das matérias e não de qualquer desenvolvimento interno à zona euro, apresenta-se apenas ligeiramente acima do muito conservador limite de 2% do BCE. Segundo este excelente relatório, não se prevê que suba muito mais devido ao abrandamento da actividade económica à escala global.

Os riscos prioritários são outros. No entanto, e como o Nuno Teles já aqui argumentou, a política do BCE prepara-se para acrescentar crise à crise. Trata-se de promover a contracção da procura, ou seja, de promover o desemprego para conter supostas pressões salariais. Os trabalhadores mais vulneráveis serão sacrificados. Perante esta tragédia, que inclui poderosos incentivos à perda de competitividade das empresas industriais europeias e à sua deslocalização para fora da zona euro, por via da valorização do euro, acho espantoso que se continue a defender que as soluções para o desemprego europeu passam por um «aligeiramento da regras» dos mercados de trabalho, ou seja, por uma alteração da regras por forma a que sejam os trabalhadores a suportar os fardos de todos os ajustamentos económicos. Isto quando as revisões dos estudos empíricos existentes e a própria OCDE indicam que a criação de emprego não passa necessariamente por aqui. E a criação de emprego de qualidade muito menos.

Acrescentar pontos

«Detestava tomar banho de água gelada. O gás estava cortado. Para ser sincero, o gás e a electricidade e, daí a uns dias, a água. A casa já era do banco. A burocracia pátria tinha-o mantido teimosamente entre quatro paredes. A ordem de despejo teimava em chegar. Provavelmente, os bancos estavam fartos de ficar com casas que ninguém tinha dinheiro para adquirir. Há uns anos, convencera-se que comprar casa era melhor que alugar. Os juros estavam baixos e um salário ainda parecia um salário. Sete anos depois, tudo ruiu como um castelo de areia». Continua no cinco dias. Não deixem de ler este breve conto de Nuno Ramos de Almeida.

E ainda: que tipo de europeísta é Vital Moreira?

Vital Moreira continua a preferir os epítetos e os anátemas à discussão racional sobre argumentos específicos. Deixo aqui perguntas concretas ao dinamizador do Causa Nossa:

(i) Num quadro de mercado interno de bens, serviços e capitais, considera ou não razoável a existência de níveis mínimos de fiscalidade sobre os lucros que previnam a erosão da capacidade de financiamento dos Estados e o crescente peso dos impostos indirectos (não progressivos) face aos impostos directos (tipicamente mais justos)?

(ii) No contexto da integração monetária considera ou não necessária uma política orçamental ao nível da UE, que permita fazer face a desempenhos económicos assimétricos de curto-prazo entre as economias dos Estados Membros (como existe em contextos federais, como os EUA e a Alemanha)?

(iii) Parece-lhe ou não que a conjugação de uma política monetária única, de fortes restrições às políticas orçamentais nacionais e da ausência de um instrumento de gestão orçamental de curto-prazo a nível da UE tem sido um factor condicionante fundamental na gestão dos bens e serviços públicos, conduzindo a decisões frequentemente ditadas mais pela necessidade de angariar receitas orçamentais no imediato do que por critérios de eficiência e equidade?

(iv) Considera ou não que a arquitectura institucional da UE - com uma Comissão e um Conselho não eleitos e um parlamento sem iniciativa legislativa - carece de mecanismos fundamentais para o equilíbrio democrático, tendo em conta os poderes que a UE foi acumulando, principalmente desde o Tratado de Maastricht?

(v) Parece-lhe ou não que a distribuição de domínios em que as decisões do Conselho são tomadas por maioria ou por unanimidade favorecem a tomada de decisões que vão no sentido de uma maior liberalização e dificultam a aprovação de aspectos como critérios sociais, laborais e ambientais mínimos à escala europeia?

(vi) Já agora, entre os «enormes avanços sociais do Tratado de Amesterdão e do próprio Tratado de Lisboa» consegue dar-me um exemplo de uma decisão que não exija a unanimidade dos votos do Conselho (tornando-o em algo mais do que uma declaração de intenções)?

(vii) Finalmente, considera ou não que o facto de qualquer alteração ao Tratado da UE ter de ser aprovada pela unanimidade dos países efectivamente blinda a trajectória liberal que tem caracterizado a UE (como parece reconhecer, embora a atribua à maioria nas instituições) ?

Sem responder a estas questões, frases como «a tese da natureza intrinsecamente (neo)liberal da UE é uma conveniente invenção da esquerda radical para justificar a sua visceral hostilidade à integração europeia», que insiste Vital Moreira em reproduzir, continuarão a soar como uma simples incapacidade para dar resposta às questões que qualquer europeísta de esquerda gostaria de ver respondidas.

E engana-se quando acusa esta 'esquerda radical' de criticar a UE «em nome de uma imaginária "integração alternativa", cuja natureza aliás não definem». Não é difícil enumerar, a título exemplificativo, alguns elementos básicos de um programa europeísta de esquerda para a UE:

- incluir nos objectivos do BCE o crescimento económico (tal como acontece no caso do Banco Federal Americano) e o pleno-emprego, corrigindo assim a obsessão exclusiva com a estabilidade de preços;

- promover a criação de instrumentos de política orçamental à escala europeia com fins de estabilização conjuntural (para além de um combate efectivo às assimetrias regionais);

- eliminar a concorrência fiscal através de um esforço de harmonização da fiscalidade sobre as empresas e sobre os ganhos de capital, impedindo que a livre circulação de capitais na UE continue a corroer a base fiscal dos países e da União;

- adoptar uma taxa Tobin Europeia para amenizar os movimentos de capitais especulativos.

Vital Moreira não precisa de gastar tempo a explicar que estas medidas são inviáveis no quadro actual da UE. Não temos dito outra coisa. Mas a sua inviabilidade não é técnica ou teórica. Ela deriva de um arranjo institucional que deixa poucas alternativas, mesmo que houvesse para tal maiorias claras entre os cidadãos europeus. É assim mesmo, o neoliberalismo está mesmo no sangue daquilo que é a UE nos dias de hoje. Abandonar a defesa do projecto europeu não é solução; aceitá-lo acrítica e entusiasticamente na forma que hoje assume é-o muito menos.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

As fontes de baixa produtividade que interessa discutir

«Tomar medidas para enfrentar a falta de gestores qualificados» é uma das medidas propostas pela OCDE (no relatório ontem divulgado) para melhorar o desempenho da Economia portuguesa. Agora que as organizações internacionais começam a pôr o dedo na ferida, quantas vezes ainda será necessário repetir que a falta de produtividade em Portugal não é explicada por uma qualquer preguiça endémica dos trabalhadores deste canto da Europa?

