segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A infinita lata de Bonifácio


«O Chega, se conquistar a necessária credibilidade, talvez ajude a criar um espaço de discurso público isento dos constrangimentos e dos tabus que têm impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo. O desnorte político e intelectual criado pela sua aparição parece-me um fenómeno de bom agoiro» (Fátima Bonifácio, aqui)

José Miguel Júdice, Marques Mendes, Paulo Portas, Miguel Poiares Maduro, António Lobo Xavier, Nuno Rogeiro, José Manuel Fernandes, João Vieira Pereira, Helena Garrido, Bernardo Ferrão ou José Gomes Ferreira, para citar só de memória alguns dos comentadores de direita, políticos e jornalistas (estes apresentados como isentos), que proliferam nos espaços televisivos de comentário político (para já nem falar de um Observador que a esquerda não tem).

Um estudo do MediaLAB (ISCTE) de 2019, publicado no European Journalism Observatory, tema de um texto de Paulo Pena no Diário de Notícias de 8 de junho desse ano, não podia ser mais claro: «nos últimos três anos aumentou o número de comentadores políticos ligados ao PSD e ao CDS nos vários canais televisivos. (...) O PCP é o partido menos representado». Fazendo as contas, à direita cabem cerca de 60% dos intervenientes em programas de comentário e debate político nos principais canais e à esquerda cerca de 30%, com os comentadores não alinhados na ordem dos 11%. Em clara dissonância, portanto, com a composição político-partidária do Parlamento.

Nada que impeça Fátima Bonifácio de achar, no artigo de hoje no Público (com palavras escritas «numa cave clandestina e disponibilizadas em papel bíblia policopiado e distribuído ilegalmente», como intui, com ironia, Pedro Vieira), que o Chega é uma oportunidade para romper com os constrangimentos e tabus «que têm impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo». Face ao absurdo, talvez não fosse má ideia encontrar melhores pretextos para dissimular a vontade de saudar, branquear e normalizar a chegada desta extrema-direita.

Isto não é normal

A sabedoria convencional quer sempre fechar os chamados parênteses da história e regressar ao status quo ante. Hoje, é preciso lembrar a catástrofe da economia política desse mundo dito normal. Perante a encarnação desse desejo, perante Biden, tem a palavra Robert Reich. É um dos melhores exemplos da economia política social-democrata nos EUA, rompendo com os chamados novos democratas, depois de ter sido secretário de estado do trabalho durante a presidência Clinton:

“A normalidade deu origem a Trump e ao coronavírus. A normalidade significou quatro décadas de salários estagnados e um aumento da desigualdade, de tal forma que quase todos os ganhos económicos foram canalizados para o topo. A normalidade significou 40 anos de redes de apoio social rompidas e o mais caro e desadequado sistema de saúde do mundo moderno. A normalidade é a brutalidade policial. A normalidade é a mudança climática à beira da catástrofe.” (minha tradução)

domingo, 29 de novembro de 2020

Mundo cão

Chamo a vossa atenção para o artigo que se segue, da autoria autorizada do jurista António Garcia Pereira. 

"A selva laboral dos nossos dias" não é nada que não saibamos, mas tem a força do compacto de realidades que, por vezes, mesmo sem as esquecermos, não lhe damos este retrato da violência de classe de que está impregnada a "ciência" neoliberal e os argumentos "técnicos" esgrimidos em concertação social, que colocam displicentemente o mundo do trabalho como "variável de ajustamento" do que correr mal - ou não - nas empresas. O problema é que nesse "outro lado" estamos quase todos nós. E estaremos por muito tempo, porque este "mundo cão" acaba por engendrar e reforçar um certo modelo  de subdesenvolvimento.  

"Vivem-se hoje momentos muito difíceis para quem vive do seu trabalho, e os que se avizinham serão decerto ainda piores. Para além dos inúmeros despedimentos já anunciados e de toda uma série de outros abusos (como, por exemplo, os processos de lay-off efectuados à margem da lei, antecipando futuros despedimentos, a imposição de “adendas” aos contratos aumentando os tempos de trabalho e/ou diminuindo as retribuições, ou a substituição em massa de trabalhadores formalmente precários por outros ainda mais precários), torna-se cada vez mais evidente que, a breve trecho, virão aí inúmeros fechos e insolvências de empresas. 

Os desempregados 

Com um número real de desempregados (isto é, de todos quantos na verdade se encontram nessa situação, independentemente de estarem ou não inscritos nos Centros de Emprego ou de procurarem activamente emprego) a ultrapassar, no final do 3º trimestre de 2020, 655 mil (12% da população activa), dos quais apenas 230 mil (pouco mais de 1/3) consegue receber subsídio de desemprego, fácil é perceber que quando o desemprego real atingir o 1 milhão de desempregados, mais de 600 mil não terão direito a tal subsídio e o chamado “Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores”[1], além de irrisório, não chegará nem para 1/3 das pessoas em situação de particular desprotecção económica. 

Os pensionistas 

Quanto aos 3,3 milhões de pensionistas, apenas os que têm pensões inferiores a 659€ mensais – e que são 1,9 milhões! – terão em 2021 um miserável aumento (de 10€ mensais, ou seja, 0,66€/dia). A situação da grande maioria dos pensionistas é, pois, de uma grande miséria. Segundo a Pordata o valor mínimo mensal das pensões de velhice e de invalidez da segurança social era de 273,39€ em 2019 e de 275,30€ em 2020, sendo que, em 2019, mais de 1,6 milhões de pensionistas tinha pensões inferiores ao salário mínimo nacional!  

Os trabalhadores “não declarados” 

O chamado “trabalho não declarado” – ou seja, que é prestado, e (mal) remunerado, à margem da lei – representará cerca de 1/4 de todo o PIB[2], o que significa que, em 25% da actividade produtiva do país, não há leis do Trabalho, nem salários mínimos, nem segurança e saúde na prestação da actividade, nem sequer seguro de acidentes de trabalho, vigorando tão somente a lei da selva.  

Os trabalhadores precários 

Tempos difíceis

1. Vale a pena recuperar, nos dias que correm, este texto de João Ferrão sobre o processo de difusão do Covid-19 e a importância do território. Nele se sugere que num primeiro momento a incidência da pandemia resultou da maior exposição das áreas metropolitanas ao exterior (sobretudo a AMP), seguindo-se a propagação para contextos com dinâmicas mais relevantes de interação regional e nacional (em particular as cidades médias), criando as condições para formas de contágio generalizadas e difusas, em função da suscetibilidade e vulnerabilidade de outros espaços.

2. De facto, se no início se registou uma maior incidência da pandemia no norte litoral, a par de alguns concelhos na AML e outros pontos mais específicos, a segunda vaga carateriza-se por uma incidência mais generalizada e dispersa, a par da anterior prevalência de certos contextos. O que quer dizer que se na primeira fase os surtos eram mais definidos e delimitados (fábricas, lares, festas, etc.), facilitando o rastreio, na segunda prevalece o contágio mais difuso e de micro-escala (agregados familiares e comunidades), associado a um certo relaxamento social na sequência do desconfinamento e ao regresso à «normalidade», e por isso mais difícil de rastrear.


3. Quer isto dizer que faz hoje ainda menos sentido que na primeira vaga o foco mediático em eventos pontuais e únicos - do 25 de abril ao 1º de maio, do 13 de maio à Festa do Avante, ou do 13 de outubro ao Congresso do PCP - quando o maior risco de descontrolo da pandemia advém de um contágio generalizado e disperso. Não é a mesma coisa - ainda que se compreenda o sentimento de injustiça - permitir a celebração de um 13 de maio em Fátima (isto é, num dia e num local precisos), e autorizar missas e funerais por todo o país, em que se torna impossível verificar e garantir o cumprimento das normas de segurança, nos diferentes dias e locais em que esses eventos ocorrem.

4. Sabemos bem, contudo, que esta obssessão mediática por eventos únicos em contexto de pandemia (o episódio mais recente é o Congresso do PCP) não é inocente nem isenta, visando precisamente alimentar a crispação social. O que, de um ponto de vista pedagógico, é duplamente perigoso. De facto, esta obsessão mediática dirigida não só é desiformativa em relação aos processos e formas de contágio mais relevantes (atribuíndo um risco a eventos únicos e pontuais que estes não têm), como promove uma equivalência de eventos (de natureza partidária e os outros), que desvaloriza pilares essenciais da democracia. Desta forma, os tempos tornam-se ainda mais difíceis.

sábado, 28 de novembro de 2020

Vermelho é cor


O PCP é uma condição necessária, mas naturalmente não suficiente, para uma alternativa digna desse nome para este país. Lendo as teses que estão a ser debatidas no seu congresso, com os acordos e desacordos naturais, atrevo-me a dizer que não conheço melhor reflexão política colectiva disponível neste país. A falível tomada de posição política é sempre implícita ou explicitamente comparativa. 

