terça-feira, 31 de março de 2020

Lay-off 3 - Os heróis abandonados

Muitos trabalhadores - aqueles que são considerados nos discursos políticos como heróis - estão a laborar com o risco da sua saúde e mesmo da sua própria vida e dos seus familiares. E nem por isso são, no mínimo, compensados com melhores retribuições salariais.

Muito pelo contrário: vivem sob a espada do desemprego iminente - e que vai acontecer com estas medidas - que os faz aceitar essas baixas condições de trabalho, em tempo de sacrifício colectivo; ou do risco de redução salarial caso a sua entidade patronal decida recorrer aos apoios públicos de lay-off. E mesmo assim nada lhe garante que, passado esse apoio, o desemprego não lhes bata a porta. Os apoios públicos irão socorrer as empresas - que se libertam dos "custos" salariais - mas não socorrem devidamente os seus trabalhadores que ficarão com um remuneração a dois terços do seu valor durante seis meses. E ver-se-á, no futuro, como é que as empresas vão aproveitar a conjuntura para criar o novo normal das baixas remunerações:

Partidos à esquerda e centrais sindicais têm feito eco de inúmeras situações de despedimento ocorrido antes das novas normas do lay-off terem entrado  em vigor. A CGTP critou uma linha de denúncia distrital e avança com 1600 despedimentos nos últimos dias. Os sites das principais organizações sindicais têm relatados muitos casos. Imposição de férias no grupo Calzedonia, a Loja O Gato Preto recorre ao lay-off simplificado por um mês quando possui recursos; o mesmo na Sacoor Brothers onde o rendimento bruto dos trabalhadores vai muito além do salário base apoiado; a Primark não deu ainda garantias de pagamento salarial; o encerramento das clínicas do SAMS e do centro clínico a coberto da pandemia; a REN que adia negociação de aumentos salariais para depois da crise sanitária; a CNS/Fiequimetal suspende as negociações, apesar de os lucros serem conhecidos; no ramo dos transportes, empresas de trabalho temporário aproveitam a pandemia para despedir promotores de vendas e motoristas, que já deveriam estar nos quadros da CarrisTur, pois lá laboram há mais de 3 anos; a Martifer, que contratou com a Petrogal a manutenção regular na refinaria de Sines, manda a sua subcontratada CMN despedir 90 trabalhadores, entre os quais está um dirigente do SITE Sul. O PCP e o Bloco nas suas páginas de denúncia de despedimentos (aqui e aqui respectivamente) já referiram vários casos. Na Alliance healthcare e na Cimpor/Sacopor se alterou unilateralmente horários; na Celtejo e Navigator passou-se para um horário concentrado de 12 horas; na Randstad, cortou-se o subsídio de alimentação e prémios a quem está em teletrabalho; na Ansiel, não se aceita a dispensa para assistência a filhos; na Visteon em Palmela, houve despedimentos dos trabalhadores de empresas de trabalho temporário; na PSA Peugeot de Mangualde e Huff em Tondela vai se recorrer ao lay-off sem haver necessidade; Visabeira, lojas EDP sem material de protecção; na Caeteno Aeronaltic (Gaia), Essilor Portugal, Renault Cacia e Bosch (Aveiro) impõe-se tempos de paragem como tempo de férias; mais recentemente, referencioau-se o afastamento de 500 trabalhadores na TAP que irá colocar os seus pilotos em regime de lay-off. Isto mau grado a empresa ter condições para suportar esses custos. E a lista poderia prossegue... 

Nada disto faz sentido. Toda a esquerda à esquerda do PS coincide na análise: o apoio aos salários será a melhor forma de combater a recessão por asfixia da oferta que tende a provocar uma redução da procura. O Bloco propõe-no. O PCP vai propô-lo no Parlamento na próxima quinta-feira. E tudo isto se passa apesar de o senhor Presidente da República - que os considera de heróis - nada referir em vésperas da sua decisão de renovar ou não o Estado de Emergência. Sobre isso, o decreto apenas obliterou o direito de greve e de manifestação...

Tudo isto acontece porque o lay-off autorizado pelo Conselho de Ministros foi pensado, sobretudo, na lógica de funcionamento das empresas. E não na vida das pessoas que dependem do trabalho numa situação excepcional como a que se vive.

Ora veja-se.