Promover o oportunismo e acabar com estas imagens

aqui defendi que este governo age em muitas áreas como se tivesse uma representação das motivações humanas circunscrita ao egoísmo racional. Um número crescente de economistas reconhece hoje que as motivações humanas prevalecentes dependem muito da forma como o contexto onde se age está estruturado. O problema do egoísmo racional, não é tanto ser verdadeiro, mas antes poder tornar-se verdadeiro (Hannah Arendt). O governo, com medidas de última hora para satisfazer patrões e centrais sindicais mais interessadas em atacar quem ainda tem força social, parece apostado em promover todos os oportunismos laborais. Trata-se agora de incentivar a não sindicalização. João Ramos de Almeida, um dos melhores jornalistas económicos do país, agora de regresso ao Público, escreve: «A lei, a ser aprovada pelo Parlamento, explicitará a ‘possibilidade de adesão individual’ às convenções colectivas em vigor por parte de ‘trabalhadores não sindicalizados’. Se a alteração legal pode parecer interessante para os trabalhadores considerados individualmente, que escolherão a convenção sectorial que mais lhes convier, a prazo é admissível que reduza o poder negocial dos sindicatos, promova a negociação com sindicatos pouco representativos ou mais disponíveis ao interesse patronal».

Austeridade Assimétrica Permanente e Bloco Central

O PSD já veio saudar o acordo entre governo, patrões e uma central sindical com reduzida representatividade e que tem servido para encenações deste tipo (Público). De facto, e como bem assinalou Carvalho da Silva, «de tempos a tempos fazem-se encenações e criam-se expectativas que os acordos vão melhorar a economia e aumentar a competitividade do pais. Depois constata-se que os trabalhadores estão mais explorados, o seu rendimento baixa, a competitividade não aumenta e o país não se desenvolve». A austeridade assimétrica permanente, que prolonga horários de trabalho, reduz salários e fragiliza as solidariedades no mundo do trabalho, só pode merecer o aplauso da direita. O bloco central é antes de tudo ideológico e reflecte o alinhamento dos dois principais partidos com o consenso neoliberal possível em democracia. No fundo, limitam-se a ser correias de transmissão, mais ou menos disciplinadas, das ideias e orientações provenientes de instituições internacionais como a OCDE. Apesar dos seus próprios estudos teimosamente indicarem que não existe relação entre o enquadramento da legislação laboral e a criação de emprego, esta instituição continua a inspirar alterações das regras do jogo laboral que geram acordos entre patrões, governos neoliberais e centrais sindicais que agem como se tivessem sido criadas à medida dos interesses dos primeiros. Curiosamente, a OCDE, vem reconhecer que, apesar das «reformas» (ou será que é por causa delas?) do «socialismo moderno», o crescimento potencial português a médio prazo não ultrapassa 1,5%, o valor mais baixo das últimas décadas. Como estamos no reino da utopia do mercado sem fim, a conclusão só pode ser uma: «Portugal tem de se esforçar mais» (Público). Se estas tendências não forem contrariadas à esquerda, um bloco central, que já não será só ideológico, segue mesmo dentro de momentos.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Os erros trágicos da social-democracia europeia e os trabalhos de Rasmussen

Hugo Mendes acha que andamos a ocultar as variedades de capitalismo que existem na Europa. Já aqui escrevemos várias vezes sobre este tema (I, II e III). Hugo Mendes também não tem estado atento à imposição de um programa de austeridade assimétrica permanente em Portugal, que teve hoje exemplar tradução no acordo para a reforma das leis laborais. Além disso, Hugo Mendes não tem estado atento às gravosas decisões do Tribunal Europeu de Justiça - aqui muito denunciadas por Alain Supiot -, que ameaçam a negociação colectiva centralizada dos países escandinavos, ou ao projecto de directiva europeia que prevê que o horário de trabalho semanal se possa estender até às 65 horas. Certamente que estes processos foram influenciados pelas pressões de muitas empresas e dos seus poderosos grupos de pressão, que têm ampla margem de manobra em Bruxelas. A lógica do interesse tem caminhos ínvios num sistema onde os capitais têm um comportamento cada vez mais míope.

O erro trágico das fracções ainda dominantes da social-democracia europeia foi terem sido parte activa dos processos de liberalização de capitais à escala europeia, de criação de uma moeda única e de uma arquitectura do governo económico europeu que trancam a Europa numa trajectória neoliberal porque, entre outros elementos, não os acompanhou de uma unificação das regras fiscais ou da regulação financeira ou laboral. Foi a primeira vez na história que se embarcou para a criação de uma moeda e de um mercado únicos sem um poder político forte e com recursos próprios. Uma utopia liberal de Estado Mínimo à escala europeia (o orçamento da UE representa 1% da riqueza). A orientação de política do BCE, o PEC, a redução da progressividade dos sistemas fiscais e a pressão sobre os direitos laborais nacionais são resultados previsíveis deste erro trágico.

Na boa tradição da reconstrução racional dos processos históricos, Hugo Mendes parece ver estas gravosas evoluções, que têm a marca dos conflitos sociais definidores das trajectórias dos capitalismos, como adaptações necessárias para salvar o «essencial». Dada a evolução negativa generalizada que se tem registado já não se percebe o que é afinal essencial para Hugo Mendes. O crucial processo de financeirização do capitalismo europeu e a correspondente desestabilização das relações laborais, engendrada pelas exigências de rendibilidade provenientes de investidores e de especuladores financeiros cada vez mais impacientes e com um poder que não cessa de aumentar, são totalmente ignorados. Acontece que, desde a década de noventa, o seu campo de acção tem sido aberto pelo projecto europeu de construção de mercados. O desigual modelo anglo-saxónico, centrado nos mercados financeiros liberalizados, viaja nas asas do projecto europeu até agora patrocinado pelos partidos sociais-democratas.

Pelo menos alguns sociais-democratas, como Poul Rasmussen, já perceberam os riscos que a acção sem entraves dos fundos especulativos coloca aos modelos coordenados de capitalismo, que, na boa lógica das complementaridades institucionais, exigem núcleos accionistas estáveis e pacientes. Daí os seus esforços, até agora frustrados, para regular os hedge funds à escala europeia. Estamos mesmo bem trancados e por isso temos que lutar de forma intransigente contra todos os tratados que cristalizam estas opções. Por cá, a jovem geração de ideias, tirando os lugares-comuns, ainda parece demasiado seduzida pela actuais configurações do projecto europeu e da globalização para poder contribuir para a elaboração das alternativas fortes de que necessitamos.

Público, OCDE e desregulação do mercado de trabalho. Ou para quê ser mais papista que o papa?

Para os técnicos da OCDE "o desempenho do mercado de trabalho é preocupante", já que desde 2000 o emprego começou a baixar, o desemprego duplicou nos últimos cinco anos (com a taxa a atingir os 8,0 por cento). (...) A OCDE entende que a legislação laboral continua a ser "restritiva" em Portugal, face ao resto dos países que integram essa organização, e a aconselha a liberalização do mercado de trabalho, ao mesmo tempo que alerta para a necessidade de "apoiar as pessoas que perdem o emprego".

A notícia divulgada no Público online tem uma leitura óbvia: os 'técnicos' da OCDE entendem que a legislação laboral «restritiva» é causadora de desemprego. Acontece que a OCDE e os seus 'técnicos' já há alguns anos que deixaram de 'entender' isto. E não é por acaso. Após várias tentativas, até agora não se conseguiu identificar uma relação robusta entre o 'grau de restrição' das legislações laborais e os níveis de desemprego dos países, levando a OCDE e outras instituições defensoras de mercados de trabalho desregulados a ter de alterar o argumentário para defender as suas posições.

