quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Diga lá, Senhora Merkel, o que entende por competitividade?

Parece que Angela Merkel afirmou hoje que a Zona Euro "não pode sobreviver de forma estável e a longo prazo", a não ser que reduza o fosso da competitividade entre os seus países membros. Digamos que já é um passo em frente face ao discurso da indisciplina orçamental e da preguiça dos povos do sul como origem de todos os males. Resta saber o que entende Merkel - e os vários tele-economistas portugueses que se apressam a repetir a ladainha - por competitividade.

O conceito, oriundo da gestão e tradicionalmente aplicado a análise das empresas, começou a ser utilizado de forma generalizada desde a década de 1980 na análise das economias nacionais. O problema é que um país não é uma empresa e o que faz sentido a um nível de análise pode não fazê-lo noutro. Num mercado concorrencial, uma empresa só cresce se for melhor que os concorrentes. Mas, em princípio, um país pode desenvolver-se e proporcionar melhores condições de vida às populações sem penalizar outros países por isso. O que é então a competitividade quando aplicada aos países?

Perante o uso e abuso da palavra, a OCDE tentou trazer alguma ordem à discussão propondo uma definição de competitividade de uma economia. Segundo esta organização, a competitividade seria "a capacidade de um país para produzir bens e serviços competitivos nos mercados internacionais, em condições de concorrência livre e justa, consolidando e expandindo o nível de rendimento real das populações".

A definição é apelativa, mas deixa muitas questões em aberto: como é que isto se mede? Interessa-nos olhar para o desempenho competitivo, ou para as condições que favorecem a competitividade? E de que depende a competitividade? Será que os factores que favorecem a "capacidade para produzir bens e serviços competitivos nos mercados internacionais" são sempre compatíveis com "a consolidação e expansão do nível de rendimento real das populações"? Será que o objectivo da competitividade no curto prazo é compatível com a competitividade no longo prazo? E em que condições a competitividade de um país pode aumentar sem pôr em causa a competitividade dos outros países?

Para ter melhor noção da ambiguidade do conceito, pense-se em dois exemplos. Primeiro: a recuperação da 'competitividade' das periferias é hoje vista como passando necessariamente pela redução dos salários reais; e, no entanto, a história do desenvolvimento económico mostra-nos que os países com melhor desempenho nos mercados internacionais são frequentemente aqueles cujos salários reais mais crescem (trata-se do famoso 'paradoxo de Kaldor'); será a redução dos salários, de facto, compatível com "a consolidação e expansão do nível de rendimento real das populações"? E, se não for, de que serve a um país ser bem sucedido no comércio externo? Segundo exemplo: o indicador hoje mais utilizado para medir o desempenho competitivo é o saldo da balança corrente; mas como pode um país manter saldos correntes positivos sem que outros países tenham saldos negativos?

Na verdade, pouco disto interessa a Merkel e às elites que governam a Alemanha. A sua "agenda da competitividade" é inequívoca e não requer muita clareza e coerência conceptuais: trata-se apenas de aproveitar a crise e o clima de chantagem para forçar a descida dos salários e a fragilização dos estados nos países periféricos da UE. Fica assim garantido o controlo político e financeiro por parte dos grandes interesses alemães de vastas zonas da periferia da Europa - cada vez mais especializada em actividades de mão-de-obra barata - ao mesmo tempo que a concorrência salarial dentro do mercado interno ajuda a manter na linha os próprios sindicatos alemães.

Enfim, se a sobrevivência do euro depende mesmo da redução do fosso de competitividade - entendida nos termos em que é definida pela OCDE - então não há que ter muitas esperanças.

Ainda e sempre a banca...

A Europa está há cinco anos a salvar a banca e não hesita em empenhar biliões de euros num sector que não ajuda ao crescimento económico, enquanto regateia ao tostão os empréstimos para países do euro.

Luís Rego

Vamos lá repetir alguns privilégios de quem comanda esta economia política predadora. BCE a facilitar financiamento. Governo a assumir encargos com pensões dos trabalhadores da banca, recebendo para isso contrapartidas pecuniárias que sabe serem insuficientes e usando metade, três mil milhões de euros, para aliviar o balanço dos bancos, comprando-lhes créditos. O Estado faz exigências rigorosas à banca, claro: emprestem às empresas produtivas, vá lá, não sejam assim...

Mais sal

As observações de Krugman sobre os efeitos perversos da austeridade em geral ou sobre o “retrocesso intelectual” de uma teoria económica dominante que não conhece a história da disciplina, nem valoriza o necessário pluralismo, são pertinentes e úteis. Para quem estudou um economista heterodoxo como Hyman Minsky (1919-1996), é interessante ver um economista como Krugman referi-lo como um dos “grandes economistas” a valorizar. Pudera: a hipótese da instabilidade financeira oferece uma explicação plausível para as crises. A macroeconomia e a política económica estariam noutro estado se a tradição que desenvolveu os aspectos mais radicais de Keynes, o chamado pós-keynesianismo, tivesse outro peso.

De resto, o início da entrevista de Krugman ao Negócios de ontem exprime bem as contradições de um economista norte-americano de “água salgada” na periferia à beira mar plantada, mas também as contradições de um momento nacional que é europeu – na prática, não é keynesiano quem quer, mas quem pode e quem pode é quem controla a moeda: “A minha previsão optimista é que, após quatro ou cinco anos de sofrimento, Portugal voltará ao rumo certo [fica bem para iniciar a entrevista]. Isto se tudo correr bem [reviravolta nas políticas europeias]. Caso contrário, acontecerá algo de muito terrível [todos sabemos o que acontecerá e já não parecerá tão terrível]. É uma situação terrível [o desemprego não pára de aumentar e a tal reviravolta não vai ocorrer]. Não há resposta simples, dada a conjuntura em que Portugal se encontra [é sobretudo a estrutura, já agora, até porque Krugman diz que o euro é o problema]. Não posso aconselhar a esquecerem a austeridade [vai tudo correr mal, embora Gaspar diga que não, ao mesmo tempo que apresenta previsões revistas...], mas por outro lado, não será decerto uma via rápida de regresso a uma economia decente [eufemismo para fechar: será a via rápida para uma economia indecente]”.

Nota: paradoxalmente, ou talvez não, é Minsky que dizia que “o acontecimento mais significativo desde a 2ª Guerra Mundial é algo que não aconteceu: uma depressão longa e profunda”. Uma parte da sua obra é uma tentative para encontrar explicações plausíveis para que a sua hipótese da instabilidade financeira tenha sido tão contida em certa fase do capitalismo. Para Minsky isto deveu-se fundamentalmente à existência de uma estrutura institucional, onde pontificaram, desde a década de cinquenta, o que o autor designa por “Big Bank” e “Big Government”. O resto é história…

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Pluralismo

O programa «Zona Euro», conduzido por Márcia Rodrigues e que ontem estreou na RTP1, constitui um exemplo raro de zelo jornalístico, em espaço televisivo, para com o pluralismo de opinião no debate político-económico.

Desde logo, porque estabelece um painel de convidados (António Vitorino, Adriano Moreira, Octávio Teixeira, Luís Campos e Cunha, Maria João Rodrigues, Adelino Maltez e Viriato Soromenho Marques) que não inclui apenas economistas e que procura, nesse âmbito disciplinar, assegurar a presença de distintas interpretações sobre as origens da crise e os modos de a ultrapassar.

Ao contrário, portanto, do padrão seguido pela generalidade dos programas congéneres, onde os omnipresentes Medinas, Duques, Camilos, Bessas, Cantigas e demais representantes de um pensamento económico caduco e irresponsável tecem, sem contraditório nem debate, as incessantes ladainhas da «austeridade redentora e inevitável» e os mantras moralistas do «andámos a viver acima das nossas possibilidades». Por mais que a realidade - na ausência de opositores em contexto de debate televisivo - se encarregue de os desmentir.