Neste dia, deixo-vos um contributo que redigi para um número de uma publicação chamada Caderno Vermelho, dirigida por Manuel Gusmão, lançado na última Festa do Avante. Numa época em que é particularmente necessário ter presente a tradição antifascista, sei bem quem nunca se vergou e quem mais contribuiu para a sua teorização prática neste país: 

De um blogue para um caderno vermelho 

O blogue de economia política Ladrões de Bicicletas foi fundado em 2007, nas vésperas da maior crise desde a Grande Depressão. A crise, sempre a crise. O que se segue é uma selecção de alguns textos dos sombrios meses de Março e de Abril de 2020. Partilho desta forma com o leitor, agora do Caderno Vermelho, algumas pistas sobre estes tempos, sem perder a esperança numa outra forma de economia política, ao serviço dos subalternos, e tentando ser fiel a uma ideia simples: “aprender, aprender, aprender sempre”. 

1 de Março de 2020 
Ao saber que foram três investigadoras, precárias e relativamente mal remuneradas num hospital universitário público de Milão, a isolar a estirpe de coronavírus em Itália, lembrei-me de uma hipótese antiga, desenvolvida pelo economista político Thorstein Veblen no ano em que começou a Primeira Guerra Mundial: o instinto do trabalho bem feito, ao serviço dos outros, sobrevive, apesar de muito militar institucionalmente contra a sua transformação num hábito mais generalizado, apesar de quase tudo promover no capitalismo, pelo contrário, a activação do instinto predador. Só esta sobrevivência e a sua generalização institucional nos podem resgatar da barbárie.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Portugal é o "bom aluno" de que escola?

No mais recente relatório publicado sobre o cenário macroeconómico da zona euro, o Banco Central Europeu analisa a previsão dos orçamentos dos países pertencentes à moeda única e destaca a tendência de consolidação orçamental no próximo ano. O BCE alerta que esta "pode acentuar a atual situação económica", isto é, agravar a recessão que a região atravessa, pelo efeito pró-cíclico da restrição da despesa e investimento públicos. A recomendação de uma política expansionista em resposta à crise encontra-se, de resto, em linha com o que tem sido dito pelo Fundo Monetário Internacional, que estimou que um aumento de 1% do PIB no nível de investimento público pode levar a um crescimento de 2,7% do PIB em dois anos.

É também o que tem sido dito por vários dos economistas para os quais, nos últimos anos, a intervenção do Estado na economia costumava ser encarada com desconfiança. No Financial Times, Martin Wolf escreveu recentemente que "os governos podem dar-se ao luxo de gastar. Aquilo a que não se podem dar ao luxo é não o fazer, deixando que as economias vacilem, que as pessoas se sintam abandonadas, que as cicatrizes económicas se agravem e que as economias se vejam presas numa trajetória permanente de crescimento inferior". Longe de ser ineficiente, a política orçamental é decisiva para enfrentar uma recessão como a atual, pelo efeito multiplicador no rendimento agregado e pelo papel impulsionador da atividade económica. Sobretudo no atual contexto em que, com taxas de juro baixíssimas devido à atuação do BCE, dificilmente podia ser melhor altura para orçamentos expansionistas.

O problema é que as últimas estimativas apontam para que Portugal seja um dos países que menos gasta em políticas estruturais para combater a crise (isto é, além da despesa relacionada com medidas de emergência). Na verdade, excluindo as medidas provisórias, o OE2021 é de contração, algo que só acontece também na Bélgica e na Finlândia. Ou seja, o governo decide contrariar as recomendações que até já são defendidas pelas instituições mais ortodoxas e quer recolocar o país no grupo dos que mais restringem a política orçamental na Europa, precisamente no contexto em que a única opção sensata é evitá-lo. A última crise financeira deixou claros os enormes custos sociais desta estratégia. Essa lição parece cada vez mais esquecida.

Morre um gatinho sempre que alguém fala da reedição de 2011

 

Morre um gatinho de cada vez de que alguém diz que fazer pressão sobre o conteúdo do orçamento foi brincar com o fogo e que isto podia ter sido a reedição de 2011, com as taxas de juro da dívida pública a dispararem e Portugal ficar sem acesso a liquidez, empurrando-nos para um novo resgate e para a direita no poder.

Em 2011, o BCE deixara claro aos mercados que não iria comprar dívida dos países em mercado secundário. O que significa isso? Significa que quem tinha títulos de dívida estaria numa posição de tremendo risco caso os países soberanos (incapazes de emitir euros) não pudessem pagar. Foi essa espiral de pânico que criou, num momento de grande stress financeiro e de dívidas crescentes pela resposta à crise de 2009, a subida das taxas de juro.

Essas mesmas taxas de juro viriam a descer em 2012 não devido à austeridade, mas porque o BCE anunciou que faria o que fosse necessário para conservar a zona euro. Passado pouco tempo, começou a comprar dívida pública no mercado secundário e os investidores souberam que teriam a quem vender os seus ativos em caso de stress financeiro.

Desde então, o BCE tem mantido esse programa de estímulos. Com a pandemia, expandiu o seu balanço para níveis estratosféricos, comprando ativos com menos critério do que uma tia de Cascais nos saldos. Entre outras coisas, isto evidenciou que um banco central que emite uma moeda de referência internacional pode facilmente expandir o seu balanço para diminuir a perceção de risco e evitar crises, sem que daí advenham pressões inflacionárias. 

A taxa de juro a 10 anos (notem, a 10 anos!) da economia portuguesa está a roçar terreno negativo. O que isto significa é que, enquanto este enquadramento durar, Portugal pode endividar-se de forma considerável sem comprometer a sustentabilidade da sua dívida. Até se o governo português se endividar par investir na venda de missangas da D. Mónica é possível que seja um investimento sustentável, porque a banca de missangas da D. Mónica há-de conseguir uma taxa de retorno superior a 0%. Este deveria ser o momento de o Estado ser o agente de acumulação de capital na economia, face à margem de financiamento e à paralisação do investimento privado. 

A única forma de este enquadramento mudar seria o BCE anunciar que não compraria mais dívida portuguesa caso o orçamento não fosse aprovado. Mas nesse caso, meus amigos, isso seria uma declaração de guerra, porque de outra forma não se pode interpretar a ação de um banco central que se imiscuísse dessa forma nas decisões soberanas. Ainda assim, eu dava um rim em como isto não aconteceria, porque a tentativa de evitar qualquer abalo na zona euro neste momento é muito forte.

Isto não é 2011. Aliás, o que isto demonstra é que aqueles que disseram que a austeridade não era solução para a crise em 2011 tinham razão. Tivesse o BCE agido atempadamente então e o sofrimento infligido à população portuguesa, o desemprego e a emigração teriam sido poupados. Comprar esta narrativa é comprar uma visão manietada da ação do Estado e uma visão moral da dívida que só interessa à direita e ao seu projeto.

Poderá haver quem ache, à esquerda, que este discurso hoje lhes volta a fazer jeito. São eles quem brinca com o fogo. Ao favorecer um discurso moral sobre a dívida, estão a semear a lançar as sementes de que a direita se virá alimentar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A realidade em tempos financeiros


Qualquer pessoa sensata sabe que os EUA estão enviesados a favor dos ricos e poderosos. Um estudo científico particularmente iluminador (...) quantifica este problema (...) Mostra que as mudanças de opinião entre os 1% mais ricos da população tornam a mudança política muito mais provável (...) Trump não foi a causa, mas antes um sintoma de um pêndulo que oscilou demasiado para a concentração de capital e para a corrupção da política e dos negócios. Tivemos décadas de mudanças legislativas, da política fiscal às regras de governo das empresas, que favoreceram o capital em detrimento do trabalho (...) Isto fez com que a economia política dos EUA se pareça hoje perigosamente com um oligopólio. Olhem para a forma como a Uber, Instacart, Lyft e outros grupos digitais triunfaram em relação à legislação laboral californiana, gastando 200 milhões de dólares para ganhar o referendo que isenta os trabalhadores destas empresas de benefícios sociais (...) Como Karl Marx observou, é só sob ameaça das massas que os donos dos meios de produção reconhecem os seus interesses comuns. A grandes empresas norte-americanas obtiveram o que queriam de Trump, ou seja, cortes de impostos e desregulação. Sabem que hoje já não há mais nada que possam obter dele.
 