De facto, quando lemos o texto do Público percebemos que não se trata de uma citação do relatório hoje divulgado (ao qual vale a pena estar atento), mas uma colagem de diferentes parágrafos do documento original. Terá sido uma má leitura do relatório ou a vontade de ser mais papista que o papa?

terça-feira, 24 de junho de 2008

Que tipo de europeísta é Vital Moreira?

«Enquanto as "esquerdas da esquerda" não conseguirem distinguir entre a natural oposição às concretas políticas europeias - resultado do actual predomínio da direita no Parlamento Europeu e na Comissão, bem como nos órgãos intergovernamentais (Conselho de Ministros e Conselho Europeu) - e a necessária convergência nas opções "constitucionais" ditadas pela busca de uma maior integração europeia - como sucede quando estão em causa os tratados -, não se pode esperar nenhuma cumplicidade entre "europeus" e "antieuropeus" a nível de soluções governativas domésticas.» Mais uma vez, Vital Moreira (no Público de hoje) prefere os anátemas e os chavões a uma discussão clara e racional sobre o que está em jogo.

Tenho sérias dúvidas se Vital Moreira é mais 'europeísta' do que qualquer uma das pessoas que escreve neste blog. Num quadro de globalização neoliberal, o processo de integração europeia representa uma esperança para todos aqueles que acreditam na necessidade e na possibilidade de construir um espaço político em que seja a democracia a controlar o mercado e não o inverso, sem cair numa autarcia indesejável e inviável. Mas esta esperança há muito que tem vindo a ser defraudada. A cada novo Tratado, a UE tem vindo a reforçar o poder dos mercados sobre as sociedades europeias. Fá-lo quando retira os principais instrumentos de política económica ao Estados, sem os substituir por instrumentos ao nível europeu que permitam gerir devidamente os ciclos económicos - favorecendo períodos prolongados de crise económica e de desemprego. Fá-lo ao impôr espartilhos tecnicamente injustificáveis às políticas orçamentais nacionais, o que em contextos de crise económica prolongada conduz inevitavelmente ao paulatino desmembramento dos serviços públicos e dos principais elementos do Estados Social. Fá-lo ao praticamente inviabilizar (impondo o princípio da unanimidade nas decisões) quaisquer avanços que permitam criar critérios sociais, laborais e fiscais mínimos à escala do continente. Ao fazê-lo, e dada escassez de instrumentos de política económica atrás referida, convida (implicita e expliciamente) os Estados Membros a basearem as suas políticas de competitividade em tudo o que reduza custos para as empresas - flexibilização e precarização no mercado de trabalho, concorrência na fiscalidade sobre os lucros, etc. Finalmente, fá-lo ao criar obstáculos dificilmente transponíveis a qualquer alteração democrática deste quadro institucional (nomeadamente, dando o poder de veto a qualquer país) .

Em suma, a deriva liberal da UE não resulta «do actual predomínio da direita no Parlamento Europeu e na Comissão» - como escreve Vital Moreira - está antes gravada no seu quadro institucional. Podendo teoricamente constituir-se como um espaço de progresso, liberdade e democracia, a União Europeia é hoje um dos principais motores da destruição do Estado Social na Europa, não havendo nenhum sinal significativo de que isto possa vir a ser revertido num futuro próximo.

Ser europeísta de esquerda hoje não passa apenas por defender a integração europeia como espaço privilegiado de exercício de democracia. Passa também pela necessidade de reconhecer que os Tratados da UE (em vigor ou à espera de o estar) não só não respondem às expectativas de uma esquerda europeísta, como se arriscam a ficar para a história como os carrascos da Europa das conquistas sociais.

Poderemos ter alguma esperança que um dia Vital Moreira discutirá estes assuntos sem recorrer às frases feitas do costume?

O que significa «menos Estado»?



«Menos Estado» poderia significar menor despesa pública e portanto menos impostos. Mas, diz o Eurostat, nos últimos dez anos, nos países da zona Euro, o peso da despesa pública no total da despesa passou de 51% para 48%. Redução insignificante portanto. O peso dos impostos teve de manter-se também. Mas será que isso significa que está tudo na mesma? Nos mesmos dez anos, diz de novo o Eurostat, o peso das aquisições públicas ao sector privado (publicamente divulgadas no jornal da UE) passou de 1% para 3% do PIB. E isto é só uma pequena parte das compras do Estado. «Menos Estado» afinal pode querer dizer outra coisa: mais provisão privada paga pelo Estado.

Tudo isto para ilustrar o que parece ser uma faceta do neoliberalismo real: a transformação do «monstro». Era produtor e agora é cada vez mais pagante de produtos e serviços do sector privado. Na medida em que se reconhece que a provisão privada de alguns destes bens tem de ser regulada, além do preço de aquisição há que contar agora também com custos de regulação. O «monstro» fica mais magro, mas nem por isso mais barato. E a comunidade, há alguém capaz de garantir que fica melhor servida?

Economia política da diversidade

«Lamentavelmente, o tipo de reforma institucional que é promovido, entre outros, pelo Banco Mundial, FMI e Organização Mundial do Comércio, favorece um modelo de melhores práticas que pressupõe a determinação de acordos institucionais universais e a convergência de pontos de vista para que esses acordos sejam tidos como desejáveis por natureza. No entanto, os modelos de melhores práticas das instituições são, por definição, não contextuais, e não tomam em consideração complicações locais. Na medida em que restringem, em vez de expandir, o menu das escolhas institucionais disponíveis, acabam por servir muito mal a causa da boa governação». O Jornal de Negócios está de parabéns por disponibilizar em português artigos de Dani Rodrik, economista político da Universidade de Harvard, que usa a economia convencional para chegar a conclusões políticas heterodoxas. Definitivamente, a economia neoclássica, embora tenha um mal disfarçado enviesamento mercantil, não equivale em bloco ao neoliberalismo. Enfim, toda a história do colossal fracasso do ajustamento estrutural neoliberal imposto na América Latina e em África podia ter sido em larga medida evitada se tivéssemos mais economistas como Rodrik.