14 anos depois, sinto-me quase 'mainstream'

Citando a intervenção de Krugman, Pedro Guerreiro escreve hoje no Jornal de Negócios: "os economistas deviam ter estado preparados para a hipótese de uma crise deste género aparecer. Por não estarem preparados, deram respostas antagónicas, criando uma cacofonia que basicamente permitiu aos políticos entenderem que podiam fazer o que quisessem. (...) O que é curioso, diz, é que a resposta estava na história económica». E conclui o director do jornal: «Ponham lá os economistas com chapéu de burro no canto da sala, encerrem-nos nas masmorras ao pé dos políticos, façam-lhes maldades e vinganças - mas obriguem-nos a estudar a História!»

Ao ler isto, lembrei-me de um artigo que escrevi há 14 anos atrás, publicado na revista Vértice, com o título: "Economia dominante, uma ciência sem História" (disponível aqui, numa versão não editada).

Aí podia ler-se: «a corrente dominante na Economia continua a não conseguir (ou a não querer) introduzir a história concreta nas suas teorias e modelos, com consequências irreparáveis sobre as suas capacidades de explicação e de previsão».

Na altura, quando escrevia estas palavras, sentia-me ligeiramente excêntrico. Ao relê-las hoje sinto-me quase mainstream.

Banca...

O parlamento alemão aprovou ontem o novo empréstimo de 130 mil milhões de euros à Grécia, tendo como contrapartida uma austeridade destrutiva e um controlo neocolonial. Também ontem, o BCE reforçou o financiamento ilimitado aos bancos europeus, que pode atingir 470 mil milhões de euros desta vez, a taxas de juro residuais, com um prazo invulgarmente longo para este tipo de operações, aceitando colateral cada vez mais duvidoso e não fazendo quaisquer exigências sobre usos e práticas, claro. Esta assimetria diz tudo sobre o regime em que vivemos no euro: bancarrotocracia.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Krugman is again half-right...

Existem basicamente três narrativas sobre a crise do euro que circulam amplamente: a Republicana, a alemã e a verdade.

Paul Krugman

Krugman, “o Nobel contra a austeridade”, foi homenageado pelas três universidades públicas lisboetas. O problema, como Krugman assinala no poste de onde a citação foi tirada, é que a destruição do Estado social nada faz pela performance exportadora e a austeridade só melhora, temporariamente, digo eu, a situação na balança corrente na medida em que a recessão assim induzida diminui a procura por importações, quebrando os salários através do desemprego. Um processo deflacionário, a tal desvalorização interna, lento e destrutivo e, em última instância, como Krugman reconhece, ineficaz, ainda para mais tendo em conta que a deflação interage com a dívida, cujo fardo aumenta, o ingrediente fundamental da economia depressão, e que todo o ajustamento teria de ser feito, neste contexto europeu, pelos países periféricos dependentes. Isto para já não falar no que acontece quando todos prosseguem a mesma politica.

Se a Economia serve para alguma coisa é para evitar estes encadeamentos, estes exercícios de engenharia política votados ao fracasso, já que nenhuma economia realmente existente consegue efectuar o ajustamento que está a ser imposto às periferias. A única proposta decente de Krugman para evitar um triste destino tem a escala da moeda, claro, e passa pela acção do BCE, pelo impulso deliberado à procura puxada pela recuperação salarial nos países com superávites na balança corrente, alcançados em parte devido à custa da sua perversa compressão, no quadro de um centro menos obcecado com a inflação e de uma Zona Euro dotada de mecanismos de transferências.

Que Krugman possa ainda parecer de alguma forma heterodoxo diz mais sobre os tempos sombrios que ainda atravessamos, depois de décadas de hegemonia do fundamentalismo de mercado, do que sobre Krugman, um economista da chamada síntese neoclássica à Samuelson, a síntese que integrou algumas teses de Keynes, e que sobre Portugal se ficou, no início de 2011, por uma meia verdade, uma formulação equívoca sobre a evolução salarial, infelizmente repetida, e que até o Banco de Portugal não parece aceitar. Um dos riscos no meio disto é ver-se os salários apenas como um custo. De resto, os salários reais em Portugal estiveram, em média, alinhados com a produtividade, o mínimo num país com salários tão baixos, até a austeridade começar, sendo que a média engana num país tão desigual. O problema europeu nesta área foi que na Alemanha os salários reais diminuíram, ficando assim muito distantes da evolução, medíocre, da produtividade.

A política assente na quebra salarial na periferia, a tal desvalorização interna unilateral, requer perversas políticas “alemãs” e “republicanas”, transformando a periferia numa ruína, quando a existir ajustamento em matéria salarial, repito, este deve ser sempre um ajustamento em alta no centro depois de anos de perda de peso dos salários no rendimento nacional. É claro que neste euro, feito para comprimir salários e para destruir os Estados sociais, toda a recomendável coordenação progressista em matéria salarial ou outra, parece ser uma utopia.

Krugman e a economia austeritária


Como a Shyznogud ontem assinalou, é difícil perceber o que levou o semanário «Sol» a repisar uma interpretação enviesada das palavras de Krugman, em Maio de 2010, segundo a qual o nobel da Economia teria afirmado «que os salários dos portugueses têm de cair até 30 por cento face à Alemanha».

A este respeito, para além do último post do Alexandre Abreu, vale igualmente a pena recuperar um outro, do João Rodrigues, relativo às razões pelas quais Krugman considerou recentemente Portugal como a «história da periferia» mais difícil de explicar.

A cerimónia de atribuição do doutoramento honoris causa a Paul Krugman, promovida pela Universidade de Lisboa, pela Universidade Técnica de Lisboa e pela Universidade Nova de Lisboa, tem hoje lugar na Aula Magna, a partir das 17.00h, podendo ser aqui acompanhada em directo.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Parar enquanto é tempo


O gráfico representa as variações percentuais das receitas fiscais entre um mês e o mesmo mês do ano anterior (linha e escala da esquerda) e as variações percentuais do PIB entre um trimestre e o mesmo trimestre do ano anterior (circulo e escala da direita). Aí se pode ver que entre Maio de 2009 e Março de 2010 as receitas fiscais cresceram a par do PIB. Isso é o que é suposto acontecer em tempos normais. A partir daí, com o choque austeritário, o PIB começou a cair e as receitas fiscais continuaram a aumentar, primeiro muito, depois menos. Isto foi conseguido, como sabemos, à custa do aumento das taxas de imposto. Finalmente, ficamos a saber, com a divulgação da execução orçamental de Janeiro 2012 pela Direção Geral do Orçamento, que as receitas fiscais caíram abruptamente.

Este pode ser o sinal que faltava para confirmar a entrada de Portugal na espiral recessiva tipicamente grega: austeridade que aprofunda a recessão e reduz a receita fiscal mantendo o défice orçamental, ou obriga a novos e sucessivos aumentos de taxa de imposto ou cortes na despesa para o reduzir, gerando mais recessão. Janeiro foi um mês especial? Veremos em Fevereiro e depois em Março… Quanto mais tempo vamos deixar que façam experiências connosco?

Tiberius Julius Caesar Augustus, imperador romano entre os anos 14 e 37, resumiu a sua teoria das finanças públicas numa frase: “o dever de um bom pastor é tosquiar as suas ovelhas sem as esfolar”. Conhecia este ditado Dr. Vítor Gaspar?

Coisas práticas

Não há nada que seja mais prático do que uma boa teoria e na macroeconomia não acho que haja melhor do que o chamado pós-keynesianismo. Este artigo académico é um contributo para uma análise realista, que recusa moralismos, dos principais problemas da Zona Euro, na linha do que temos vindo a tentar popularizar há já algum tempo. Uma análise que não agrada aos grupos dominantes no centro europeu, a elites periféricas dependentes e ao capital financeiro que as controla, já que se centra nos desequilíbrios, entre centro e periferia, gerados por uma moeda que não serve para estruturas económicas tão heterogéneas e por políticas de competitividade desenhadas para transformar a União num jogo de soma nula ou negativa, transferindo todos os custos dos ajustamentos para o mundo do trabalho.