Rana Foroohar, editora do Financial Times (minha tradução) 

De Joe Biden, a avaliar pelo seu percurso passado e pelas suas presentes nomeações de lobistas empresariais, temo bem que o grande capital possa continuar a obter o essencial, incluindo no plano internacional. Segundo uma sondagem, dois terços dos norte-americanos são a favor da travagem pelo senado de um tipo de nomeação que diz tudo sobre a conversão do capital em poder político. 

Entretanto, imaginem um jornal português, do Público ao Expresso, com considerações destas, mesmo que ocasionais, por parte dos seus editorialistas. A verdade é que a realidade tem hoje um enviesamento mais marxista. Isto salta por vezes à vista no jornal de referência da segura burguesia do centro, mesmo que as formas mais violentas desta realidade se manifestem tantas vezes nas periferias e semiperiferias. Aí, os jornais dos grupos dominantes e dirigentes, mais inseguros, têm de fazer um esforço adicional para tudo ofuscar.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Hasta siempre

Por jogadas destas, em tantos campos. Morreu um herói da infância memorável: México 86. 

Hasta siempre, Maradona.


Um pedido e uma lição simples


Por favor, parem de publicar notícias sobre as taxas de juro da dívida pública nacional, cuja taxa a dez anos se aproxima de zero e isto no quadro de uma dívida recorde, tendo por rubrica os chamados mercados, só aparentemente apolíticos: trata-se de um preço directa e inevitavelmente político. É em última, ou em alguns casos em primeira, instância determinado pelo banco central, qualquer que seja a sua escala. E isto é assim mesmo que a arquitectura do euro conspire sempre, de forma aliás cada vez mais difícil de disfarçar, para manter a ficção mercantil. Há razões políticas que só a razão de classe conhece.

A lição também é simples: endividamento na moeda emitida pelo banco central coloca os seus termos nas mãos do banco central, por acção ou omissão. Nós estamos nas mãos do BCE. Eu quero estar nas mãos do Ministério das Finanças a mandar no Banco de Portugal, banco emissor, ou seja, nas mãos da democracia. Tudo que nos afasta disto, coloca-nos perante um problema de política anti-democrática, como se viu na Grécia do oxi. Foi um momento histórico marcante, mas que tantos gostariam que se esquecesse, por tantas e tão contrastantes razões.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Do equilíbrio difícil entre a saúde e a economia


«É extraordinariamente difícil conseguir um equilíbrio entre medidas restritivas que travem o crescimento da infecção por SARS-CoV-2 e manter a economia a funcionar, mas ganhar esse desafio é fundamental. Para todos os que dizem que primeiro está a saúde e depois a economia, enquanto médico, venho lembrar que o empobrecimento também mata. O impacte avassalador desta pandemia na economia está à vista de todos e na pele de muitos. Este impacte vai-se agravar quando terminarem os apoios do Estado. (...) As determinantes sociais, como a educação, emprego, rendimentos, cultura, coesão social, e os comportamentos de risco, contribuem em mais de 50% para a saúde das pessoas, enquanto os cuidados de saúde são responsáveis por cerca de 10%. (...) É fundamental travar a pandemia mas também o empobrecimento e fazer com que desta pandemia resulte uma sociedade mais justa e mais comprometida com a defesa do ambiente. Só assim podemos prevenir novas pandemias, manter a coesão social e tornar o direito à saúde mais equitativo.».

Luís Campos, O empobrecimento também mata (a ler na íntegra).

Honoris causa


Em 2013, fiz o seguinte reparo, pensando no seu responsável, João Duque, que é sempre preciso dar nomes às coisas: 

O que têm em comum Ricardo Salgado, António Mexia e Eduardo Catroga? Para além de serem muito bem pagos, são também Doutores Honoris Causa pelo ISEG-UTL. O primeiro desde ontem, o segundo desde a semana passada e o terceiro desde o ano passado. O que é que um plutocrata e dois videirinhos têm em comum com os verdadeiros Doutores Honoris Causa da distinta história do ISEG nesta e noutras áreas? Não têm nada em comum. 

Em 2020, Ricardo Salgado está entregue à justiça. Catroga e Mexia andam por aí, cheios de honras de páginas de jornal. 

Catroga, para lá da sua agenda telefónica, que sublinha a relação prática entre redes e rentismo, deu um notável contributo para o conhecimento, trazendo para o debate o conceito de “pentelhos”, para já não falar no uso de telemóveis para tirar fotos de negociações orçamentais, o que deu todo um campo visual de aplicações para a política orçamental. 

Agora volta à carga, com a mesma sofisticação e honra de sempre, com o conceito de “vírus ideológico”, todo um programa biopolítico: o BE e o PCP encarnariam tal funesto fenómeno nestes tempos pandémicos. São estes partidos e, imagino, um SNS aprovado apenas à esquerda em 1979. 

Devemos ficar contentes, mas também estar vigilantes. Por um lado, alguma coisa se anda a passar no campo político-ideológico que preocupa esta gente. Por outro lado, Catroga encarna toda uma relação meios-fins problemática. Hoje são metáforas, mas amanhã não sabemos. 

Tudo depende sempre das lutas. Estas são a única coisa que se pode mesmo prever.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Para quê e para quem?


As posições de Ricardo Reis já foram bem denunciadas por Ricardo Paes Mamede: ideólogos infernais são os outros. Deixo uma achega dos nossos arquivos de 2008: 

O Expresso, que escolheu entrevistar apenas economistas de direita, dá também a palavra a Ricardo Reis, um jovem e distinto macroeconomista neoliberal da Universidade de Columbia [agora está na LSE e estamos todos menos jovens]. Em Portugal ficou conhecido por defender o fim do IRS e por, em Agosto de 2007, ter afirmado com enorme sensatez [ao já extinto Diário Económico]: «Num mês não se falará nesta crise do crédito». Ricardo Reis diz agora que o plano de Paulson original [de socialização dos prejuízos da banca norte-americana no final da presidência Bush] era «anticapitalista». Enfim, uma confusão. É o que dá ter o Capitalismo e Liberdade de Friedman como livro favorito.

Em 2020, digo o seguinte: um economista ter tal panfleto neoliberal como livro preferido até que faz lembrar um biólogo que tenha o criacionismo para totós como livro preferido. Espero bem que tenha mudado de opinião nestes anos. É que do monetarismo à liberdade irrestrita de capitais, as principais ideias de Friedman nunca resistiram bem à prova da experiência, como até economistas do FMI ou do Banco de Inglaterra reconhecem. E nem me obriguem a falar da famosa metodologia, do as if, de Friedman, que deve embaraçar quem tenha lido um livro ou bem mais de filosofia da ciência e que, no entanto, continua a ser papagueada por aí. 

Esta economia política para quê? E para quem? 

Intrigas institucionais

O problema não é de saúde pública. 

Tão-pouco se trata de uma tentativa política de ilegalização do congresso do PCP, iniciativa que traz consigo aquelas tristes ressonâncias históricas do regime fascista de ilegalizar o PCP e os movimentos sociais por si patrocinados ou apoiados. 

A tentativa é bem mais curta. É a de usar aqueles anti-corpos salazaristas aos partidos políticos agora tão em voga (sobre isso ler o post de Porfírio da Silva, deputado do PS) para criar tensão entre o Governo e os seus parceiros parlamentares. E nisso de intrigas, Marcelo Rebelo de Sousa tem décadas de treino.  

As hostilidades começaram, de facto, por si. Numa declaração pública, o presidente de "todos os portugueses" e juramentado defensor da Constituição, achou por bem dizer o seguinte

“É verdade que a lei prevê expressamente que as actividades políticas e sindicais não podem ser atingidas pelo estado de emergência. Está lá um artigo. Mas também é verdade que a percepção (já falei nisso muitas vezes) é que aquilo que é determinado para uns é também determinado para todos”. 