As lógicas da provisão

«Os beneficiários da ADSE têm que esperar muito mais tempo do que os portadores de seguros de saúde privados quando se dirigem a hospitais com gestão privada (…) a diferença entre os tempos de espera pode chegar aos seis meses». A desigualdade está inscrita no código genético da provisão privada em saúde. É a sua essência. Mais uma vez: acabem com dispendiosos benefícios fiscais a seguros e a despesas privadas em saúde, terminem com as irresponsáveis parcerias e convenções com os grupos privados rentistas que, como é típico nestes sectores, se expandem na medida de decisões políticas que canalizam recursos públicos para a instituição da mercadorização de esferas crescentes da vida social. Enfim, acabem com os incentivos à fuga das classes médias do SNS. Não deixem que o poder do dinheiro se sobreponha ao principio humanista que funda a política socialista nesta área: «a cada um segundo as suas necessidades». Só a provisão pública, universal e gratuita pode realizar este princípio. O país já pagou um preço muito elevado pelos esquecimentos e pelas tergiversações do PS.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Austeridade assimétrica permanente

A inserção externa dependente da economia portuguesa continua a gerar fortes desequilíbrios nas nossas relações económicas. Como seria de esperar, esta inserção foi aprofundada pelo ciclo de liberalização dos últimos vinte anos e pela aptidão dos grupos económicos rentistas, reconstruídos por irresponsáveis privatizações, pelos sectores de bens não transaccionáveis, como o imobiliário ou as auto-estradas. A falta de competitividade da economia portuguesa levou Olivier Blanchard, um famoso economista francês com credenciais impecavelmente ortodoxas, a prescrever, em 2006, uma receita clara para «resolver» este problema económico português: reduzir os salários nominais em 20%. Os salários como única variável de ajustamento revelam o esforço insensato de muitos economistas para reduzir o trabalho humano ao estatuto de uma mercadoria como outra qualquer e a sua insensibilidade ao contexto onde intervêm: num país onde o salário mínimo pouco ultrapassa os 400 euros e o salário mediano os 700 euros, tal prescrição traduzir-se-ia numa imensa catástrofe social. O resto pode ser lido no esquerda.

Keynesianismo ecológico ou o Estado ao serviço dos «falhados»

Margaret Thatcher afirmou um dia que «qualquer individuo com mais de trinta anos que vá de autocarro para o emprego pode considerar-se um falhado». Sem mais. O combate ao transporte público como prioridade. Afinal de contas, a catastrófica privatização dos caminhos de ferro no Reino Unido teve mão conservadora. Em Portugal, Cavaco e, em larga medida, os governos que lhe sucederam, agiram como se seguissem estes magníficos princípios do individualismo possessivo liberal. Prioridade às necessidades do automóvel privado e dos que querem vencer na vida. A comunidade pode perder, mas nem sequer é certo que tal coisa exista. A «tirania das pequenas decisões» privadas, que gera tantas vezes resultados socialmente indesejáveis, foi assim bem oleada por investimentos públicos ao serviço desta miopia de mercado feita de interesses económicos particulares.

Os resultados estão à vista: «Lisboa é a zona de toda a Europa com maior presença das auto-estradas» e «Portugal é o terceiro país com menos comboios por habitante» (Pedro Sales no Zero de Conduta). Não admira que os transportes públicos tenham «perdido utentes de uma forma abismal a favor do transporte particular: entre 1990 e 2004 o uso do comboio diminuiu de 11,3% para 3,8%; o uso de autocarros diminuiu de 20,5% para 11,1%; o uso do automóvel subiu de 54,6% para 68,7%». Juntem a isto um crescimento suburbano caótico, que respeitou o direito de cada «pato bravo» a «fazer a casa que quer, onde quer» e temos algumas das razões que explicam o facto do peso dos combustíveis no orçamento dos portugueses ser o segundo maior da Europa - 5,2% para uma média Europeia de 3,3,% (Sérgio Aníbal do Público e do economia.info).

O investimento público, servido por um planeamento estratégico adequado, deve dar finalmente prioridade absoluta às necessidades de todos os que andam de autocarro, de comboio, de metro ou de eléctrico. Podemos ser «falhados», mas geramos externalidades positivas para o conjunto da comunidade: ar mais respirável, tempos de deslocação mais curtos, menos acidentes, mais oportunidades para interacção social. A decência de uma sociedade também se vê pela qualidade e pela popularidade dos transportes públicos. A actual conjuntura oferece uma oportunidade de ouro. É preciso combater a especulação e aumentar a transparência na formação dos preços dos combustíveis, mas é sobretudo preciso investir nos transportes públicos e nas energias renováveis. Keynesianismo ecológico.

domingo, 22 de junho de 2008

A lição alemã


Crise financeira internacional, inflação global, apreciação do euro, redução das exportações, declínio do excedente externo. Estes são indicadores do que, provavelmente, seria uma economia alemã deprimida. Porém, com um crescimento de 1,5% no primeiro trimestre de 2008, correspondente a uma taxa de crescimento anual de 2,6%, esta economia escapa à crise internacional.

Como explicar o "oásis"? Graças a um movimento sindical particularmente combativo durante 2007, apoiado politicamente por um Partido da Esquerda (Die Linke) em ascensão, o governo (sobretudo pelo SPD, parceiro minoritário da "grande coligação") foi obrigado a abandonar a política de austeridade salarial que imperou na maior economia europeia nos últimos dez anos. Mesmo com os avisos e ameaças do BCE, os salários dos trabalhadores alemães, quer no sector público, quer no sector privado, cresceram consideravelmente. Dois exemplos simbólicos: os trabalhadores ferroviários conseguiram um aumento de 10% até 2010, enquanto os trabalhadores dos correios impuseram um salário mínimo de 10 euros horários, o dobro do particado em outras empresas postais privadas.

A Alemanha abandona assim a exclusiva aposta na competitividade externa, da qual só algumas grandes empresas beneficiaram. O resultado é uma notável recuperação do consumo e do investimento que contrabalançam a conjuntura internacional adversa. Uma lição para o resto da Europa. A necessidade de mecanismos de coordenação salarial ao nível europeu sai daqui reforçada.

Ainda a proposta sobre o novo horário de trabalho na UE

Uma notícia recente do PÚBLICO (11/6/08), posteriormente retomada pelo Expresso (21/6/08), dava conta de que foi aprovado pelo Conselho Europeu um projecto de directiva que prevê que o horário de trabalho semanal se possa estender até às 65 horas. O facto de tal orientação, se vier a ser aprovada pelo Parlamento Europeu (PE), só poder ser aplicada nacional e localmente se tiver o acordo dos trabalhadores de nada vale: como explica João Proença ao Expresso, os trabalhadores são a parte fraca nas relações de trabalho e, por isso, se tal legislação vier mesmo a ser aprovada, depois quem não quiser seguir os desejos do patrão correrá sérios riscos de ser dispensado, isto é, despedido.

Por tudo isso, tal opção foi descrita como “a Europa dos patrões” (Manuel António Pina, JN, 11/6/08), “o regresso ao século XIX” (PSOE) e a criação de “uma sociedade de escravos” (Dom Januário Torgal Ferreira, Expresso, 21/6/08).

Segundo a notícia do PÚBLICO (11/6/08), nunca desmentida, apenas os governos de Espanha, Grécia, Hungria, Chipre e Bélgica, bem como a confederação europeia de sindicatos, declararam firme oposição à directiva, no sentido de que não venha a ser aprovada pelo PE.