O papel da liberalização financeira, associado a esta desgraçada integração, assume também particular relevância. É o que se sabe: os mercados financeiros liberalizados, e ainda por cima sem enquadramento de nota na escala da moeda, são especialistas em gerar desequilíbrios e em destruir capital. Um padrão que os países do Sul global, que se aventuraram na liberalização financeira, conheceram e que as periferias europeias replicaram: afluxos de capitais, bolhas especulativas oleadas por um endividamento numa moeda que não se controla, sobreapreciação cambial, défices externos entranhados, crise, problemas de financiamento e programas de ajustamento impostos pelos credores.

Esta ineficiência, o cortejo de crises, desde que passámos de um bem-sucedido regime de “repressão financeira”, assente em controlos de capitais, do pós-guerra aos anos oitenta, para um ineficiente regime de “liberdade financeira”, justificam uma atenção redobrada aos controlos de capitais, que não só não foram totalmente abandonados como até têm sido recuperados na teoria e na prática de muitos governos por esse mundo fora. Este artigo oferece um “estado da arte” sobre o tema. Mais tarde ou mais cedo, vamos ter de reintroduzir, à escala nacional ou outra, dependendo do arranjo monetário então vigente, controlos que têm a vantagem de ser imensamente flexíveis, de permitir descriminar entre vários tipos de fluxos económicos, gerindo-os em função de uma estratégia de desenvolvimento que vê nos “mercados” um apêndice útil, porque subordinado, num menu institucional bem mais variado.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

O potencial das políticas de Gaspar

Recuperemos as políticas seguidas. Como se sabe, o chamado PIB potencial tem vindo a decrescer, devido ao colapso do investimento. E, pior do que isso, o PIB efectivo é ainda mais baixo do que o PIB potencial, o que reflecte uma subutilização da capacidade produtiva. Se a tudo isso juntarmos as recentes alterações na legislação laboral, facilitando os despedimentos, ficamos com o quadro completo: o desemprego vai aumentar ainda mais.

Mas o empobrecimento não acaba aqui. Sendo a legislação agora aprovada um facilitador de despedimentos, parece óbvio que muitas empresas vão aproveitar esta dádiva para substituir uns trabalhadores por outros com salários mais baixos. Os próprios subsídios, de resto, são também eles cada vez mais baixos e pagos durante menos tempo. Ou seja, este é um dos maiores ataques às classes trabalhadoras que alguma vez se desferiram em Portugal.

Daniel Amaral no Económico.

Monti, Cameron e companhia

A pergunta de José Manuel Fernandes no Público de hoje é pertinente: “Será que Seguro leu a carta de Cameron?” De facto, uma pessoa lê o Público de ontem e não acredita: António José Seguro concorda com a “carta do crescimento” enviada à Comissão por doze “líderes europeus”, lamentando que o governo não tenha sido nela incluído, talvez porque não fica bem ter um país numa crise tão profunda na foto. Porquê esta concordância? Por ser a favor do crescimento? Na realidade, esta carta não é favor do crescimento, mas sim a favor do aproveitamento da crise e das políticas de austeridade para intensificar aquilo que esta integração europeia, que há muito inscreveu nas suas regras o neoliberalismo dos Montis, agora estranhamente beatificados, sabe fazer: abrir mercados às grandes multinacionais a golpes de política europeia, liberalizar, alargar a lógica do mercado interno a cada vez mais sectores, incluindo sectores como a energia e outros serviços públicos, continuar a mercadorizar o trabalho. Isto para não falar na insistência em promover serviços financeiros integrados e “competitivos”, quando precisamos de os fragmentar e controlar de forma directa e pública, ou em favorecer a integração global sem barreiras, quando precisamos é de organizar a desglobalização, de ter modelos regionais centrados na recuperação da procura salarial e social. Enfim, a crise é aproveitada para recuperar o espírito de directivas à Bolkenstein que o preconceito ideológico dos jornalistas do Público Miguel Gaspar e Isabel Arriaga e Cunha acha que foram denodadamente combatidas por causa dos “mitos” do “canalizador polaco”. Na realidade, esta directiva punha em causa princípios simples – as regras laborais e sociais de um país aplicam-se a todos os que aí trabalham – e pretendia também pôr em causa os serviços públicos, favorecendo a concorrência mercantil, ou seja, o poder da grande empresa para se apropriar de sectores muito apetecíveis. Trata-se sempre de favorecer corridas para o fundo em matéria de direitos sociais e laborais, de comprimir os salários e de destruir os serviços públicos. Os efeitos depressivos das sucessivas vagas de reformas estruturais, geradas por esta integração europeia, estão à vista. Esta carta é mais do mesmo.

Nós e a globalização

O discurso do governo, e dos seus ideólogos, trata a globalização como uma força a que devemos adaptar-nos se queremos prosperar. Tendo em vista a competição global, reduzir os salários tornou-se o objectivo central da política económica. Desencadeando uma recessão brutal, facilitando e embaratecendo os despedimentos, reduzindo o tempo e o montante do subsídio de desemprego, cria-se uma multidão de cidadãos desesperados, dispostos a trabalhar por um salário de sobrevivência. A ideia é fazer regredir as condições de vida da grande maioria da população para alcançar um crescimento mais agressivo das nossas exportações e consolidar uma enorme desigualdade na repartição do rendimento nacional. As frágeis políticas de promoção da inovação empresarial ficaram para trás.

Em Portugal, o desemprego subiu muito a partir de meados da década de 90 e por várias razões convergentes: alargamento da UE a Leste, abertura do mercado europeu aos países de muito baixos salários, sobretudo a China, e entrada na zona euro com a correspondente perda de instrumentos de política económica. A economia portuguesa não tinha a robustez necessária para superar tais desafios. Nas palavras de um dos prosélitos da actual política de empobrecimento, “Infelizmente, pouco, muito pouco, foi feito para enfrentarmos com sucesso esta nova e muito mais exigente realidade” (Miguel Frasquilho, “Jornal de Negócios”, 14 Fevereiro 2012). Suponho que, para o autor, estamos agora a recuperar o tempo perdido. O número de desempregados terá de subir o que for preciso porque “desistir está fora de questão”.

Acontece que nenhuma economia capitalista alguma vez se desenvolveu através da sujeição incondicional à concorrência global. Como Ha-Joon Chang documenta no seu livro “Bad Samaritans – The Guilty Secrets of Rich Nations and the Threat to Global Prosperity” (p. 15), “Os actuais países ricos usaram a protecção e os subsídios, ao mesmo tempo que discriminavam contra os investidores estrangeiros – tudo anátemas para a ortodoxia dos nossos dias – agora severamente limitados por tratados multilaterais, como no caso dos Acordos da OMC”. Para se industrializarem, a Grã-Bretanha, os EUA e a Alemanha praticaram exactamente o contrário do livre comércio e da livre circulação de capitais. Porém, uma vez alcançada a posição dominante, tudo fizeram para derrubar a escada que lhes permitiu subir, tentando assim evitar que fossem imitados pelos menos desenvolvidos. O Chile, um bom aluno do neoliberalismo com a ditadura de Pinochet, muito invocado como caso de sucesso, revela hoje debilidades que comprometem o seu futuro. “Nos últimos 30 anos o país [o Chile] perdeu uma parte importante da sua indústria e tornou-se excessivamente dependente das exportações de recursos naturais” (idem, p. 31).

Em rigor, a crise da zona euro resulta da impossibilidade de estados-nação de muito desigual nível de desenvolvimento coexistirem numa união monetária intergovernamental perfeitamente integrada na globalização comercial e financeira. Sem política económica própria, com uma opinião pública pouco informada e uma elite política desqualificada, Portugal parece hoje condenado a alargar a desertificação do seu território até ao litoral. Para recusar este destino sombrio e indigno, o país teria de romper com o euroliberalismo e adoptar uma estratégia de desenvolvimento que, à semelhança do que acontece em vários países bem sucedidos, controle o comércio externo, o investimento produtivo e os fluxos financeiros em função dos objectivos de robustecimento da sua economia. Escolher o desenvolvimento não significa voltar as costas à Europa, mas de facto obriga a romper com uma Europa submissa à globalização.

Publicado ontem no jornal i

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

À espera que chova

«Devo dizer que sou uma pessoa de fé, esperarei sempre que chova e esperarei sempre que a chuva nos minimize alguns destes danos. Como é evidente, quanto mais depressa vier, mais minimiza, quanto mais tarde, menos minimiza. Se não vier de todo, não perderei a minha fé mas teremos obviamente de atuar em conformidade.»