Esta estranha posição de um presidente que gosta de ir além dos poderes que a Constituição lhe confere, teve óbvia repercussão na comunicação social. E teve-a igualmente no principal jornal diário - Público. A sua ex-editora da secção Política, Leonete Botelho - que por acaso é presidente da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas - tem, ultimamente, colado os seus escritos ao discurso do presidente da República. Poderia mostrar-se inúmeros casos, mas para já fica apenas este já abordado neste blogue. 

Recorde-se que Leonete Botelho era a editora de Política que recebeu a chamada telefónica de Miguel Relvas, então ministro de Passos Coelho, em que este, aborrecido com as demasiadas perguntas da jornalista da mesma secção Maria José Oliveira sobre as secretas, a ameaçou dizendo que, se ela continuasse, divulgaria aspectos da sua vida privada. A jornalista soube da ameaça pela editora (a qual não a considerou relevante) e denunciou o caso ao Conselho de Redacção do jornal. Mas a Direcção Editorial do jornal dividiu-se sobre o que fazer: proteger a jornalista e denunciar o ministro; ou proteger uma fonte da editora que era... Miguel Relvas. Optou pela segunda opção e a jornalista demitiu-se do jornal. O caso, porém, descontrolou-se quando se tornou pública a acta da reunião do Conselho de Redacção em que o caso fora abordado. Miguel Relvas entrou num turbilhão político e mediático que - juntamente com outros casos - levaria à sua demissão. O jornal acabaria por ir a reboque do turbilhão e... publicou aqueles aspectos que o ministro ameaçara denunciar! A Entidade Reguladora para a Comunicação Social - nomeada pela maioria PSD/CDS - fez um parecer em que "não deu como provado" que "o ministro tenha ameaçado divulgar na internet um dado da vida privada da jornalista", isto apesar de ter sido a própria editora a dizê-lo à jornalista... E que, por isso, "não se verificou a existência de um condicionamento da liberdade de imprensa"!

Agora, volte-se ao caso "Congresso PCP". A mesma jornalista Leonete Botelho faz uma peça desequilibrada em que respalda uma iniciativa política do PSD - através de Paulo Mota Pinto - com a audição de um outro constitucionalista que corrobora a mesma tese. O outro constitucionalista é José de Melo Alexandrino, professor da Faculdade Direito de Lisboa.

Sobre a Faculdade de Direito, talvez conviesse ler primeiro uns posts que António Garcia Pereira escreveu (aqui e aqui). Depois, saber que Melo Alexandrino foi autor de um livro com Marcelo Rebelo de Sousa. O jurista tem criticado o Governo, nomeadamente a ministra da Saúde ou a retirada de medicamentos (novamente um artigo de Leonete Botelho), foi autor de um parecer crítico ao apoio público à comunicação social para a Entidade para a Comunicação Social e voltou a apoiar recentemente a decisão de Marcelo de colocar os confinamentos obrigatórios no âmbito da restrição do direito de liberdade (em mais um artigo de Leonete Botelho). 

Mas sobre a biografia do professor citado pelo Público convirá atentar num pormenor: foi autor de uma edição dos escritos completos de Rolão Preto, uma das figuras controversas do fascismo português. 

Rolão Preto foi um dos grandes fundadores do Integralismo Lusitano e do Movimento Nacional Sindicalista, inspirado no fascismo italiano, tendo - segundo Fernando Rosas - "a sua actividade de 1918 a 1934, data da ilegalização do nacional-sindicalismo, dominada pela tentativa de subtrair a classe operária portuguesa ao socialismo, anarco-sindicalismo e, mais tarde, ao comunismo". Apoiante do golpe 28 de Maio de 1926 que derrubou o parlamentarismo, Rolão Preto associou-se ao movimento fascista e criou um grupo milicial de apoio ao golpe, com fim de implantar uma Ditadura. Depois, chegou a intentar diversos golpes contra Salazar até o seu movimento ser ilegalizado, passando à oposição ao regime, tendo sido apoiante da candidatura de Norton de Matos, Quintão Meireles e Humberto Delgado. Depois do 25 de Abril, foi dirigente do PPM. 

A liberdade intelectual é uma coisa linda, já os ídolos escolhidos são mais discutíveis. Tal como são bastante discutíveis os critérios editoriais da jornalista do Público e presidente da Comissão da Carteita Profisional dos Jornalistas. Mas é destas malhas que a intriga de Marcelo se tece.

domingo, 22 de novembro de 2020

Perigoso

Num editorial de apologia a Marcelo Rebelo de Sousa, o candidato da CUF e congéneres, o proto-qualquer coisa Manuel Carvalho fez ontem o elogio à suposta coragem da moderação, referindo, vejam bem o topete, David Justino, essa referência. 

O vice-presidente do PSD é precisamente um dos responsáveis políticos pela convergência deste partido com a extrema-direita. Assim se confirma, uma vez mais, que o extremo-centro, autodenominado de liberal, é perigoso até dizer chega.

Política


O Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra tem vindo a realizar um Ciclo de Encontros: “Pensar a Pandemia, a Vida e o Cuidado”. “Política” é o tema em torno do qual vai girar a discussão de amanhã, dia 23. Viriato Soromenho-Marques será um dos oradores. Eu serei o outro. O encontro tem início marcado pelas 17h, no Teatro Paulo Quintela (3.º piso da FLUC), podendo ser assistido também de forma remota (https://videoconf-colibri.zoom.us/j/84832328442). 

Falarei naturalmente de política, economia, política económica e economia política, concentrando-me na forma como o neoliberalismo desvitalizou a acção colectiva popular através de uma certa forma de economia e como a política democrática tem de ser capaz reimaginar institucionalmente a economia, começando pelo que mais conta - terra, moeda e trabalho - na escala que ainda conta mais, a nacional.

sábado, 21 de novembro de 2020

Remake

Em Agosto de 1985, já em campanha eleitoral depois de ter rompido com o governo de bloco central (atirando para o PS as culpas do programa do FMI), Cavaco Silva discursa no Pontal: 

“Defendemos a iniciativa privada como motor do crescimento económico do país". É preciso "acabar com o Estado desperdício que paga salários a quem não trabalha, subsídios a empresas que não produzem, que gasta dinheiro com serviços sem utilidade e cobra impostos excessivos sobre os trabalhadores e operários para criar riqueza (...). Passados onze anos sobre a revolução de Abril, depois de muitos erros cometidos, é preciso governar de forma a que o Povo acredite nas virtualidades do regime democrático”. 

Dois meses antes, no congresso da Figueiras da Foz depois de ter ganho a presidência do PSD, Cavaco Silva tivera outra citação muito venturosa:

"Parece-me que já é tempo de dignificarmos a vida política neste país, onde o povo, passadas as justificadas esperanças dos primeiros tempos, olha à sua volta desiludido e se interroga: mas afinal que democracia é esta onde vemos imperar a corrupção, o compadrio, a injustiça social, onde os políticos parecem não saber discutir as suas divergências sem se insultarem?

E mais:

Direita-Esquerda são palavras para políticos velhos, sem qualquer significado na segunda parte da década de 80 e quando nos aproximamos do final do século

Aqueles que estiverem no poder nos últimos anos e não resolveram os problemas fundamentais do país, não têm perdão

E depois os insultos: 

O PSD é um partido  de rosto sem véu, ao contrário do PS que é uma miscelânia de esquerda laboral, nova esquerda, velha esquerda e monárquicos. Não é um partido político, é uma sopa de verduras.

Na verdade, a direita é a direita. Reformata-se sempre que direita cai. Nessa altura, Cavaco Silva era o candidato de Marcelo Rebelo de Sousa, José Miguel Júdice, Pedro Santana Lopes, entre outros.

Ideológicos são os outros

Escreve Ricardo Reis no Expresso: "O grande perigo vem dos ideólogos que querem aproveitar qualquer crise para mudarem permanentemente a sociedade e a economia na direção das suas utopias pessoais." 

Concordo. Este foi um dos motivos pelos quais fui tão crítico do modo como a UE e o governo PSD/CDS quiseram usar a desculpa da última crise para proceder a transformações radicais - nas leis do trabalho, nos serviços públicos, nas privatizações, no arrendamento, na protecção social, na fiscalidade - ao sabor da suas utopias liberais, para as quais não estavam mandatados. 