Perante o silêncio do governo português, fica a ideia de que uma boa dose de europeísmo crítico faz muita falta ao PS. Mais, perante esta tendência para a asiatisação das relações laborais e do modelo social europeus, esperava-se de um partido socialista com convicções europeias e uma visão social-democrata para a Europa, uma firme batalha contra este projecto de directiva. Infelizamente, o PS português parece que, nesta como noutras matérias, está mais próximo da terceira via britânica (o New Labour/Reino Unido é um dos grandes impulsionadores da iniciativa) do que do socialismo democrático continental (PSOE, PSF, etc.). Más notícias para os europeus e para os portugueses, com certeza.

sábado, 21 de junho de 2008

A UE em versão para crianças

"Para nós, 26 é igual a zero. Só 27 ratificações nos interessam", diz José Sócrates sobre a crise aberta com a vitória do Não no referendo Irlandês. Como se se tratasse de algo mais do que um truísmo. A verdade é que qualquer revisão ao Tratado da UE só pode entrar em vigor com a concordância dos 27 Estados-Membros. O que é normal. A UE não é uma federação de Estados e muito menos uma organização baseada na vontade da maioria da população europeia. É um misto de uma organização intergovernamental e de uma união económica com poderes supranacionais. É uma instituição baseada numa «regulação assimétrica», em que a forma de tomar decisões foi cuidadosamente estabelecida de forma a garantir uma trajectória impecavelmente liberal.

Se alguém se atrevesse a propor o controlo da movimentação de capitais, um imposto sobre os lucros, ou direitos laborais mínimos à escala europeia, tal estaria dependente do acordo dos 27 (nem que fosse o Luxemburgo, com menos de 0,5% da população da UE, a opor-se, a proposta não passaria). Ou seja, para tornar a UE mais social, 26 é mesmo igual a zero. Pelo contrário, para decidir sobre o nível das taxas de juro ou para aplicar os princípios da total liberalização das trocas no seio da UE, as instituições supranacionais (BCE e Comissão Europeia) decidem por si - mesmo que o façam contra a posição assumida pela generalidade dos representantes dos Estados-Membros. Estas são as regras estabelecidas, que fazem da UE uma instituição profundamente anti-democrática e um 'cavalo de Troia da globalização neoliberal', como assinalou o economista Francês Jean-Paul Fitoussi.

Uma das formas de blindar este estado de coisas foi garantir que nunca tal arquitectura poderia ser mudada a não ser com o acordo unânime dos Estados-Membros. É, pois, ridículo afirmar que 3 milhões de irlandeses não têm legitimidade para inviabilizar um projecto que foi aprovado por 26 países. No quadro actual da UE, legitimidade é o que não lhes falta.

A pressão que será feita nos próximos meses sobre os cidadão irlandeses para que aprovem à força o Tratado é tão vergonhosa quanto o défice democrático que tem caracterizado a UE (e sem o qual dificilmente se conseguiria impôr aos europeus a deriva liberal que a UE protagoniza). É quase tão vergonhosa quanto a insistência por parte dos líderes políticos europeus em tratar os cidadãos dos seus países como se fossem crianças, cada vez que se fala da UE.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Educação em debate

O Público de ontem (acesso limitado) dá notícia de um comunicado da Sociedade Portuguesa de Matemática sobre as provas de aferição onde se diz o seguinte:

«Não é credível que as negativas tanto no 4.º quanto no 6.º tenham caído este ano para menos de metade por os alunos terem melhorado extraordinariamente as suas capacidades matemáticas de um ano para o outro.»

Será mesmo assim? Estará o Ministério da Educação de facto a "trabalhar para as estatísticas"?

Tendo em conta que a Educação tem sido um dos sectores mais polémicos deste Governo, vale a pena participar na discussão que a Opinião Socialista (PS-Porto) realiza amanhã no auditório do Instituto Superior de Serviço Social.

Um “New Deal” para os agricultores pobres

Jeffrey Sachs foi, durante os anos oitenta, um dos principais símbolos do ajustamento estrutural imposto aos países em desenvolvimento. Foi ele que desenhou o radical programa de privatização e liberalização boliviano, cuja aplicação resultou num gigantesco levantamento popular violentamente reprimido. No presente, o "Dr. Shock" (como ficou conhecido) renasceu como economista do desenvolvimento, preocupado com os famélicos da terra. Este notável artigo (com um título brilhante), publicado no Jornal de Negócios, sobre a importância da intervenção pública na reconversão da agricultura dos países mais pobres, mostra bem como Sachs mudou de opinião. Deixo alguns excertos:

"A História tem mostrado que é necessária uma acção governamental para ajudar os agricultores mais pobres a escaparem à armadilha da pobreza derivada dos fracos rendimentos."

"Durante a crise da dívida, nas décadas de 80 e 90, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial obrigaram dezenas de países pobres importadores de alimentos a desmantelar estes sistemas estatais. Foi dito aos agricultores que deveriam desenvencilhar-se sozinhos, deixando que as “forças de mercado” fornecessem os ‘inputs’. Foi um grande erro: essas forças de mercado não existiam. "

"É hora de reestabelecer os sistemas de financiamento público que permitem aos pequenos agricultores dos países mais pobres, nomeadamente os que dispõem de terrenos com dois ou menos hectares, aceder aos necessários ‘inputs’ de sementes de alto rendimento, adubos e sistemas de irrigação em pequena escala."

quinta-feira, 19 de junho de 2008

A força e a fraqueza do projecto neoliberal europeu

O economista político F. A. Hayek, uma das grandes referências intelectuais do fundamentalismo de mercado no século XX, defendeu, nos anos setenta, a ideia de que a promoção política da expansão das forças de mercado, o desmantelamento progressivo do Estado Social e o fim das políticas keynesianas de pleno emprego exigiriam um poder político em larga medida blindado às pressões democráticas, ou seja, uma democracia atrofiada e de muito fraco alcance. Actualmente, vários cientistas sociais, de Perry Anderson a Alain Supiot, têm precisamente defendido que os arranjos institucionais da União Europeia, as normas legais que os enquadram e as prioridades políticas que deles emanam podem ser entendidas como a materialização do projecto de Hayek: uma elite política transnacional, dotada de instrumentos para substituir a economia mista, único terreno onde uma democracia forte alguma vez floresceu, por uma ordem capitalista crescentemente pura. O resto pode ser lido no Jornal de Negócios.

A inflação não é um problema monetário (II)

Embora não seja o caso no presente, historicamente a esquerda tende a desvalorizar o problema da inflação e os seus assimétricos impactos no conjunto população. Como já aqui apontámos, são os mais pobres os mais afectados pela subida dos preços, já que são eles que dedicam uma maior proporção do seu rendimento aos bens mais afectados (p.e. bens alimentares). Contudo, é à esquerda que encontramos a resposta para a recente alta dos preços, nomeadamente no que aos mercados financeiros diz respeito. Esta longa reportagem do Der Spiegel (em inglês), ao documentar os efeitos devastadores da migração dos especuladores financeiros para os mercados de derivados, é muito elucidativa.

Como argumenta um dos maiores especuladores mundiais, George Soros, a finança tornou-se «demasiado grande e demasiado rentável». Só limites claros à acção dos diferentes agentes financeiros podem estancar a especulação nos mercados de petróleo e bens alimentares. A solução para o problema da inflação passa obrigatoriamente por aqui.