É bom saber que Assunção Cristas não vai esperar infinitamente pela mão meteorológica de Deus para tratar dos assuntos de César. De um ponto de vista político, ao não dispensar a tomada de decisões que vier a revelar-se necessária, a sua fé torna-se assim, felizmente, apenas inócua. Por mais que tutele a Agricultura, o Mar, o Ambiente e o Ordenamento do Território, a ministra sabe que - como qualquer mortal - não tem meio de intervir nem de interceder nos desígnios da atmosfera.

Muito mais séria e perigosa é por isso a absurda fé que o ministro do empobrecimento Vítor Gaspar e o ministro do desemprego e da recessão, Álvaro Santos Pereira, nutrem por um «crescimento-económico-que-há-de-vir», sem que consigam tecer uma elucidação minimamente plausível para que tal aconteça. Uma fé obstinada com que animam as hostes de um governo insane, em êxtase com as supostas virtudes do fogo austeritário e da destruição do Estado, que está a empurrar a economia e o país para o abismo.

Ainda recentemente, num post absolutamente imperdível, Pedro Lains recordava a entrevista em que Vítor Gaspar foi incapaz de explicar «de onde virá o crescimento que permitirá a redução da dívida, concentrando-se apenas em elogiar a redução do défice - sem lembrar que o fez essencialmente com medidas temporárias, como a transferência das pensões dos bancos». Ou a lunática resposta do mesmo ministro a um aluno da LSE, quando este perguntou a Gaspar pelos pilares em que assentaria o famoso «crescimento-que-há-de-vir». Como assinala Lains, «depois de refrasear a pergunta, Gaspar disse que a primeira fonte de crescimento será uma "normal cyclical recovery". Ou seja, isto vai abaixo e depois vem acima porque a economia passa a ter "lots of spare capacity"», presumindo-se portanto «que quanto mais abaixo for, mais acima virá». Uma simplicidade estarrecedora, não é?

Pelo mesmo guião afina Santos Pereira, para quem paradoxalmente a criação de emprego parece constituir um objectivo alheio às suas funções governativas. Basta ver, aliás, a dificuldade que constantemente exibe para elencar qualquer medida concreta de criação de emprego e que o leva recorrentemente a refugiar-se numa bizarra indignação face ao aumento crescente do número de desempregados, como se perante eles não tivesse responsabilidades nem obrigações directas. Essa «coisa» do emprego, para o ministro da Economia e do Emprego, há-de ser certamente assunto da economia, desse mundo que fica para lá das portas do seu ministério.

É bom lembrar que, ao contrário de Assunção Cristas, naturalmente impedida de agir sobre a meteorologia, Gaspar e Santos Pereira são sacerdotes convictos da atmosfera recessiva que nos envolve, criada a partir de escolhas políticas concretas. Ao recusarem deliberadamente adoptar políticas capazes de inverter a trajectória depressiva em que prosseguimos, eles esperam, numa inexplicada fé, que o «crescimento-que-há-de-vir» caia um dia do céu. De um modo tão espontâneo como a chuva.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Krugman em Portugal e os fretes dos escribas


Paul Krugman vem a Lisboa na próxima semana para receber um doutoramento honoris causa conjunto das três universidades públicas de Lisboa. Começo por fazer um “disclaimer”. Krugman, a quem aqui nos referimos com frequência, está ainda assim muito longe de praticar o tipo de economia política que defendemos neste blogue: os seus trabalhos teóricos padecem do mesmo tipo de formalismo deletério que caracteriza a economia neoclássica e os seus avatares contemporâneos; e as suas análises macroeconómicas, que são muitas vezes acertadas, perdem robustez por não serem enquadradas numa análise crítica do desenvolvimento histórico do capitalismo.

Ainda assim, Krugman tem pelo menos duas grandes virtudes: o facto de não ter, como sucede com a maioria dos seus colegas de profissão, um entendimento pré-keynesiano da economia; e a sua preocupação em intervir no debate público de forma sistemática num sentido que, tendo em conta o panorama geral, tem de ser considerado progressista. Krugman tem sido, por exemplo, um constante crítico do insano austeritarismo aplicado na Europa (ver, por exemplo, aqui, aqui, aqui ou aqui), dos problemas sistémicos da arquitectura do Euro; da política monetária do BCE; da desregulação financeira e suas consequências; ou do lastimoso estado em que se encontra a macroeconomia contemporânea.

Aguarda-se por isso com expectativa a sua vinda a Lisboa, na certeza de que não deixará de contribuir para erodir a hegemonia intelectual e política de uma austeridade queé não só estúpida como também profundamente nociva. E certamente não o fará apelando a cortes salariais, como o texto de Helena Garrido, de forma errónea e sintomática, pretende fazer sugerir.

O equívoco sobre a estratégia de austeridade

A austeridade deveria gerar a confiança, que atraia o capital financeiro, que baixaria os juros, que aumentava o investimento empresarial, que recuperava o crescimento. Este é o circulo virtuoso subjacente à terapia aplicada na Grécia, Irlanda, Portugal, a que se seguiram a Espanha e Itália. Mas a terapia virtuosa transformou-se num circuito infernal, num buraco negro que engole milhares de milhões de euros. (Helena Garrido, Jornal de Negócios)

Este é o novo consenso que começa a emergir na comunicação social: a austeridade era uma estratégia que visava restaurar a confiança dos mercados; mas a ênfase na consolidação orçamental foi exagerada, levando as economias para uma recessão prolongada; em suma, a estratégia da austeridade falhou.

Esta narrativa revela uma mudança de discurso por parte de quem durante muito tempo aceitou o mito da ‘fada da confiança’. No entanto, a análise parece falhar num ponto essencial: como aqui escrevi há quase um ano e meio, dar confiança aos 'mercados' foi sempre um objectivo secundário para os responsáveis políticos pela estratégia em causa.

A estratégia da austeridade consiste, desde o início, num combate sem quartel aos salários, aos direitos sociais e às possibilidades de controlo democrático das economias (em toda a Europa e não apenas nos países em crise), através do choque e do medo gerados pelos elevados níveis de desemprego, acompanhados pela redução da protecção social. Nesta perspectiva, a estratégia de austeridade está longe de ter fracassado.

Muito mais do que divergências académicas sobre como se deve combater uma recessão, estão em causa decisões sobre o modelo de sociedade que queremos para o futuro. Não haja equívocos.

Editoriais


Se é um oligarca e sempre desejou ter uma ilha grega, a sua oportunidade pode ter chegado.

Brevíssimo excerto do editorial do The Guardian sobre as decisões da última cimeira. Contrastem a clareza, o realismo, deste editorial com o do Público de hoje, um jornal cujos editoriais não fazem geralmente jus ao trabalho informativo dos seus jornalistas económicos que não estão na bolha de Bruxelas. Um editorial que exprime o impasse de quem tem sido complacente com a destrutiva tutela externa das periferias, que ainda é apodada de “solidariedade” europeia, um editorial sem respeito por esta palavra e pela sua lógica. Excertos representativos: “A zona euro seguiu o caminho da solidariedade com a Grécia, mas o preço que impôs é muito alto (…) Assim sendo o que é que o futuro reserva aos gregos? Mais austeridade, mais sacrifícios e, provavelmente mais resgates (…) um futuro de pobreza e de estagnação para a Grécia”. Pelo meio ainda se diz que há dúvidas sobre a “capacidade política dos gregos em aplicar o acordo”. “Acordo” que se sabe ser inviável, claro, até porque se reconhece que a redução das taxas de juro e do montante em dívida não tornam a dívida grega sustentável. Sustentabilidade é coisa que não existe numa economia em queda livre, graças às políticas prescritas pela troika, a toda elas. A dívida acabará por ser, em percentagem do PIB, equivalente à que era antes do dito acordo muito em breve, mas com duas diferenças: será detida por credores públicos, na sua esmagadora maioria, e a lei que a enquadra será inglesa, o que significa, entre outras coisas, que a dívida não poderá ser redenominada em nova moeda por decisão soberana, que os credores têm mais garantias em caso de disputa. Enfim, uma estranha forma de solidariedade, uma estranha forma que o Público tem de alinhar com a inane sabedoria convencional portuguesa, a que agora tem um pé na austeridade, que já sabe ser depressiva, finalmente, e outro pé no seu contrário. As palavras são importantes.