A minha posição sobre isto não mudou. Outros há para quem a legitimidade democrática é preocupação que surge quando o vento não sopra de feição. Para algumas mentes, já sabemos, ideológicos são os outros. O que eles defendem é só bom senso. As if.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Comissão Europeia: gastar pouco é boa prática... e mau indício

Num relatório publicado ontem no âmbito do Semestre Europeu, a Comissão Europeia elogiou o governo português por ser um dos mais contidos na resposta à crise. Numa análise dos estímulos orçamentais dos países para 2021 descontando as medidas de emergência (as despesas que estão diretamente relacionadas com o combate à pandemia - como a aquisição de material hospitalar - e a manutenção dos rendimentos - como o lay-off simplificado), a Comissão conclui que Portugal é um dos três países menos expansionistas, juntamente com a Bélgica e a Finlândia.

Já se percebera que o OE2021 está longe de ser um orçamento verdadeiramente expansionista. Por isso mesmo, os responsáveis da Comissão aplaudem a contenção orçamental do governo, já que dizem que é preciso limitar aquilo que o Estado gasta a pensar na dívida pública, que já é elevada, e na sustentabilidade das contas públicas a médio prazo. Mas, precisamente no mesmo relatório, reconhecem que esta estratégia tem como principal risco prolongar a crise e atrasar a recuperação da economia.

A conclusão não é propriamente surpreendente: se há coisa que a experiência demonstra é que a estratégia de consolidação orçamental (leia-se, austeridade) durante uma recessão apenas agrava os seus efeitos. Num contexto de enorme incerteza, em que as famílias perdem rendimentos e reduzem o consumo e em que os investidores recuam nas decisões de investimento, o Estado é o único agente capaz de contrariar o efeito recessivo através de um reforço da despesa e investimento públicos.

Sobre Portugal, a Comissão reconhece, aliás, que o principal entrave à recuperação no país é... o baixo nível de investimento. Percebe-se que é difícil promover a retoma da atividade económica sem recuperar o investimento público. Na verdade, a restrição do investimento e dos apoios públicos terá efeitos negativos na própria sustentabilidade das finanças públicas a médio prazo, pelo avolumar de falências, desemprego e perda de rendimentos. As recomendações contraditórias da Comissão são um sinal preocupante: há quem queira repetir o caminho seguido após a última crise, num momento em que a única opção sensata é evitá-lo.

Para ajudar a reorganizar um país vulnerável

Macroeconomia e organização económica, políticas públicas, trabalho, emprego e produção, territórios urbanos, ambiente, famílias, interdependências sociais e desigualdades. Estas podiam ser as palavras-chave deste livro para com elas estudarmos vulnerabilidades a que não podemos deixar de dar atenção. Mas interessamo-nos também pelas alternativas. E elas ficam aqui propostas em todos os domínios. A incerteza radical que nos rodeia é o convite mais forte para que discutamos e olhemos para o essencial, sabendo que não pode ser nas velhas racionalidades nem nas velhas restrições que encontramos os termos da discussão. É a vida que se nos impõe como maior valor. Tanto as vidas individuais como a vida que tem de orientar a nossa reorganização coletiva, na economia, na sociedade, no espaço público e político.

Da sinopse de um livro colectivo, coordenado por José Reis e que, ao longo de quinze capítulos, procura formular diagnósticos e alternativas que ajudem a reorganizar este país vulnerável, da desfinanceirização a um pacto ecológico.
 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Socialismo ou o quê?


No seguimento da última nota - barbárie ou o quê? -, aproveito para deixar por aqui uma das palavras para lá da pandemia: socialismo. Soberania e desglobalizar são palavras indissociáveis, como deve ser claro hoje para todos.

Nas últimas três décadas, houve uma erosão dos freios e contrapesos socialistas ao capitalismo, quer no sistema de relações internacionais, quer nos sistemas nacionais de relações sociais. Os capitalistas têm ganho todas as lutas de classes. O preço destas vitórias é alto: capitalismos economicamente financeirizados, socialmente oligárquicos, ambientalmente insustentáveis e politicamente esvaziadores da democracia. 

A crise pandémica, no entanto, tornou clara a realidade de que a sociedade é mais do que um somatório de indivíduos imersos em mercados. E, ao fazê-lo, mostrou a importância das lutas defensivas pela sobrevivência institucional, ainda que demasiado circunscrita, de um princípio socialista: de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades. Afinal de contas, também a saúde de cada um é condição para a saúde de todos. Os Estados menos desiguais, com maior confiança social, com serviços nacionais de saúde mais robustos, responderam melhor à pandemia de COVID-19. 

 É então necessário assegurar a vitalidade e a expansão do socialismo, ao nível dos sistemas de provisão, onde tudo se decide, incluindo nos meios que lhe subjazem, nos quais avulta a planificação democrática da trajetória económica, hoje decisiva para enfrentar o maior fracasso da história do capitalismo: as alterações climáticas. 

 O socialismo é o nome do processo de democratização das economias, que permite a sua subordinação às prioridades dos Estados – comunidades políticas que devem ter condições materiais para garantir a todos os seus membros uma efetiva igualdade no desenvolvimento das suas capacidades, incluindo as de participação na definição dos amplos assuntos que a todos dizem respeito. O socialismo baseia-se numa hipótese simultaneamente realista e esperançosa: a de que as pessoas fazem o melhor de que são capazes nas circunstâncias que são as suas, sendo necessário desenvolver as capacidades de forma igualitária e humanizar as circunstâncias. 

Passível de múltiplas declinações institucionais, esta hipótese geral pressupõe, no mínimo, o controlo soberano dos elementos centrais de uma economia, incluindo da moeda, relação decisiva para que uma economia monetária de produção seja capaz de garantir pleno emprego. Sendo necessária, a propriedade pública dos setores estratégicos não basta. É preciso estimular o controlo, por parte dos trabalhadores, das empresas, bem como manter alguns mecanismos de mercado, criando incentivos e assinalando preferências, sem que tal signifique desigualdades ou compulsões. 

A socialização dos bens e serviços indispensáveis, bem como o pleno emprego, num quadro de gestão da procura que não dispensaria nem controle de capitais, nem uma nacional negociação coletiva da política de rendimentos compatível com o equilíbrio externo, garantiriam uma real liberdade para todos e a confiança para prosseguir a experimentação social. 

Se isto pressupõe economias menos globalizadas, é preciso insistir nos fins, ou seja, garantir a realização da promessa revolucionária para lá do capitalismo: liberdade, igualdade e fraternidade.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

Do sentido das proporções

«A grande calamidade foi precedida por uma época na qual se perdeu todo o sentido das proporções e se banalizou o discurso de que os direitos sociais é que eram o grande problema do país porque estavam a ser implementados» (Rui Tavares)
No Público de ontem Rui Tavares escreve um texto essencial para os dias que correm. Nele se conta «uma história exemplar sobre quando se perde o sentido das proporções», recomendando-se vivamente a sua leitura (transcrição na íntegra no final do post). É claro que é um texto muito útil para enquadrar os oportunismos calculistas e as equivalências absurdas com que muitos têm procurado disfarçar, e relativizar, a gravidade do Acordo entre o PSD e o Chega, a propósito dos Açores. Mas é também um texto sobre a importância da História e da memória, permitindo perceber que as conquistas sociais (como o horário das 40 horas e o direito a férias) não caíram do céu.

Uma história sobre a perda do sentido das proporções
Rui Tavares (Público, 16 novembro 2020)

Quando os nazis invadiram a França, um amigo deu um conselho ao ex-primeiro-ministro Léon Blum: fuja e exile-se. “Eles atacarão os socialistas, eles degradarão os judeus, e você é socialista, é judeu e, mais que isso: você é você.”
Quem era Léon Blum? O primeiro chefe de Governo socialista de França, líder da Frente Popular, coligação de esquerda que governou aquele país entre 1936 e 1938, hoje conhecida por ter limitado a semana de trabalho às 40 horas semanais e garantido aos trabalhadores o direito a 15 dias de férias pagas, sou seja, “dar um pouco de bem-estar e de tranquilidade àqueles que através do seu trabalho criam a verdadeira riqueza”, como disse no seu discurso de tomada de posse.

Barbárie ou o quê?


Hoje ficámos a saber que 1% da população mundial, a mais rica, causa metade das emissões de CO2 da aviação. Razão tinha Chico Mendes, sindicalista-ambientalista brasileiro, assassinado em 1988, quando disse que “ambientalismo sem luta de classes é jardinagem”.