A inflação não é um problema monetário (I)

A semana passada foi animada pelas declarações de Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve norte-americano, onde este, assinalando que o pior da crise financeira talvez já tenha sido evitado, se mostrou agora preocupado pela galopante taxa de inflação norte-americana. Aparentemente, Bernanke espera influenciar as expectativas dos agentes económicos e assim tentar estancar a desvalorização do dólar, que, ao tornar as importações mais caras, contribui para o aumento generalizado de preços. Porém, o seu congénere europeu Jean Claude Trichet, dois dias depois, foi mais longe e anunciou uma iminente subida (mais uma) das taxas de juro. O que não nos deve surpreender sabida que é a obsessão do BCE com a estabilidade dos preços.

Se, como estamos fartos de saber, a actual inflação se deve sobretudo ao aumento dos preços do petróleo e bens alimentares, porque é que são os bancos centrais a tratar do problema? A explicação reside em Milton Friedman e na sua teoria monetarista, ainda muito influentes nas actuais opções políticas das autoridades monetárias. Para os monetaristas a inflação é sempre um fenómeno monetário, consequência de um excesso de moeda a circular na economia em relação ao seu produto. A culpa é, pois, sempre das autoridades monetárias, nunca do mercado)... Assim, com uma subida da taxa de juro o BCE estará a tornar o crédito mais difícil. Com menos gente a recorrer a empréstimos, a massa monetária diminuirá e a inflação ficará controlada.

No entanto, sabemos que uma subida da taxa de juro reduzirá as pressões inflacionistas, não tanto através de um qualquer ajustamento da moeda em circulação, mas sobretudo devido ao estímulo recessivo que transmite à economia (os famosos canais de transmissão monetária keynesianos). A moeda não é neutra. Com taxas de juro mais elevadas, o investimento e o consumo tornar-se-ão mais caros, reduzindo a procura na economia. Estamos assim perante uma recessão induzida pela política monetarista do BCE.


quarta-feira, 18 de junho de 2008

Os novos tubarões do crédito

Vale a pena ler este post de Pedro Lains sobre os novos tubarões do crédito ao consumo. Sinceramente, fiquei chocado com as estratégias de cobrança que Pedro Lains relata na primeira pessoa (embora não fosse o próprio o devedor). Com agressivas propostas de crédito ao consumo, estas empresas, muitas vezes com nomes respeitáveis como Cofidis ou General Electric, cobram taxas de juro muito superiores - duas a três vezes - ao já questionável crédito ao consumo da banca “tradicional”, aproveitando-se da iliteracia financeira reinante (sobretudo entre os mais pobres). Agiotagem moderna. É, pois, urgente regulamentar e vigiar estes novos agentes nascidos da liberalização financeira. Penso, aliás, que só ganharíamos com a sua ilegalização.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Dos baixos salários num país desigual

«Nunca houve tanta gente a ter um segundo trabalho». Manuel Esteves no DN. O sobrendividamento e os esforços políticos em curso para comprimir salários que já são muito baixos garantem o alastramento destas estratégias de sobrevivência. O regresso forçado ao campo ou ao biscate. Trabalhar cada vez mais para manter um nível de vida baixo ou para «gerir» a sua deterioração. Viver no fio da navalha e estar exposto a escolhas trágicas permanentes. É sempre assim em países demasiado desiguais e onde é grande o peso dos trabalhadores pobres. Diz-se que os valores da família estão em crise e que as crianças estão muito desamparadas. Pois é. A utopia do capitalismo sem fim, que odeia tempos mortos, nunca pára à porta de casa. De algumas casas.

Nota. Este livro sobre o declínio do tempo de lazer entre os trabalhadores norte-americanos poderia inspirar análises semelhantes para Portugal. Talvez não por acaso, Juliet Schor também escreveu um livro sobre o sobrendividamento e o sobreconsumo nos EUA. Descontando as diferenças óbvias, há padrões que parecem repetir-se dos dois lados do Atlântico.

Regresso ao passado?

Se as actuais tendências prosseguirem, a polarização social e a concentração de rendimentos em Portugal poderão bem regressar ao padrão dos anos trinta e quarenta. Facundo Alvaredo, da Paris School of Economics, escrutinou a evolução dos rendimentos do topo da distribuição em Portugal entre 1936 e 2004 (via João Ramos de Almeida do Público). O seu estudo identifica um significativo incremento do peso dos rendimentos do topo a partir da década de oitenta e, em jeito de conclusão, oferece-nos uma breve história do país: «o nível de concentração [de rendimentos] entre 1950 e 1970 permaneceu relativamente elevado, quando comparado com países como a Espanha, a França, o Reino Unido e os EUA. O decréscimo começou muito moderadamente no início dos anos sessenta [efeitos da emigração], acelerou-se depois da revolução de 1974 [25 de Abril sempre!] e começou a ser revertido no início dos anos oitenta. Durante os últimos quinze anos, as percentagens de rendimento dos 10% do topo aumentaram continuadamente. O aumento é maior, quanto mais elevado é o escalão considerado (...) Estas dinâmicas são parcialmente guiadas pelo comportamento dos salários de topo». Os brilhantes resultados económicos do ciclo de neoliberalização do país, que gerou estes «incentivos», estão à vista de todos. O combate às desigualdades deve ser a prioridade. Nunca a palavra de ordem «os ricos que paguem a crise» fez tanto sentido. Ideias justas não faltam. Apenas falta força política para as impor.

Mais Ladrões de Bicicletas

O blogue tem novos ladrões: Jorge Bateira, José Maria Castro Caldas, André Freire e José Reis. Política. Economia. Política económica. Economia política. Um blogue cada vez mais impuro. Um blogue com maior diversidade e profundidade. Um blogue sempre à esquerda.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

A paixão pelo sul (do Tejo)

Há dias, o Tribunal de Justiça Europeu obrigou Portugal a cobrar IVA à taxa normal de 21% na travessia das pontes sobre o Tejo. Até agora a taxa cobrada era a de 5%. O governo fez saber que transferirá para a Lusoponte a nova receita fiscal, mantendo-se, por isso, o preço das portagens para os utilizadores.
Acontece que o crescimento urbano da margem sul é um dos mais poderosos mecanismos da concentração demográfica num território limitado e congestionado, com consequências óbvias no desenho territorial do país e na lógica das relações interterritoriais internas. Este é também o local de conhecidos projectos imobiliários e turísticos.
Não é necessário lembrar outros episódios recentes da notória, mas não revelada, paixão do governo pelo sul do Tejo. Ficamos a saber que os custos dessa operação não têm sequer como limite a tão canónica gestão das contas públicas. Paguemos, pois, o desequilíbrio territorial e o acesso que viabiliza as rendas imobiliárias. Porque os objectivos orçamentais e fiscais mantêm-se, supõe-se...
Começar de novo

Face ao Não da Irlanda ao Tratado de Lisboa, de forma arrogante alguns líderes da UE logo afirmaram que se trata de um problema que a própria Irlanda terá de resolver. Este é mais um episódio da cegueira que há longo tempo afecta a maioria da classe política da UE.