Conversas sobre o senso comum (IV)

«Na televisão como nas conversas de café, no que se diz no metro ou no autocarro, no que ouvimos na escola ou no trabalho, há um conjunto de ideias a partir das quais se discute mas que raramente são discutidas em si mesmas.»

Duas novas sessões, em Coimbra e no Porto. Uma iniciativa da CULTRA (Cooperativa Culturas do Trabalho e do Socialismo).

«QUEM PODE DEVE PAGAR MAIS PELA SAÚDE?»
Com António Rodrigues (médico) e Mauro Serapioni (investigador do Centro de Estudos Sociais).
(Coimbra, 23 de Fevereiro, 21.00h, Galeria Santa Clara)

«A CULPA É DOS POLÍTICOS?»
Com Manuel Loff (historiador) e Gui Castro Felga (arquitecta, activista). Moderação de Joana Cruz.
(Porto, 24 de Fevereiro, 21.00h, Cooperativa Gesto)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Tutela

Para além da radicalização de uma austeridade que já tirou mais de 15% ao PIB grego, a reestruturação da dívida grega liderada pelos países credores, cuja ideia de expulsar a Grécia do euro não passou de mais uma ameaça pouco credível, consolida a tutela externa do país. Em novilíngua europeia, isto designa-se por “reforço da capacidade institucional grega”, com uma “Task Force” reforçada e permanente e tudo, criando-se também uma conta separada para tentar garantir o pagamento aos credores de uma dívida que era suposto atingir 120% do PIB em 2020, já com a reestruturação incorporada, de acordo com pressupostos reconhecidamente irrealistas. Na realidade, segundo um relatório secreto, mas tornado público, poderá ser ser mais de 160% do PIB, em 2020, dada a desvalorização recessiva sem fim engendrada, embora se fale do milagre das reformas estruturais e das privatizações, combinação tóxica que, fora do papel onde as utopias liberais se escrevem, só agrava os problemas económicos reais. Enfim, a prioridade dada aos credores, o capitalismo da pilhagem possível, será inscrita na constituição grega, seguindo a declaração do Eurogrupo. A destruição da Grécia continuará então, até que o povo grego se decida libertar democraticamente desta tutela externa.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Política económica e economia política


O pretexto é a eliminação dos feriados, mas o artigo de Rui Peres Jorge no Negócios vai mais longe, sendo de leitura altamente aconselhável para quem queira perceber os erros sistemáticos do Governo que tão caro estão a custar ao país: "Em plena crise de emprego e procura, o Governo insiste no erro de aumentar o número de horas de trabalho, ao arrepio das boas práticas internacionais (talvez a Alemanha, que fez exactamente o contrário, possa também ser consultada na frente laboral). Todos os indicadores disponíveis mostram que a capacidade utilizada na economia está em mínimos históricos, o que significa que simplesmente não há procura e muitas empresas estão a meio gás. É por isso que um aumento do número de horas não levará a um aumento da produção. Conduzirá sim a despedimentos da mão-de-obra que ficará em excesso, isto num momento em que mais de um milhão de portugueses já não tem trabalho - e em que as contas públicas bem dispensam mais encargos com apoios sociais." Mais um pretexto para cortar nos apoios sociais.

Perante isto, o melhor que podemos dizer é mesmo que as políticas erradas se devem a teorias económicas erradas na base de diagnósticos errados da situação. Também podemos dizer que o governo sabe o que está a fazer. O relaxamento face ao aumento do desemprego significa que compreenderam bem a economia política do pleno emprego, formulada por Michal Kalecki em 1943: "Num regime de pleno emprego permanente, a ameaça de despedimento deixaria de desempenhar o seu papel como medida disciplinar (...) As greves por aumentos salariais e por melhorias nas condições de trabalho criariam tensões políticas (. . .) A 'disciplina nas fábricas' e a 'estabilidade política' são mais apreciadas pelos homens de negócios do que os lucros." Onde se lê fábricas, leia-se também escritórios, balcões, etc.

Outros voos

Luís Amado está mais do que preparado ideologicamente para exercer as suas novas funções de banqueiro no BANIF. Telefonicamente, o ex-ministro também está pronto, já que a sua lista de contactos é nacional e internacional, como convém. Politicamente, Amado conhece por dentro o regime de bancarrotocracia com escala europeia. Isto para não falar na utilidade do seu alinhamento com todos os imperialismos, com todas as invasões, com todos os voos. Não sei se percebe alguma coisa do sector financeiro, nem isso interessa, que a divisão do trabalho foi criada para que cada um se especialize no que faz melhor. O que Amado faz melhor é dar-nos mais uma lição sobre os donos de Portugal, sobre o sistema contra o qual qualquer força socialista, social-democrata, qualquer força que pugne por uma sociedade decente, deve sempre lutar.

O destino do euro em duas palavras

É muito interessante o artigo de Wolfgang Münchau no Financial Times de hoje - "Greece must default if it wants democracy".

Aqui fica a minha tradução de um parágrafo central:

A presente situação põe em evidência a vulnerabilidade política da actual estratégia de resgate da zona euro. Por um instante ponhamos de lado os argumentos económicos e tomemos em consideração a política. Quem defende um aumento do pacote financeiro devia lembrar-se de que a solidariedade entre governos está à beira da exaustão. Isto já era assim ainda antes de um só cêntimo ter atravessado a fronteira. É também o mais forte argumento para justificar uma união orçamental. Se pretendermos fazer circular centenas de milhares de milhões de euros [na zona euro], isso é simplesmente impossível numa base inter-governamental com a Alemanha, a Holanda e a Finlândia a financiarem a Grécia, Portugal e a Irlanda. Para isso precisávamos de um sistema federal. Este seria necessário não por razões de eficiência económica mas para impedir um conflito do tipo Alemanha contra Grécia. Se uma união orçamental se revelar politicamente inaceitável, então teremos simplesmente de admitir que um sistema de transferências entre países não pode, e não vai, acontecer.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Quem paga?

Pouco a pouco, graças a jornalistas económicos atentos, algumas dimensões da bancarrotocracia vão sendo apresentadas nos jornais: Foi fácil, barato e deu milhões. E agora, quem paga?, por Manuel Esteves, é um exemplo. Dois pontos adicionais que me parecem ser importantes quando se fala dos portugueses endividados: cerca de 40% das famílias tem dívidas à banca e até à crise Portugal tinha das mais baixas taxas de incumprimento. A insolvência privada é sobretudo um produto da crise e da resposta austeritária que atinge também as elásticas classes médias endividadas, sendo um dos factores na base do actual caminho para a depressão. Curiosamente, quanto maior é a chamada flexibilidade da economia, quanto mais direitos os patrões reconquistam, quanto maior é a capacidade em despedir, em cortar rendimentos, em transferir os custos para o mundo do trabalho, mais intensas são as interacções perversas entre dívida e compressão da procura. A bancarrotocracia e a prática das reformas estruturais de matriz neoliberal abrem então novos caminhos para a depressão. Trata-se de um contexto onde se manifestam todos os paradoxos, incluindo o da poupança: "As sucessivas dietas de austeridade e o desemprego recorde estão a levar as famílias portuguesas a poupar menos ou mesmo a consumir as suas poupanças".

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A coisa deixou de funcionar


Imaginem um país com um norte com tradição industrial, alfabetizado, e um sul tradicionalmente agrícola, menos escolarizado. Um país onde, no conjunto, a economia era fechada, com o norte a vender tractores ao sul, e o sul produtos agrícolas ao norte. No norte, nasciam poucas crianças e a população envelhecia. Era preciso garantir as pensões de reforma no futuro e isso poderia ser feito aumentando a produção e venda de tratores e a poupança para constituir um fundo de investimento. A dificuldade é que o sul era pobre não absorvia mais tractores produzidos no norte.