Entretanto, o Financial Times informa-nos que, para lá de andarem cada vez mais em aviões próprios ou alugados, os super-ricos estão a pagar cada vez mais por protecção privada, incluindo bunkers e toda uma gama de serviços, face às catástrofes ambientais e de saúde presentes e futuras causadas pelo sistema que controlam. Na Comporta, por exemplo, seguem certamente esta tendência internacional.

Se depender deles, a barbárie ganha sempre.

O pluralismo mete-lhes medo


O espaço de comentário Global simboliza o estado em que está a política internacional em Portugal, sem esquecer, claro, que esta última começa e acaba na política nacional. Paulo Portas, não o esqueçamos também, é a encarnação dos negócios mesmo estrangeiros e continuará a ser lavado na máquina da TVI, em horário nobre, até estar presidenciável.

Na área do debate sobre política internacional, o espaço admissível neste momento vai mesmo do extremo-centro dito liberal de Bernardo Pires de Lima à extrema-direita de Jaime Nogueira Pinto ou de Nuno Rogeiro, passando pelo conservadorismo de Miguel Monjardino e quejandos. O Grupo Impresa é tão mau ou pior do que a TVI. Na RTP, a situação não é muito melhor.

A falta de pluralismo no debate público nesta área consegue ser então pior do que na economia, sem esquecer o malfadado centralismo lisboeta encarnado nesta área pelo dominador IPRI. É como se não houvesse país, nem esquerda, nem mais nada.

Não há qualquer espaço, por exemplo, para posições soberanistas de recorte anti-imperialista, para a valorização da multipolaridade, para os que se atrevem a pensar para lá do eixo Frankfurt-Bruxelas-Washington, para lá da lógica do bom aluno de mestres cada vez mais medíocres, para lembrar a saudosa argúcia de Medeiros Ferreira. Não há espaço para os que perguntam: quem é o interesse nacional?

E, no entanto, de José Goulão a José Manuel Pureza, passando por Sandra Monteiro, há tanta gente profundamente conhecedora e com visões alternativas que enriqueceriam um debate assim verdadeiro.

E, já agora, porque será que a linha do Le Monde diplomatique - edição portuguesa não tem direito a tomar a palavra para centenas de milhares ou mesmo para milhões? O pluralismo genuíno mete-lhes medo é o que é. E o internacionalismo genuíno, o que se sente bem mais confiante e alegre cá dentro sempre que um povo volta a avançar lá fora, como aconteceu na Bolívia ou no Chile, também não os deixa sossegados. A política internacional começa e acaba em casa, realmente.

sábado, 14 de novembro de 2020

Síndrome do "bom aluno"


O Governo estava tão aflito com a economia e as contas públicas, que, talvez de forma sub-consciente, não levou a sério a segunda vaga da pandemia. Mas nisso não estava só. Com excepção da China, onde o Estado manda e tem estratégia (em ditadura), e de uns poucos países da Ásia em que o capitalismo se desenvolveu a partir do poder estratégico do Estado (os célebres Tigres), no resto do mundo o regime neoliberal pôs a economia acima do bem-comum. Com essa escolha, a economia não só matou as pessoas (e produziu graves sequelas que começam a ser identificadas nos sobreviventes), como também foi, ela própria, violentamente atingida. Ontem, com a manifestação que ocorreu no centro do Porto, o Governo talvez tenha começado a perceber que o seu orçamento suplementar para o corrente ano, e o orçamento que apresentou para 2021, foram documentos gritantemente irresponsáveis. Foram feitos sem pensar numa segunda vaga.

Toda aquela conversa do fim dos apoios a que chamaram "layoff simplificado", e sua substituição por um (mais barato) apoio à retoma progressiva da actividade económica, pressupunha a convicção de que iríamos, progressivamente, regressar a uma vida quasi-normal, próxima do que era a vida antes da pandemia. Só precisávamos de ter algum cuidado.

Os cuidados, sempre recomendados nas conferências de imprensa da DGS, eram absolutamente neutralizados no dia seguinte pela imagem do Presidente na praia, do Primeiro-Ministro numa qualquer actividade cultural, pelo insistente apelo à vinda dos turistas, etc. Todos sabemos que muita gente deixou de levar a sério o risco da transmissão e, para que isso tenha acontecido, durante o Verão as mais altas figuras do Estado deram um bom contributo. Portugal, e toda a Europa da livre circulação, está a pagar caro ter posto a economia (e, implicitamente, as contas públicas) acima da saúde. As medidas tomadas em Outubro, sobretudo o uso obrigatório de máscara no espaço público, e o encerramento depois das 22h de todos os espaços propiciadores de proximidade física, a proibição do convívio na via pública, etc. deveriam ter sido a norma desde Maio. Era demasiado restritivo? Como se costuma dizer, quem tudo quer, tudo perde.

O Governo agora diz que só esperava uma segunda vaga lá mais para o Inverno. Mas isso não é verdade; só esperava gastar pouco dinheiro com esta pandemia. No final, o desespero dos patrões falidos, dos trabalhadores independentes, dos precários sem rendimento para pagar as contas, mais a pressão da Caritas, IPSS e Juntas de Freguesia (assediadas por gente com fome e renda de casa por pagar), tudo isso mais a factura dos hospitais privados, vai obrigar o Governo a gastar muito mais do que se tivesse assumido a segunda vaga logo no termo do desconfinamento. Não pode dizer que não foi avisado pelos especialistas que falaram nas reuniões do Infarmed, entretanto canceladas.

Num país que não tem moeda própria mas que, ainda assim, graças à intervenção do BCE no mercado secundário, pode emitir dívida sem pagar juros, não foi por falta de dinheiro que a segunda vaga não foi devidamente planeada e travada. A razão para este desastre tem um nome: "contas certas" = "bom aluno em Bruxelas-Berlim-Frankfurt". Isso está escandalosamente à vista de todos no Orçamento do Estado. Evidentemente, com um banco central próprio e com um governo desvinculado da ideologia neoliberal, nunca se teria chegado a esta situação. Matéria para outro texto.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Aos leitores e amigos de um projeto jornalístico cooperativo

 

Neste Natal, oferecer uma assinatura de seis meses do Le Monde diplomatique – edição portuguesa, por apenas €18, é oferecer um presente que tem futuro. Duplamente: o presente renova-se a cada mês em casa do seu familiar ou amigo e estará a contribuir para o futuro deste projecto jornalístico em tempos muito desafiantes.

Mais detalhes no site do jornal.

Da banalização da extrema-direita


«Rui Rio anda exaltado a defender a sua aliança regional com um partido racista e xenófobo, totalmente exterior ao pacto civilizacional/constitucional que nos une, um partido que assume o objetivo de destruir esta república, tentando fazer uma simetria entre tamanha abjeção e os acordos PS e PCP/BE. Rio, assim, descansa a sua postura de Pilatos na pobreza da legitimidade formal: “o Chega é um partido, eles fizeram com os outros, logo eu também posso”. Os outros, o PCP e o BE, vistos assim numa simetria absurda, estão totalmente integrados na nossa democracia constitucional, não se lhes conhecendo um único projeto de lei ou passagem de programas de governo não conformes à lei fundamental, sendo risível apontar a qualquer um destes partidos, desde a estabilização da democracia, um único momento de rutura com a república.»

Isabel Moreira, O PSD e a pobreza da legitimidade formal

«Comparar o Chega ao Partido Comunista ou ao Bloco de Esquerda é pornográfico. (...) Um partido com simpatias pelo fascismo, um partido que faz pactos com movimentos populistas em toda a Europa, um partido que deseja o regresso da pena de morte, que quer vigiar muçulmanos e expulsar ciganos, que grita aos quatro ventos que deseja instaurar uma “quarta República” e um partido em que militantes chegaram a defender que as mulheres que abortam deveriam ficar sem ovários não pode ser comparável – nem por brincadeira – ao Partido Comunista. (...) O Partido Comunista é um partido com 100 anos. Ao longo da sua história viu largas centenas de militantes morrerem em nome de uma ideia de libertação do fascismo salazarista».

Luís Osório, Comparar o Chega ao Partido Comunista ou ao Bloco de Esquerda é pornográfico

«O seguinte excerto foi retirado da página do Partido Chega e foi escrito pelo seu vice-presidente: "Felizmente que o senso comum dos povos e a liberdade da rua ainda permitem resistir à Ditadura Mental dos Grandes Manipuladores que brotam de três fontes minúsculas referidas, perfeitamente identificadas e circunscritas, mas cujo poder sobre o pensamento social é descomunal: universidades, comunicação social e meios artísticos. Identificados esses alvos, a cada dia que passa beneficiaremos de condições crescentes para combatê-los sem contemplações em nome da sanidade mental coletiva dos povos". O ataque (ou desejo de) é dirigido à Educação, à Cultura e à Informação. É a estas ideias que o PSD se quer associar?»