As pessoas primeiro


«Preocupa-nos a todos o crescimento, em progressão geométrica, da pandemia. Conforta-me a resposta de tantas pessoas, médicos, enfermeiras, enfermeiros, voluntários, religiosos, sacerdotes, que arriscam a sua vida para tratar e defender as pessoas do contágio. Diversos governos adotaram medidas exemplares, com prioridades claras, para defender a população. (...) Os governos que enfrentam a crise desta forma, mostram o que consideram prioritário: primeiro as pessoas. E isso é tão mais importante quanto sabemos que, para alguns, defender as pessoas implica um descalabro económico. Seria triste que se optasse pelo contrário, pois essa opção levaria à morte de muitíssima gente, numa espécie de genocídio viral. (...) Já se notam algumas das consequências da epidemia, que devem ser enfrentadas: fome, sobretudo para as pessoas sem emprego fixo, violência, o surgimento de usuários especuladores (que são a verdadeira peste do futuro social, delinquentes desumanizados), etc.»

Da recente carta do Papa Francisco ao presidente do Comité Pan-americano de Juízas e Juízes pelos Direitos Sociais, Roberto Andrés Gallardo.

Lay-off 2

Um dos raros cartazes do PS pós legalidade em 1974
Tente recuar no tempo.

Tente recuar ao tempo em que o Partido Socialista - criado na década de 70 por umas dezenas de intelectuais na República Federal da Alemanha - se apresentava em 1974 e queria ser um verdadeiro partido operário, de massas, como eram os partidos sociais-democratas e socialistas europeus que, por acaso, desconfiavam - como acontecia com Willy Brandt - precisamente da ausência desse elemento operário no PS. 

Apesar de tudo, pense que querer ser já é meio caminho andado para o ser. E tente imaginar que medidas tomaria um partido socialista operário nesta época de pandemia e de pré-recessão. Pense nos contornos do Lay-off aprovado e rectificado. 

E depois de pensar, já lá iremos.

[a fotografia do cartaz foi enviado hoje pela Associação Ephemera com o seguinte texto: "Este é um dos cartazes mais raros dos primeiros anos do PS na legalidade. O PS, saído da clandestinidade depois do 25 de Abril, tinha uma linguagem mais “esquerdista” do que o próprio PCP. Era o tempo do “PS Partido Marxista” (também há um cartaz), da Internacional hino do PS (há um disco), e do acordo de Frente Popular que tinha assinado no exílio com o PCP,  e só começou a mudar em 1975, com o conflito sobre a unicidade sindical e com o PREC. Esta representação do trabalho é puramente simbólica usando uma imagem já completamente anacrónica, com origem na iconografia laboral dos anos 30 e 40."]

Anacrónica, mas ainda assim poderosa.

A reacção da UE à crise é um desastre em curso

"São inúmeros os apelos para que os governos não olhem a esforços no combate aos efeitos económicos da crise sanitária. O apelo é sensato: não é durante as crises que os Estados devem poupar. Mas há um problema: sem financiamento monetário dos défices, ou sem transferências financeiras a partir do exterior, tudo o que gastarmos hoje teremos de pagar amanhã. Quanto mais generosos forem os Estados na protecção das pessoas e das empresas afectadas pelas medidas de combate ao vírus, maior será a restrição orçamental com que terão de viver no futuro.

Seriam necessárias três condições para evitar o colapso das economias mais frágeis: uma resposta rápida das autoridades; um volume de apoios públicos suficientemente elevado para proteger o emprego e a actividade económica; e a garantia de que, passado o período de emergência, as economias em causa teriam condições para pagar as dívidas entretanto contraídas e para respeitar os compromissos internacionais, sem dificuldades de maior.

A cada dia que passa há centenas de empresários em Portugal que optam por declarar falência ou reduzir de forma drástica a sua capacidade produtiva. Milhares de trabalhadores ficam sem emprego e/ou vêem os seus rendimentos cair de forma abrupta. A urgência de uma intervenção rápida e decisiva é evidente.

Mas o problema da UE no atual contexto não é apenas a lentidão das decisões. Nem sequer as mensagens equívocas das lideranças. A questão central é a incapacidade das instituições e das regras europeias em impedir que o aumento das dívidas públicas devido ao covid-19 se torne um problema colossal no futuro próximo para as economias mais frágeis.

As medidas lançadas pelo BCE e a eventual criação de dívida conjunta dos Estados ajudam a conter os custos futuros do combate à crise. Mas, por si só, não asseguram que os países periféricos estarão em condições de pagar essa dívida, cumprindo as regras orçamentais em vigor. Não sem custos económicos, sociais e políticos elevados.