A solução, descobriu-se no norte, seria exportar tractores. Para isso era preciso negociar acordos comerciais com outros países e baixar os custos de produção no norte (os salários) para garantir que os tractores fossem competitivos no mercado mundial. Em troca da abertura aos tractores, os parceiros comerciais do norte exigiram a abertura dos mercados do país aos seus produtos agrícolas. E assim ficou combinado.

Tudo corria bem para o norte – exportava muitos tractores e importava produtos agrícolas baratos. Em consequência o norte começou a acumular grandes excedentes comerciais. Acontece que para serem transportados para o futuro estes excedentes comerciais teriam de ser aplicados em alguma coisa. No entanto, como os salários tinham diminuído no norte e no sul a agricultura se ressentia da concorrência dos produtos agrícolas importados, não havia mercado interno que justificasse esses investimentos.

Foi aí que alguém do norte teve outra ideia. Se emprestarmos os nossos excedentes, sob a forma de dinheiro baratinho ao sul, eles podem comprar mais tractores, fazer estradas para transportar produtos agrícolas para o norte e se calhar podem construir escolas e tudo. Assim foi e durante algum tempo, no sul, até houve quem comprasse casas novas a crédito. Quando o sul ficou muito endividado os bancos do norte disseram: "Não pode ser, agora só vos emprestamos se pagarem juros de 30% ao ano". O sul, é claro, não podia pagar. E foi assim que a coisa deixou de funcionar.

Economia política

Através da produção de uma ideologia justificativa, que proclama com frequência não existirem alternativas à atual praxis económica, por exemplo, este mecanismo insinuaria nas pessoas as normas do comportamento correto de um modo tão impercetível quanto o ar que respiram. O sentimento de impotência que este discurso está preparado para inocular nas pessoas é frequentemente acompanhado, ademais, por um outro tipo de mensagem que o sistema necessita de transmitir para ultimar a produção da referida ideologia justificativa, o medo. Com efeito, de modo a obrigar as pessoas a não sair da linha, o discurso económico dominante necessita de produzir uma série de ameaças, ou melhor dizendo de evocar um conjunto de potenciais perdas em que os indivíduos incorrerão caso não respeitem as normas do dito comportamento correto. Uma das ameaças mais correntes na economia global contemporânea é provavelmente a da deslocalização de empresas e consequente transferência de postos de trabalho.
(…)
Nas próximas páginas examinaremos as múltiplas facetas do papel desempenhado pela economia, pela ciência económica, na desconstrução da sociedade dos direitos humanos. Constatar-se-á que esta ciência, e em especial a sua corrente dominante, tem contribuído, precisamente, para a produção dessa ideologia justificativa referida mais acima. As lógicas sobre as quais assentam os discursos da economia e dos direitos humanos são, em muitos aspetos, contraditórias, encarando a economia os direitos humanos como um conceito concorrente, como uma restrição ao desenvolvimento da sua própria lógica, muito particularmente no que concerne aos direitos económicos, sociais e culturais. Procuraremos, assim, mostrar como este conflito, e as suas lastimáveis sequelas, não decorrem tanto de se fazer de modo errado a economia certa, mas de se fazer de modo certo a economia errada.

Excertos da introdução do livro Economia Política dos Direitos Humanos, acabado de ser lançado, da autoria do economista Manuel Couret Branco da Universidade de Évora. Fica prometida uma recensão.

É muito difícil respeitar uma Igreja assim (com um abraço sentido para os meus amigos católicos progressistas)

“A mulher deve poder ficar em casa, ou, se trabalhar fora, num horário reduzido, de maneira que possa aplicar-se naquilo em que a sua função é essencial, que é a educação dos filhos.” Assim diz o novo cardeal Manuel Monteiro de Castro.

De uma assentada, decreta-se que o papel da mulher no espaço público é indesejável, que o papel do homem na educação dos filhos é secundário, que uma família com filhos só pode ter um homem e uma mulher, e que os obstáculos à opção de constituir uma família com filhos nada têm a ver com o desemprego e a crescente precariedade das relações de trabalho.

Será que no reino de Ratzinger a ignomínia faz parte das provas de acesso a cardeal?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Contra a economia de austeridade

Agora que é claro para a maioria que a austeridade falhou totalmente, apetece-me relembrar algumas posições públicas colectivas que por aqui e por outros lados têm sido dinamizadas nos últimos anos precisamente contra a ideologia económica da austeridade e os seus efeitos práticos, traduzidos em taxas de desemprego sem precedentes e na tentativa de tornar permanente uma opção de política económica tão desastrosa quanto evitável.

Assim, em final de Junho de 2009, um grupo de economistas e outros cientistas sociais portugueses publicou um manifesto pelo emprego, onde se concluía que o governo português deveria “exigir uma resposta muito mais coordenada por parte da União Europeia e dar mostras de disponibilidade para participar no esforço colectivo. Isto vale tanto para as políticas destinadas a debelar a crise como para o esforço de regulação dos fluxos económicos que é imprescindível para que ela não se repita. Precisamos de mais Europa e menos passividade no combate à crise.” A falácia da composição europeia, associada a uma resposta à crise assente na promoção generalizada das exportações através da compressão interna, foi então denunciada numa frase: “é preciso não esquecer que as exportações de uns são sempre importações de outros.”.

Infelizmente, a passividade nacional e europeia deu lugar a uma aposta na austeridade necessariamente recessiva e destruidora de emprego e a comunicação social, em especial a televisão, tratou de assegurar o quase monopólio dos economistas que a apoiaram e ainda a apoiam e que, até às eleições, por incompetência ou interesse político, insistiam em ignorar a dimensão europeia da crise. Por isso mesmo, em Outubro de 2010, uma petição, subscrita por mais de mil cidadãos em menos de uma semana, apelava ao pluralismo no debate político-económico: “Por ignorância, preguiça, hábito, desconsideração deliberada ou manifesto servilismo, os canais televisivos têm sistematicamente tratado a análise da crise económica como se o intenso debate quanto aos fundamentos doutrinários e às opções políticas que estão em jogo pura e simplesmente não existisse.”



Em Novembro de 2010, um grupo de economistas nacionais apresentava a petição pública “Para uma Nova Economia”, com muitas propostas de estímulo e reforma estrutural progressista com escala europeia, convergentes com as de um manifesto francês de economistas aterrados lançado em português em Março de 2011.

Finalmente, já em 2011, aquando dos apelos à união nacional pela intervenção externa, apelou-se a outras convergências, lembrando os desastrosos resultados de intervenções anteriores orientadas pelos interesses do capital financeiro. Agora que Portugal e a Europa estão numa crise cada vez mais profunda, julgo que já não restam grandes dúvidas que é preciso acabar com a economia de austeridade com escala europeia.

Neste blogue e noutros espaços, desde 2009 que muitos dizem que isso pode ser feito por cima, a solução europeísta partilhada por estas posições públicas, ou por baixo, dados os bloqueios políticos a nível europeu, que impedem qualquer correcção das assimetrias identificadas há muito neste euro disfuncional. O roteiro dessas posições – a auditoria e reestruturação como arma das periferias para forçar clarificações urgentes e que devem ser enfrentadas sem tabus – fica para um próximo poste.

Queridos, encolheram o gráfico?

Se visitarem a página do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social no portal do governo, encontram à direita um gráfico curioso (este primeiro, que aqui se reproduz). Indica o número de beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) e, num olhar menos atento, sugere estar a verificar-se uma evolução positiva.

Analisando o gráfico com maior cuidado, percebe-se porém que os dados se limitam (convenientemente?) ao período entre 2007 e 2010, no qual se registou de facto um aumento tendencial do número de beneficiários (coerente com o eclodir da crise).

É que, desde então, nomeadamente a partir da aprovação do PEC 1 (em Março de 2010), a diminuição do número de beneficiários do RSI tem sido violenta e constante (como mostra o segundo gráfico, elaborado a partir dos dados disponíveis na página da Segurança Social).

Esta redução resulta, numa primeira fase, da pressão populista e infundada dos partidos de direita sobre o governo anterior (e que este lamentavelmente acolheu) e, numa segunda fase, já com os arautos demagogos do «combate ao subsídio à preguiça» e da «remoção das zonas de conforto» na condução suicida do país, como os números do desemprego ontem divulgados demonstram.