João Henriques (facebook)

«Esta banalização da extrema-direita, além de indecente e absurda, ignora a história política e legislativa do PSD, que foi acordando e aprovando com o PCP múltiplos diplomas que hoje moldam a nossa sociedade. (...) A lista é extensa e abarca várias matérias, legislaturas e lideranças. (...) Muito deste quadro legislativo e constitucional teria a oposição do chega. Naturais, óbvias e saudáveis divergências ideológicas à parte, o PSD sabe que a grande maioria da população vê o PCP e o BE como partidos democratas - o que torna perigosa a equiparação com quem não o é. Dirigentes do PSD vêm agora condenar quem legislou com o PCP e BE, procurando desculpar a sua aliança com a extrema-direita. Vêm agora a correr para classificar partidos com quem fizeram a nossa democracia como algo ao mesmo nível de quem preferiria que ela nunca existisse».

David Crisóstomo (twitter)

«A inconsequência das propostas do Chega não revela moderação “exigida” por Rui Rio. Revela o objetivo deste acordo. Desde que o acordo é público, Ventura tem explicado que a direita nunca mais governará sem ele e Rio tem-se dedicado a explicar que do Chega não vem qualquer perigo. (...) Esperar que o Chega se modere é esperar que se mate. O Chega moderado é o CDS. O que o distingue é a identificação de determinados grupos étnico-sociais como responsáveis pelos problemas dos portugueses, o abandono do consenso constitucional em torno de direitos humanos essenciais e a banalização de um estilo de confronto politico que torna aceitável o que era interdito. Se abandonar isto será substituído por outro. A identidade do Chega, cujo programa é contraditório e instrumental, é não ser moderável».

Daniel Oliveira, Não há racistas moderados, caro Rui Rio

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Não se conseguiu melhor que isto, não é João Miguel Tavares?


Com a provocação leviana no Público de hoje, João Miguel Tavares não só tenta, com a sonsice habitual, esquivar-se ao que está em causa - o abrir de portas do PSD à extrema-direita (e não a legitimidade de o Chega defender as suas posições abjetas) - como relativiza, de forma repugnante, a gravidade da proposta de castração química de pedófilos (equiparando-a às 35 horas da função pública). Terá tentado e não conseguiu, evidentemente, encontrar melhor termo de comparação. E por isso não se surpreendam, como compreensivelmente admite Pedro Marques Lopes, que Tavares venha num próximo artigo a fazer equivalências entre «pena de morte e multas de trânsito».

Adenda: Já agora, a propósito do título do artigo de João Miguel Tavares, normalmente os muros, quando caem, caem só para um lado. É o caso.

É sempre tempo de apanhar mentirosos


Com um ar manifestamente irritado, veio Rui Rio proclamar que as condições do Chega não têm mal nenhum e sobretudo que não haveria qualquer acordo entre o Chega e o PSD nacional, tudo ficando confinado aos Açores. Acontece porém que mais depressa se apanha um mentiroso do que um.... Na verdade, quer a reforma da justiça quer a revisão constitucional quer ainda a aprovação de uma lei para diminuir os deputados nos Açores são tudo matérias da competência da AR que envolvem a direcção nacional do PSD. E não fique sem resposta a canhestra e insolente tentativa de Rui Rio de contra-atacar o PS pelos seus acordos com o PCP como se o PCP fosse uma espécie de Chega de esquerda. Rui Rio ainda vai muito a tempo de aprender que o PCP foi um força determinante na conquista da liberdade, é um partido fundador do regime democrático e construtor da Constituição da República que nela se revê e não quer descaracterizar nem subverter.


Aproveito a boleia de Vítor Dias para recomendar ao Nuno a leitura da Constituição, em particular a parte sobre organização económica. Mesmo que subvertida em aspectos essenciais, por comparação com a original que o partido do Nuno também votou, continua a prever a existência da propriedade pública de meios de produção. 

Digo isto por causa da lamentável entrevista do Nuno ao Público, onde ensaia mais uma absurda equivalência entre forças democráticas e forças anti-democráticas, comparando a prevista possibilidade de nacionalização com o ataque a direitos e liberdades fundamentais feito pelo Chega. O Chega com as suas complementares propostas socioeconómicas é instrumental para o Nuno, tal como o fascismo foi um expediente útil para tantos autodenominados liberais nos anos vinte. 

Nada que admire. Há toda uma hierarquia de valores. Afinal de contas, o Nuno é um influenciador, no cruzamento entre a advocacia de negócios e a política. O Nuno sabe quais as forças que podem ainda tentar bloquear, denunciar e reverter negócios sórdidos e a legislação que os acompanha, feita em grandes escritórios ou lá fora. 

Podem ler "sobre o Nuno" no site do seu grande escritório.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Portugal não será excepção


O acordo que o PSD-Açores fez com o Chega inaugura uma etapa crítica na vida política nacional. O PSD percebeu que só chegaria ao poder em aliança com o segundo partido da direita, e esse partido é o Chega. Para isso, seria preciso que ele se tornasse respeitável, e a oportunidade surgiu com estas eleições nos Açores. Aberto o precedente, agora é só esperar pela oportunidade no Continente, e ela virá na sequência da pandemia.

A ascensão de um partido da extrema-direita era previsível porque o PS apenas faz a gestão, é certo que com alguma sensibilidade social, do capitalismo selvagem instituído na UE, o capitalismo da austeridade inscrita nos tratados. A verdade é que gerir um sistema podre não trava a extrema-direita. Hoje há muitíssima gente farta de esperar por melhores dias, há muitas vidas abandonadas, não reconhecidas, invisíveis, há muitos desiludidos com as promessas não cumpridas da democracia, muitos eleitores dispostos a votar em alguém que dê expressão à sua raiva.

A gestão desta pandemia durante o Verão mostrou que a prioridade do governo era gastar o menos possível. Foi evidente que não quis investir no rastreio sistemático porque isso exigia recrutar muita gente para intervir em todo o país. As obras nos hospitais que está a fazer agora, em contra-relógio, não as fez no Verão porque preferiu pensar que talvez não fossem necessárias. Para recrutar rapidamente médicos e enfermeiros teria de pagar melhor e oferecer uma carreira; era demasiada despesa. Eu registei a frase de António Costa, em Abril: "despesas do Estado hoje são impostos amanhã".

Este centrismo do bom-aluno de Bruxelas, mesmo que atrapalhadamente corrigido nos próximos meses, vai fazer crescer o eleitorado do Chega. Esta crise vai deixar um lastro de ressentimento que um dia terá expressão eleitoral, e não vai ser à esquerda porque esta não foi capaz de entender que o sistema está podre e o seu discurso tinha de ser outro. Tinha de apresentar um projecto de transformação do sistema e ir para o terreno mobilizar os de baixo. Talvez já não saiba como isso se faz, mas ainda pode aprender com Alexandria Ocasio-Cortez.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Há quem, à direita, não prescinda do cordão sanitário


«Uma coisa é os movimentos nacional-populistas, xenófobos e autocráticos assumirem aquilo que são; outra, mais grave, é o espaço não socialista deixar-se confundir com políticos e políticas que menosprezam as regras democráticas, estigmatizam etnia ou credos, acicatam divisionismos, normalizam a linguagem insultuosa, agitam fantasmas históricos, degradam as instituições. A aceitação desta amálgama ideológica por parte das direitas democráticas constitui uma afronta à sua história e o prenúncio de um colapso moral. Trump não é Lincoln, T. Roosevelt ou Reagan. A “democracia iliberal” húngara não é aceitável num Partido Popular Europeu de tradição democrata-cristã. O neofranquismo não é herdeiro da direita espanhola da Transição e o pacto constitucional. O espaço do centro-direita e da direita portuguesa não é o do extremismo, seja esse extremismo convicto ou oportunista».