Bem sei que os Tratados são demasiado complexos para serem lidos, interpretados, e com conhecimento de causa votados pelos cidadãos. Ainda assim, importa não esquecer que também nas eleições legislativas a esmagadora maioria dos cidadãos também não lê os programas eleitorais dos partidos, o que não torna menos legítimas as suas escolhas. É possível que a exploração demagógica de alguns temas, alheios ao Tratado, tenha favorecido a campanha do Não na Irlanda. Contudo, não é menos verdade que os resultados das eleições autárquicas nos vários países também são “contaminados” pela conjuntura política nacional e, ainda assim, ninguém os deprecia.

De facto, a questão central é outra. Como foi possível pensar que um processo de construção política federal se pudesse realizar sem que os cidadãos europeus fossem directamente envolvidos e sentissem esse projecto como indispensável a um futuro de paz e prosperidade para as suas comunidades? O Tratado de Maastricht, com a criação de uma moeda única e outras inovações de natureza federal, foi um salto qualitativo no processo de construção de uma soberania supranacional, para o qual o Tratado de Lisboa dá novos contributos. Estarão os cidadãos europeus minimamente conscientes do que realmente significa o processo em que embarcámos?

Hoje, os cidadãos europeus sabem que o prometido maior crescimento económico resultante da integração europeia não se concretizou, antes deu lugar a uma prolongada estagnação e elevado desemprego; sentem que a UE não tem políticas de curto prazo que permitam fazer face a uma crise económica grave como a que atravessamos; observam o contraste entre as remunerações dos mais altos responsáveis pela especulação financeira ruinosa e a forma como o trabalho é sistematicamente tratado como “variável de ajustamento” a penalizar; estão habituados a ouvir o Banco Central Europeu exigir moderação salarial sob pena de novos aumentos das taxas de juro e vêm que, na prática, isso significa estagnação ou perda de poder de compra. Tudo isto, associado ao crescente descrédito da classe política, constitui o pano de fundo dos sucessivos Não: francês, holandês e irlandês.

A esmagadora maioria dos cidadãos não percebe que a Zona Euro caminha para o desastre porque o euro não é sustentável, social e politicamente, sem uma política orçamental, um poder democraticamente responsável pela sua gestão e um Banco Central mandatado para cooperar com políticas de crescimento. Os cidadãos podem não entender estes mecanismos, mas há algo que muitos já perceberam: que têm direito a uma vida melhor e estão dispostos a fazer alguma coisa para que os directórios políticos mudem o que tiver de ser mudado. O veto de referendos nacionais, provavelmente decidido em Lisboa, foi uma resposta cobarde à frustração de muitos cidadãos com os resultados da integração europeia e a forma como tem sido conduzida. A europeísta Irlanda estragou a fuga em frente e, mais tarde ou mais cedo, vai suscitar referendos em outros países porque, em última análise, o que está em causa é uma decisão de partilhar a soberania num contexto de grave crise socioeconómica. Na ausência de esperança, outros Não vêm a caminho.

Em vez de chamar ingratos aos Irlandeses, temos de falar claro sobre o que está em causa. Temos de exigir um amplo debate sobre a escolha com que estamos confrontados: construir uma democracia de natureza federal que dá prioridade ao pleno emprego e à redução das desigualdades ou prolongar a estagnação socioeconómica resultante da engenharia legislativa, de matriz neoliberal, que tem sido conduzida nas costas dos cidadãos. É verdade, há anos que a UE está em crise e há que superá-la. Mas convém não esquecer que ‘crise’ também significa ‘oportunidade’; neste caso a de recomeçar o processo de construção da UE em novas bases. Também passa por aqui o futuro da esquerda socialista.

Reforma laboral ou os salários como única variável de ajustamento

Casimiro Ferreira é especialista em questões do trabalho e chegou a fazer parte da Comissão do Livro Branco das Relações Laborais, tendo-se demitido devido às orientações nela dominantes. Nesta entrevista assinala a «verdadeira razão de ser desta reforma laboral»: «não é a questão do despedimento, isso é como se diz na gíria atirar poeira para os olhos (. . .) o que está aqui em causa é tão somente a questão da adaptabilidade dos horários de trabalho e naquilo em que a adaptabilidade dos horários de trabalho se relaciona com o trabalho suplementar porque naturalmente num país como o nosso, onde os salários são baixos as horas extraordinárias, como se costuma chamar, servem como complemento de salário. A partir do momento em que se consigam introduzir factores de adaptabilidade na flexibilidade horária ela traduz-se também em flexibilidade salarial. E aí sim, aí baixam os custos de produção. Essa é a verdadeira motivação para a reforma do código». Se a isto juntarmos uma legislação laboral que, como bem defende Casimiro Ferreira, já é, na prática, extremamente «liberal», temos mais algumas pistas para perceber a convergência que, segundo o DN, parece estar em curso entre governo e patrões.

domingo, 15 de junho de 2008

As esquerdas, os equívocos e o povo

Já foi comentado neste blogue o artigo de Vital Moreira no Público chamado «Equívocos à esquerda».

A argumentação de Vital Moreira sobre a impossibilidade de coligações (ou acordos de incidência parlamentar, outra possibilidade não considerada pelo articulista...) entre o PS e os partidos à sua esquerda assenta em quatro equívocos fundamentais.

Primeiro, esta ideia de que as esquerdas podem e devem tentar entender-se para uma solução de governo estável, caso o PS não tenha maioria absoluta, não é uma ideia peregrina agora defendida por Manuel Alegre. Não, foi subscrita por vários notáveis (Alberto Martins, Manuel Maria Carrilho, Vera Jardim, Maria de Belém Roseira e vários outros que apoiaram Alegre) do partido, em 2004, nas célebres primárias que opuseram Alegre, João Soares e Sócrates.

Segundo, a ideia de que as distâncias entre o PS e os partidos à sua esquerda, nomeadamente em matéria de política europeia, inviabilizariam tal entendimento não resiste a uma pequena análise comparativa. Por exemplo, todos nos lembramos que metade do PS francês defendeu o não à Constituição Europeia e o partido não só sobreviveu como esteve quase a ganhar as presidenciais de 2007. . . Mais, o europeísmo céptico (ou crítico) à esquerda do PS não será, pelo menos nalguns casos, muito diferente do que existe no PCF, na Izquierda Unida ou na Rifondazione Comunista. Ora qualquer destes partidos já se coligou (ou fez acordos) com os equivalentes do PS nesses países. . . E quando vemos o PS calado perante a recente orientação da Comissão Europeia de estender o horário de trabalho semanal até um máximo de 65 horas (Público, 11/6/2008), ficamos com a ideia de que, secalhar, o partido precisa mesmo de algum europeísmo céptico. . .
Recorde-se que, sobre esta orientação da Comissão, o PSOE afirmou que estamos perante um regresso ao século XIX. . . Ele há socialistas e socialistas. . .

Terceiro, a argumentação de Moreira é tão antiga como o próprio sistema político português da era democrática e tem levado, na prática, àquilo que eu chamei o "enviesamento de direita do sistema partidário português" (sobre esta matéria veja-se também o recente livro de Carlos Jalali sobre os partidos portugueses): historicamente o PS entendeu-se sempre com a direita, e nunca com a esquerda, para soluções de governo. Não será tempo de mudar essa sina?