De facto, perante o valor recorde de desemprego a que se chegou (desde 2008 a taxa praticamente duplicou) e com cerca de 25% dos portugueses em risco de exclusão social, seria de esperar que o RSI aumentasse em número de beneficiários, servindo assim de almofada mínima protectora ao agravamento das condições de vida. Não é todavia isso que nos dizem os dados, tal como não é isso que nos mostra o «gráfico encolhido» que o governo colocou no seu portal.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Um salto qualitativo na crise do euro



O Presidente da Grécia, Karolos Papoulias, reagiu com veemência às declarações do ministro alemão das finanças Wolfgang Schäuble que condicionavam o financiamento da UE ao adiamento das eleições na Grécia e à formação de um novo “governo de tecnocratas” “que não inclua políticos como Venizelos ou Samaras, seguindo o modelo em prática na Itália.” (Diário Económico, p. 8).

No Spiegel Online: “Eu não aceito os insultos ao meu país proferidos pelo Sr. Schäuble.” “Sempre tivemos orgulho em defender não apenas a nossa própria liberdade, não só o nosso país, mas também a liberdade de toda a Europa” disse Papoulias.

Como se vê (ler El País), Alemanha, Holanda e Finlândia já decidiram que é preferível deixar cair a Grécia e pagar a factura. E, na Grécia, a elite política já percebeu isso mesmo (ver aqui). Aliás, a maioria da população também já terá percebido que as condições que lhe são impostas têm precisamente por objectivo obrigar a Grécia a abandonar o euro.

Assim, a crise do euro entra agora na fase terminal, a da crise política. Como eu já tinha antecipado em 2009 (aqui e aqui):

Em vez de anunciar o fim da crise vou fazer uma previsão polémica: o aprofundamento da actual crise com a entrada em cena de uma crise política europeia que irá juntar-se às crises financeira e económica.

Lamentavelmente, há demasiada gente ilustre que ainda não percebeu a natureza da presente crise. E também não percebeu que o tempo que vivemos exige muito mais que escrever manifestos abrangentes e inócuos.

Um Manifesto importante, uma palavra maldita e um elefante que ninguém quer ver

O Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa lançou um Manifesto, encabeçado por Eduardo Paz Ferreira, como o título inequívoco «Um Tratado que não serve a União Europeia».

Num país em que as elites ligadas ao arco da governação desenvolveram ao longo dos anos um europeísmo acrítico, subvalorizando os riscos da integração europeia e exaltando benefícios questionáveis, o surgimento de um Manifesto que põe em causa o projecto de “Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação e a Governação na União Económica e Monetária”, promovido por especialistas reputados de uma instituição reconhecida, é motivo de grande interesse.

Ainda o é mais quando lemos as razões de crítica à pseudo-solução que os líderes europeus dizem ter encontrado para a crise. Eis algumas passagens do Manifesto:

«Num momento que é de urgência, em que os problemas da zona euro se jogam no curto prazo, é paradoxal que se tenha apostado em despender energias na elaboração de um projecto de tratado, para mais numa circunstância em que se verificou não haver consenso para isso entre os 27 Estados-membros, o que só por si enfraquece a solução encontrada.

A surpresa é tanto maior quanto nada do que está consagrado no Projecto de Tratado aprovado pelos 25 Estados-membros é verdadeiramente inovador. E o que verdadeiramente justificaria um tratado de revisão está ausente no projecto agora aprovado.

Com efeito, o que se verifica é, no essencial, uma tentativa de elevar ao nível de tratado o fracassado (não por acaso) Pacto de Estabilidade e Crescimento como contrapartida da criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE).

(...) O Projecto de Tratado reincide no erro de instituir um regime económico sem flexibilidade, em resultado do ainda maior espartilho decorrente das regras orçamentais. Os Estados-membros mais frágeis – já bastante condicionados pela dependência de financiamentos de instituições da União - ficam totalmente desprovidos de instrumentos de política económica para prosseguir os seus objectivos específicos. E não podem sequer beneficiar, como nos Estados Unidos, dos instrumentos próprios do federalismo (designadamente de um poderoso orçamento redistributivo ao nível da União), ficando assim no pior de dois mundos.

(...) A estratégia adoptada é orientada num sentido único. Desvaloriza-se a circunstância de o problema de fundo residir mais no nível dos desequilíbrios nas balanças de pagamentos do que propriamente nos desequilíbrios orçamentais (a Espanha tinha excedentes orçamentais apesar do enorme défice externo): os fundos provenientes dos países com excedentes na balança foram intermediados pelo sistema financeiro para financiar os países com défices na balança. Daí a necessidade de uma visão mais abrangente, mais de conjunto, ao nível da zona euro.

A estratégia seguida secundariza o vector do crescimento, pois pretende ajustamentos em períodos muito curtos. Ora, a intensidade do ajustamento pode comprometer o crescimento e gerar uma espiral recessiva. Então, como já alguém disse, em vez de uma união de estabilidade e crescimento teremos uma união de instabilidade e duradoura estagnação.»


Não poderia estar mais de acordo. O meu apoio ao Manifesto esbarra, no entanto, num palavra maldita: austeridade. O Manifesto defende a «austeridade» como um dos «quatro ângulos» de um «quadrilátero virtuoso» (completado por «crescimento, solidariedade e defesa intransigente da democracia»). Na verdade, os autores do manifesto enfatizam que a «austeridade» deve ser entendida «como um instrumento e não como um fim», podendo ler-se que «a austeridade deve traduzir-se, designadamente, num combate sem quartel ao desperdício e à corrupção e na racionalização e reorientação da despesa pública visando maximizar a sua eficiência.».

Tivessem os autores utilizado a expressão 'disciplina orçamental e transparência' e o meu acordo seria quase total. Tenho defendido que não concebo uma integração económica sem estabilidade cambial e não imagino que esta seja possível sem compromissos e mecanismos de monitorização multilateral das políticas orçamentais. Subscrevo também a ideia, expressa no Manifesto, de que a estratégia de saída para a crise deveria passar por esforços assimétricos dos Estados europeus, com a adopção de políticas expansionistas nos países superavitários e contenção nos restantes.

No entanto, no contexto actual, a utilização da expressão 'austeridade' não é neutra. Ela acarreta, não obstante os qualificativos, um alinhamento simbólico com uma estratégia de ajustamento assente na difusão da ideia de superioridade moral dos hábitos austeros, como meio de legitimação de medidas injustas, ilegítimas e, como o Manifesto sublinha, condenadas ao fracasso.

Por outro lado, este Manifesto - como, de resto, a generalidade das intervenções críticas sobre a integração europeia (inclusive as que temos feito neste blog) - ignora recorrentemente uma questão fundamental: a da viabilidade política de quaisquer propostas alternativas para ultrapassar a crise. De facto, grande parte das propostas avançadas no Manifesto exigiriam a substituição do Tratado de Lisboa, o que só seria possível com o acordo de cada um dos 27 Estados Membros. E nunca estivemos tão longe de conseguir um acordo sobre as questões mais simples, quanto mais sobre aquelas que implicariam, na verdade, uma refundação da UE.

Parece cada vez menos razoável esperar que a sensatez e a racionalidade colectiva dos governos da UE conduza a uma mudança de rumo. Este é o elefante que temos na sala e que temos evitado discutir. Vai chegando a hora de mudar os termos do debate.

Conversas sobre o senso comum (III)

«Na televisão como nas conversas de café, no que se diz no metro ou no autocarro, no que ouvimos na escola ou no trabalho, há um conjunto de ideias a partir das quais se discute mas que raramente são discutidas em si mesmas.»

Mais três sessões de debate, em Coimbra, no Porto e em Faro, que integram esta iniciativa da CULTRA (Cooperativa Culturas do Trabalho e do Socialismo).

