Começar de novo
Face ao Não da Irlanda ao Tratado de Lisboa, de forma arrogante alguns líderes da UE logo afirmaram que se trata de um problema que a própria Irlanda terá de resolver. Este é mais um episódio da cegueira que há longo tempo afecta a maioria da classe política da UE.
Bem sei que os Tratados são demasiado complexos para serem lidos, interpretados, e com conhecimento de causa votados pelos cidadãos. Ainda assim, importa não esquecer que também nas eleições legislativas a esmagadora maioria dos cidadãos também não lê os programas eleitorais dos partidos, o que não torna menos legítimas as suas escolhas. É possível que a exploração demagógica de alguns temas, alheios ao Tratado, tenha favorecido a campanha do Não na Irlanda. Contudo, não é menos verdade que os resultados das eleições autárquicas nos vários países também são “contaminados” pela conjuntura política nacional e, ainda assim, ninguém os deprecia.
De facto, a questão central é outra. Como foi possível pensar que um processo de construção política federal se pudesse realizar sem que os cidadãos europeus fossem directamente envolvidos e sentissem esse projecto como indispensável a um futuro de paz e prosperidade para as suas comunidades? O Tratado de Maastricht, com a criação de uma moeda única e outras inovações de natureza federal, foi um salto qualitativo no processo de construção de uma soberania supranacional, para o qual o Tratado de Lisboa dá novos contributos. Estarão os cidadãos europeus minimamente conscientes do que realmente significa o processo em que embarcámos?
Hoje, os cidadãos europeus sabem que o prometido maior crescimento económico resultante da integração europeia não se concretizou, antes deu lugar a uma prolongada estagnação e elevado desemprego; sentem que a UE não tem políticas de curto prazo que permitam fazer face a uma crise económica grave como a que atravessamos; observam o contraste entre as remunerações dos mais altos responsáveis pela especulação financeira ruinosa e a forma como o trabalho é sistematicamente tratado como “variável de ajustamento” a penalizar; estão habituados a ouvir o Banco Central Europeu exigir moderação salarial sob pena de novos aumentos das taxas de juro e vêm que, na prática, isso significa estagnação ou perda de poder de compra. Tudo isto, associado ao crescente descrédito da classe política, constitui o pano de fundo dos sucessivos Não: francês, holandês e irlandês.
A esmagadora maioria dos cidadãos não percebe que a Zona Euro caminha para o desastre porque o euro não é sustentável, social e politicamente, sem uma política orçamental, um poder democraticamente responsável pela sua gestão e um Banco Central mandatado para cooperar com políticas de crescimento. Os cidadãos podem não entender estes mecanismos, mas há algo que muitos já perceberam: que têm direito a uma vida melhor e estão dispostos a fazer alguma coisa para que os directórios políticos mudem o que tiver de ser mudado. O veto de referendos nacionais, provavelmente decidido em Lisboa, foi uma resposta cobarde à frustração de muitos cidadãos com os resultados da integração europeia e a forma como tem sido conduzida. A europeísta Irlanda estragou a fuga em frente e, mais tarde ou mais cedo, vai suscitar referendos em outros países porque, em última análise, o que está em causa é uma decisão de partilhar a soberania num contexto de grave crise socioeconómica. Na ausência de esperança, outros Não vêm a caminho.
Em vez de chamar ingratos aos Irlandeses, temos de falar claro sobre o que está em causa. Temos de exigir um amplo debate sobre a escolha com que estamos confrontados: construir uma democracia de natureza federal que dá prioridade ao pleno emprego e à redução das desigualdades ou prolongar a estagnação socioeconómica resultante da engenharia legislativa, de matriz neoliberal, que tem sido conduzida nas costas dos cidadãos. É verdade, há anos que a UE está em crise e há que superá-la. Mas convém não esquecer que ‘crise’ também significa ‘oportunidade’; neste caso a de recomeçar o processo de construção da UE em novas bases. Também passa por aqui o futuro da esquerda socialista.
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