Quarto, numa democracia, o povo tem a última palavra nas eleições. E, portanto, se, primeiro, nessas eleições os eleitores reforçarem significativamente os partidos à esquerda do PS; segundo, retirarem a maioria absoluta a este último; terceiro, deixarem a direita ao nível a que tem estado, nomeadamente inviabilizando a solução PS-CDS, ficará muito difícil para o PS não tentar entender-se com a sua esquerda. . . É que os entendimentos à esquerda podem ser difícieis, ninguém o nega. Mas não podem nunca ser o ponto de partida, como defende Moreira. Outro independente, como eu, o jornalista José Carlos de Vasconcelos explica muito bem e claramente quais são as condições mínimas para um entendimento à esquerda ("Pode a esquerda entender-se?", Visão, 12/6/08, p. 42). Mas elas não só não têm nada que ver com os argumentos de Vital Moreira como são perfeitamente ultrapassáveis (assim haja vontade política e o povo aponte com clareza nesse sentido).

Ranking da Arrogância


3 - Respeitamos o resultado irlandês, mas o processo de ratificações deve continuar. A Irlanda deverá resolver o seu problema.

Ou seja, não respeitamos o resultado irlandês e continuamos como se não fosse nada. Acabado o processo de ratificações parlamentares, a Irlanda forçará um novo referendo. Testada e provada na Dinamarca, a trafulhice em out-sourcing. Como disse o primeiro-ministro polaco: «Seguramente que a Irlanda encontrará uma forma de ratificar este Tratado.»

Seguramente.

2 - O não ganhou com argumentos conservadores e de Direita

Ou seja, a democracia vale desde que se utilize os argumentos certos. E os irlandeses estão confusos. Não deixa de ser curioso como mesmo opositores do Tratado compram acriticamente este argumento. No entanto, os serviços públicos, os direitos laborais, a democracia na Europa, o ambiente, a paz, foram alguns dos temas levantados pela esquerda irlandesa. Não se trata propriamente de uma agenda reaccionária.

Claro que há um não de direita ao Tratado, mas deixarei o argumento das más companhias para quem gosta de estar com Sarkozy, Berlusconi e Paulo Portas.

And the winner is...

1 - 1% dos europeus não podem impôr a sua vontade ao resto dos europeus.

A competição é apertada, mas este é o meu preferido. O único país que referendou o Tratado de Lisboa, rejeitou-o. A conclusão é a de que temos 1% da população europeia a impôr a sua vontade aos outros 99% entre os quais se contam os que ainda não tiveram oportunidade de referendar nem este tratado nem o anterior (como Portugal) e os que, tendo referendado e rejeitado um texto igual, foram agora enganados pelos seus governos (França e Holanda).

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Tratado de Lisboa para o caixote do lixo da história

«O ministro da Justiça irlandês admitiu já a vitória do 'não' no referendo ao Tratado de Lisboa, confirmando os números que estão a ser divulgados pela imprensa» (Público). Boas notícias. Assim se confirma como o anti-democrático vanguardismo liberal das elites políticas e económicas europeias, que procura limitar a democracia para expandir o alcance das forças de mercado, esbarra sempre nos países onde os cidadãos podem fazer uso, em referendo, da arma do voto.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Maus ventos económicos

Um dos ensaios de economia impura de José Reis é dedicado à discussão do que podemos designar por paroquialização da economia portuguesa: «Hoje, a União Europeia tem um peso de cerca de 80% de todo o comércio internacional do país, quer na entrada quer na saída de mercadorias. Mas insiste-se que o facto mais relevante trazido pelo aprofundamento da integração real e formal na União Europeia é exactamente a importância assumida das relações económicas de proximidade, isto é, a iberização da nossa integração europeia. De facto, a aceleração da abertura, realizado no quadro da integração europeia, conduziu a um estreitamento das nossas relações económicas internacionais». O mercado espanhol absorve agora 28% das nossas exportações (contra 15% há apenas dez anos). Paradoxos da, no nosso caso, mal chamada globalização. O Expresso desta semana parece ter considerações pertinentes e preocupantes sobre este tema: «A Espanha vai crescer este ano ao ritmo mais baixo desde 1993. É uma péssima notícia para a economia portuguesa que vende para o mercado espanhol quase um terço das suas exportações (. . .) as exportações caem, as empresas têm menos encomendas e o número de portugueses a trabalhar para Espanha, principalmente na construção, diminui. Até que ponto Portugal conseguirá sobreviver aos maus ventos que sopram da economia espanhola? Vamos importar mais uma crise?».

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Crise logística

Pode ser que daqui a pouco já tudo tenha terminado, mas até agora a paralisação dos empresários de camionagem serviu para pelo menos duas coisas: (1) Revelar a extraordinária fragilidade do sistema de logística - bastaram dois dias! (2) Relembrar outras paralisações de empresários de transportes, de má memória. Gostei de ver os sindicatos longe deste movimento. Afinal também aqui Polanyi é para levar a sério: o contra-movimento - o movimento contra a utopia do mercado sem limites - existe no plural e é politicamente indeterminado.

O partido do bloco central

A reacção sectária de Vital Moreira ao crescimento e capacidade de iniciativa e de proposta política das esquerdas socialistas é um bom sintoma da preocupação do partido do bloco central que tem comandado as políticas públicas em Portugal. Trata-se de queimar pontes e de começar a preparar o terreno para «pensar o impensável»: um governo do bloco central a sério em 2009. Sócrates e Ferreira Leite com a bênção de Cavaco. Evitar qualquer convergência à esquerda parece ser a prioridade. De resto não há muito a dizer porque o seu artigo no Público de ontem é parco em argumentos. Só não percebo como é que alguém que quer usar o financiamento público para promover a expansão dos grupos privados rentistas em sectores essenciais da provisão pública se pode apresentar como um grande defensor do Estado Social. Enfim, Vital Moreira é hoje o principal ideólogo da direitização do «socialismo moderno» português e esta sua função torna o debate muito pouco interessante. De qualquer forma, ficam algumas perguntas: Quem apresentou propostas de combate à precariedade no sector privado e na administração pública? Quem contestou as dispendiosas e ineficientes engenharias mercantis das parcerias público-privadas ou as danosas privatizações de sectores estratégicos (estou a pensar na Galp)? Quem apresentou propostas para diversificar as fontes de financiamento da Segurança Social por forma a evitar que os «sacrifícios» caíssem apenas sobre os mesmos de sempre? Quem apresentou propostas fiscais realistas para combater a especulação financeira e imobiliária e para diminuir a escandalosa fuga ao fisco? Quem defende uma revisão do governo económico europeu para reabilitar políticas de pleno-emprego sem as quais não há Estado Social que nos valha? As perguntas multiplicam-se. A linha de que Vital Moreira é o ideólogo tem de ser derrotada. Isto exige apenas o reforço das esquerdas socialistas que não se renderam ao neoliberalismo, mesmo que seja na versão ordoliberal, bem mais realista e eficaz do que as restantes.