Do abaixo-assinado no Público de hoje, «A clareza que defendemos», com mais de cinquenta subscritores de direita e centro-direita a exigir, em nome da decência, um cordão sanitário face ao Chega. Na lista de nomes (onde não figuram, sem supresa, João Miguel Tavares ou José Manuel Fernandes, por exemplo), encontram-se, entre outros, Adolfo Mesquita Nunes, Alexandre Homem Cristo, Ana Rita Bessa, Francisco José Viegas, Francisco Mendes da Silva, João Taborda da Gama, Miguel Esteves Cardoso, Pedro Mexia, Raquel Vaz-Pinto e Vera Gouveia Barros. É bom saber que neste campo político há quem repudie, sem ambiguidades nem tibieza, a cedência oportunista do CDS e do PSD (aparentemente esquecido do significado das suas setas), a Ventura e ao Chega.

Até dizer chega


Ainda me lembro do que escreveste no Verão passado: João Miguel Tavares foi crítico da abertura revelada pelo PSD de Rui Rio para convergências com o Chega. E estamos no Outono: agora que a convergência com a extrema-direita aconteceu, Tavares, qual salta-pocinhas em versão sonsa, lança mão do abjecto truque ideológico neoliberal desde pelo menos O Caminho para a Servidão de 1944 e faz equivaler o antifascismo mais consequente para a nossa democracia aos herdeiros, em moldes adaptados às novas circunstâncias, desse feixe de práticas políticas antidemocráticas que deu pelo nome de fascismo. 

É um processo de normalização em curso que passa também pela televisão: em linha com o domínio das direitas no comentário de política internacional, uma área que consegue ser pior do que a economia, Jaime Nogueira Pinto, um dos ideólogos do Chega que vem de longe, do fascismo, passou a semana passada nos estúdios de vários canais, onde, por exemplo, comunista praticamente não comenta.  

Nunca se pode confiar na generalidade dos autodenominados liberais lusos. A concretização da sua ideologia enfraquece objectivamente a democracia, através, entre outros, do aumento das desigualdades económicas e da impotência política associada à europeização. Se no centro do sistema mundial, perante este padrão, muitos liberais podem chegar a abandonar o liberalismo económico para salvar e até aprofundar as liberdades democráticas, nas periferias e semiperiferias lançam mão de tudo para aprofundar o liberalismo económico, mesmo que seja à custa das liberdades para a maioria. 

Entretanto, a aceitação do Chega pelo resto da direita inscreve-se num programa que está presente no primeiro e dispensável livro sobre este partido, que abre com uma citação de Jaime Nogueira Pinto. Tudo bem ligado. Aproveito para deixar por aqui o artigo que escrevi sobre essa apologia mal disfarçada da extrema-direita no Le Monde diplomatique – edição portuguesa de Setembro: 

Até dizer Chega

Adam Smith, uma das principais referências da economia política liberal, já nos havia alertado no século XVIII: quando os capitalistas de um mesmo ofício se reúnem para conversar, geralmente é para conspirar contra o público. No último século, capitalistas de diferentes ofícios, ou os seus representantes, reuniram-se frequentemente para conspirar contra as democracias. Em Portugal também. A 18 de Junho de 2020, numa quinta em Loures, como relata uma investigação do jornalista Miguel Carvalho na Visão, foi servido um belo repasto a «seletos convidados», que «pesam muitos milhões na economia nacional e até além-fronteiras»: reuniram-se para conspirar com o deputado do Chega André Ventura; a questão do financiamento deste partido não terá estado naturalmente ausente[1]. João Bravo foi o anfitrião. Este capitalista com negócios nas áreas da defesa, da segurança e dos incêndios, necessariamente entrelaçados com o Estado, afiançou: «desde 1974 que o País se afunda»[2].  

A investigação de Miguel Carvalho deu-nos assim a ver um momento de consolidação das mais importantes redes sociais deste partido, sem as quais a acção nas outras redes, também chamadas sociais, nunca teria a mesma eficácia, até por falta de recursos. Profundo conhecedor da extrema-direita portuguesa, ou não tivesse sido autor do livro de referência sobre o seu terrorismo a seguir a 1974, Carvalho já havia começado a investigar a galáxia reacionária de que é feito o Chega: de quadros fascistas à mobilização de sectores evangélicos em modo bolsonarista, passando pelos negócios mais ou menos sórdidos – da segurança ao imobiliário de luxo – de muitos dos seus dirigentes, sem esquecer as ligações internacionais ou o caldo cultural obscurantista, de onde o negacionismo climático não está ausente[3]. É aliás neste caldo que mergulha hoje toda uma economia política neoliberal ao serviço do aumento dos poderes discricionários indissociáveis do capital e do Estado securitário. 

Apologista até dizer chega 

Num livro recentemente publicado por Riccardo Marchi, investigações como a última acima referida, onde é feita a denúncia de milhares de perfis falsos nas redes sociais, são apodadas, sem mais, de «boatos» vindos de uma imprensa hostil[4]. O livro de Marchi, que pouco ou nada acrescenta de informativo ao que na imprensa se tem publicado sobre o Chega, é apresentado por António Costa Pinto, na badana, como um primeiro estudo «sério e desapaixonado». Na realidade, contudo, trata-se de uma apologia muito pouco séria por parte de alguém que até parece ter vontade de replicar em Portugal a ainda dissemelhante realidade política do seu país de origem, a Itália, cujo vínculo externo à União Económica e Monetária determinou, desde há décadas, um processo estrutural com algumas semelhanças com o português: neoliberalização acompanhada de estagnação económica e de múltiplas fracturas sociais[5]. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Sem princípios nem escrúpulos

1. Sem que o Chega tivesse evoluído para qualquer «posição mais moderada» - a condição de Rui Rio para poder haver «conversas» com a extrema-direita - o PSD decide cruzar a linha vermelha da decência e chega a acordo com Ventura, para assegurar a maioria nos Açores. E se é verdade que Passos Coelho já tinha tentado «testar Trump» em Loures, esperar-se-ia que Rio acabasse por não ceder no elementar, apesar dos sinais, mais recentes, de aproximação ao Chega e ao seu discurso (como sucedeu no caso de um bizarro manifesto).

2. Com a ânsia de regressar ao poder e sem um programa alternativo consistente, passível de ser sufragado em eleições (voltar à austeridade de Passos não resultaria e uma linha mais social-democrata perde na comparação com o PS), surge a tentação de abdicar de mínimos de salubridade democrática e envereda-se pelo oportunismo, sobretudo num contexto de fragmentação da direita, com os «novos» partidos (IL e Chega) a absorver uma parcela cada vez maior do eleitorado do PSD. Percebendo que sem vender a alma ao diabo não poderá, tão cedo, pensar em ser governo, Rio cedeu e mandou às malvas os princípios essenciais de um partido democrático.

3. Como se a opção em si não bastasse, pelo pesado significado que acarreta (muito para lá das concessões agora feitas à extrema-direita), as cedências concretas tornam tudo mais repugnante. Além do populismo antidemocrático da redução do número de deputados, Rio acordou com o Chega o corte dos apoios sociais nos Açores, dando assim cobertura à miserável converseta dos «malandros que não querem trabalhar» (que não sendo nova, como bem lembra aqui o João Ramos de Almeida, era feita sobretudo pelo CDS-PP), na região do país com os mais elevados níveis de pobreza e desemprego. Um aprendiz dissimulado de extrema-direita não faria melhor.


4. Vale a pena olhar para os números. Cerca de 13% da população residente nos Açores em 2019 encontrava-se em privação material severa, com a região a destacar-se claramente das restantes (a mais próxima é o Algarve, com 8%) e bem acima da média do país (5,6%), que representa cerca de 1/3 do valor dos Açores. São quase 32 mil pessoas em pobreza severa, das quais apenas 67% recebem RSI. E não se diga que o problema é «não quererem trabalhar», numa região que detém a mais elevada taxa de desemprego (7,9%), cerca de 1,4 pontos percentuais acima do valor nacional.


5. Que fará o partido dito social-democrata quando a pobreza aumentar na Região Autónoma dos Açores, em resultado dos cortes a que se comprometeu com o Chega? Avança para uma nova versão da «política social da sopa», mais onerosa para o Estado que os apoios diretos às famílias e sem qualquer potencial de inclusão social, ao contrário do que sucede com o RSI? Que fará o PSD quando o Chega, que tem a faca e o queijo na mão a partir de agora, lhe fizer exigências adicionais para viabilizar orçamentos? Ou será que Rio acredita que o Chega é de confiança e não fará mais exigências a partir daqui? Quem é que ficou no bolso de quem, afinal? E a que preço?