«SE A CULTURA É INÚTIL, PARA QUÊ FINANCIÁ-LA?»
Com Leonor Barata (coreógrafa) e António Ferreira (cineasta).
(Coimbra, 16 de Fevereiro, 21.00h, Galeria Santa Clara)

«O ENSINO DE ONTEM ERA MELHOR DO QUE O DE HOJE?»
Com Maria José Araújo (animadora, investigadora) e Arsélio Martins (professor). Moderação de Jorge Paiva.
(Porto, 17 de Fevereiro, 21.00h, Cooperativa Gesto)

«ANDÁMOS A VIVER ACIMA DAS NOSSAS POSSIBILIDADES?»
Com Fernando Rosas (historiador), Mariana Mortágua (economista) e António Goulart (coordenador União dos Sindicatos do Algarve). Moderação de Gabriel Almeida.
(Faro, 17 de Fevereiro, 21.30h, Sociedade Recreativa «Os Artistas»)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

E resulta?


Serão em breve divulgados os dados da terceira revisão para o cenário macroeconómico de FMI. Serão más notícias, mas não será uma novidade. Quando o FMI elabora um cenário macroeconómico, o objectivo não é um exercício de avaliação de impacto dos seus programas de intervenção. Neste caso peculiar de análise económica, trata-se de dizer o que for preciso dizer para fazer com que as pessoas aceitem programas de ajustamento que não só impõem sacrifícios, não só os distribuem de forma injusta, não só os impõem de forma crescente, como… não resultam. Pior do que não resultam, são contra-producentes.

Um bom exercício é olhar para o cenário inicialmente desenhado pelo FMI para a economia portuguesa. De acordo com o FMI, era de esperar que, no período 2011-2016, a economia portuguesa observasse uma queda de 7% do Consumo Privado, de 12% do Consumo Público e de 9% do Investimento (estimativas aterradoras mas, mesmo assim, optimistas). No entanto, para o mesmo período em que a principais variáveis que determinam o crescimento cairiam desta forma, o FMI previu um crescimento de 5,2%.

Como compatibilizar estes resultados que desafiam não apenas a teoria económica como o mais elementar bom-senso? Portugal teria uma explosão das exportações (44% durante este período), embora sem crescimento significativo das importações. Esta evolução é já de si estranha, já que o conteúdo importado das exportações portuguesas é de 40%. E se a estagnação das importações resulta da redução da procura interna então é difícil aceitar que esta se fique pelos 7% indicados.

Ou seja, o exercício que o FMI nos propôs neste documento inicial foi o de avaliar de forma extraordinariamente benevolente os impactos do seu programa nas principais agregados e depois formular uma estimativa de evolução do PIB e da dívida, que assenta essencialmente num milagre.

A perpétua revisão

Foi precisamente isso que aconteceu na Grécia. Se tomarmos as previsões do FMI para a Grécia e a forma como evoluíram durante a execução do plano de ajustamento, vemos que as estimativas inicialmente formuladas não só falharam, como falharam grosseiramente, em todas as variáveis que analisarmos. E isto de acordo ainda com as estimativas do FMI.

Por exemplo, no caso das variáveis que usámos para Portugal, o FMI previu na revisão mais recente para o período de 2011-2013 uma quebra de 12%,6 na procura privada (contra os 0,2% inicialmente previstos), uma quebra de 14,3% no investimento (contra os 3,4% inicialmente previstos) e um aumento de 9 p.p. no desemprego (contra os 2,5 inicialmente previstos).

O resultado é uma contracção de 8,5% do PIB (contra a expansão de 0,5% inicialmente prevista) e um aumento da dívida grega em 2011 mais de 17 p.p. acima do previsto. Ou seja , trata-se de um falhanço clamoroso em todas as variáveis determinantes, que arruinaria a reputação de qualquer instituição não fosse tão forte a barreira de silêncio e reverência.

Portugal está mais atrasado neste processo. Mesmo assim, as discrepâncias entre o cenário inicial do FMI já são cada vez mais evidentes na revisão das estimativas para a recessão em 2012 (de -1,8 para -3%)na discrepância entre os valores da dívida inicialmente prevista e a derrapagem a que já estamos a assistir (ver peça balanço de 9 meses de austeridade).

O que agora nos vão dizer

À medida que estimativas repetidamente revistas vão sendo repetidamente desmentidas pela realidade ou pela própria instituição que as formulou, torna-se necessário formular explicações para erros tão imensos e persistentes. E o FMI tem essas explicações. Elas são de três tipos: as falsas, as exógenas e as absurdas.

Um excelente exemplo das explicações falsas é o que continua a ser repetido em relação à Grécia: não cortaram como deviam ter cortado, não cumpriram aquilo com que se comprometeram e por isso é que agora estão assim. O problema desta explicação é que, ela pura e simplesmente, não bate certo com a realidade nem com as novas estimativas do próprio FMI.

A previsão inicial do FMI apontava para uma estagnação da despesa total. Hoje aponta para uma redução de 2,5 p.p. Acresce que, sendo esta percentagem calculada em função do PIB (cuja evolução foi também revista em baixa), a evolução da despesa em termos absolutos será ainda maior. A verdade é que a Grécia foi bem mais além do que estava inicialmente previsto, aliás por força das medidas adicionais que foram sendo impostas, à medida que as anteriores falhavam.

A explicação exógena preferida do FMI é a de uma conjuntura internacional desfavorável. O programa era óptimo, mas infelizmente as coisas correram mal lá fora. É evidente que, quando se prevê um aumento de 44% das exportações de um país num contexto de uma crescente recessão económica no espaço económico em que esse país opera, é provável que se fique decepcionado.

Não faltaram, aliás, economistas a chamar a atenção para a insensatez de multiplicar pela Europa planos de austeridade, sendo que todos eles apostavam nas exportações como motor de crescimento. Mesmo assim, esta explicação é muito útil porque permite a exportação das responsabilidades, uma das exportações que podemos prever com segurança que vai crescer exponencialmente nos tempos mais próximos.

E finalmente, as absurdas. Aqui caem várias categorias sob um lema comum. Se as medidas aprovadas não produziram os resultados esperados e pioraram a situação, isso acontece apenas porque não foram aplicadas com o necessário vigor. É imprescindível, portanto, reforçá-las. É o que acontece com o discurso sobre a necessidade de cortes adicionais da despesa, mesmo perante os efeitos recessivos que os mesmos geraram. É também o que acontece com o discurso da flexibilização do mercado de trabalho e redução dos salários, mesmo perante a dinâmica descontrolada do desemprego.

Assim se processa o único milagre a que estamos verdadeiramente a assistir: o milagre do avanço de uma política permanentemente desmentida pelos factos, só possível com doses massivas de desinformação e com a criação de todo o tipo de distracções, como as que procuram virar a indignação contra a democracia ou contra grupos sociais específicos. Vamos ver mais disso nos próximos tempos. Uma política sempre em pé. Resistente a todos os embates?

E, no entanto, ela resulta

Há no fundo uma razão para que a austeridade continue a ser o grande consenso nacional. Na realidade, a austeridade resulta. Não obviamente nos objectivos que os seus proponentes invocam, mas naquilo que a política da austeridade efectivamente visa atingir.

E assim, os erros do FMI não são erros, a recessão económica não é um falhanço, o aumento do desemprego não é uma decepção. Recessão, precarização, desemprego são instrumentos de política económica que visam alcançar um objectivo fundamental: uma transformação social profunda, que reconfigure completamente o quadro das relações laborais e o lugar do trabalho na nossa sociedade. E que consiga desarticular e destruir os serviços públicos económicos e sociais, construindo uma razão de força maior (“simplesmente, não os podemos pagar”, frase mil vezes repetida) contra o apoio popular massivo de que esses serviços continuam a gozar, apesar de todas as campanhas.

Para evitar esta reconfiguração, a esquerda terá de mobilizar a luta e a alternativa. Elas têm de crescer e alimentar-se mutuamente. Está a acontecer na Grécia, tem de acontecer em Portugal. Não é tarefa fácil, porque obriga a desmontar o maior consenso de opinião alguma vez produzido na democracia portuguesa. Mas é possível porque se apoia na evidência do descalabro económico e social que a austeridade gerou. Os números podem ser escondidos. Mas a realidade que eles representam está à vista de todos.

Também publicado em www.esquerda.net