Perante isto, qualquer governo responsável tem de ponderar bem cada euro gasto para proteger o emprego e a capacidade produtiva. O resultado disto são intervenções nacionais tímidas, que alimentam o cepticismo já instalado entre os investidores privados.

Neste momento, o BCE deveria anunciar o financiamento monetário dos défices públicos decorrentes do combate ao vírus. Em alternativa, as autoridades europeias deveriam comprometer-se com: 1) o financiamento dos Estados nacionais a custos muito reduzidos (através da emissão de dívida conjunta ou de outras soluções possíveis); 2) a alteração das regras orçamentais que hoje obrigam os Estados a reduções aceleradas das dívidas públicas; 3) a emissão de dívida pelas próprias instituições europeias, transferindo os fundos assim obtidos em função das necessidades nacionais; e 4) o lançamento de um plano ambicioso de retoma económica após a emergência sanitária.

Nenhuma daquelas alternativas se afigura provável. Cada dia a mais sem decisões convincentes é mais um passo para o desastre."

Excerto do meu texto de hoje no DN. O resto pode ser lido aqui.

Ci salviamo da soli


Aparentemente, é o que muitos italianos andam a dizer depois de queimarem a bandeira da UE, ao som do hino do seu país: salvamo-nos sozinhos, em português.

Diz que é uma tendência nas redes sociais, de resto alinhada com uma sondagem eurocéptica recente. Esta sondagem foi realizada antes da reunião do conselho europeu, onde as fracturas geradas pela zona euro foram, uma vez mais, expostas de forma bem sórdida.

Mesmo alguns dos mais entusiastas federalistas já chegaram, tarde e a más horas, à conclusão que se impunha, embora mantenham um resíduo de arrogância. Tem a palavra Yanis Varoufakis, em declarações ao Daily Telegraph: “Não creio que a UE seja capaz de fazer outra coisa que não seja fazer-nos mal. Opus-me ao Brexit, mas agora cheguei à conclusão que os britânicos fizeram o que estava certo pelas razões erradas.”

O povo inglês estava certo e por isso logo lhe agradecemos. Razões houve muitas, como sempre. Infelizmente, foi a direita que compreendeu e dirigiu o sentimento popular. A esquerda decidiu ir caçar segundos referendos. Em Itália, onde o europeísmo também contribuiu para reduzir a esquerda a uma ruína romana, serão as direitas a dirigir com maior probabilidade.

É que a política nacional tem horror ao vazio. E, reconheçamos, uma parte da chamada esquerda é hoje um vazio despovoado.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Vulnerabilidades: pensar um país frágil

«Há coisas que custa invocar quando a vida está tão convulsa. Dizem-me, não confirmei, que há prateleiras cheias de meios-sapatos nas nossas zonas onde esta indústria se localiza. Sempre foi estúpido montar sapatos onde antes se sabia fazer tudo, mandando agora vir de muito longe algumas partes que aqui se produziam. Há 35 anos estudei a indústria metalomecânica de Águeda e a das bicicletas em particular. Tratava-se de um caso notável de um “sistema produtivo local”: aberto, mas autocentrado em culturas técnicas e na organização, no próprio território, das inter-relações essenciais, que articulavam vários setores e ramos de atividade. Dez anos depois voltei lá. (...) Já não se produziam bicicletas, montavam-se bicicletas. É hoje claro para todos que, para além de estúpido, isto é perigoso.
(...) Há relações que têm de ser desenvolvidas num quadro preciso, fiável e articulado. Não sob o ímpeto de transações sem lugar nem rosto. Para que o mundo se organize todo assim, e não como se fosse plano. Não há economia sem quem a realiza nem sem aqueles a quem ela se destina, no momento da repartição e da geração de bem-estar. A economia usa os mercados, não é os mercados.
(...) Uma economia é um sistema de produção e de provisão de bem-estar. Não sendo uma simples plataforma de transações, a economia mede-se pelo valor que cria, pela estrutura produtiva que adota, pelas capacidades que desenvolve, pelo nível de autossuficiência que garante, pela dependência face ao exterior que evita. É sujeito e objeto da economia política. Deve haver planeamento, intervenção e organização públicas para satisfazer necessidades e servir a comunidade. É um lugar para fazer e para aprender. Não para se perder nas linhas abstratas de um mapa sem territórios. Aprendemos que é possível parar. Aprendamos que é possível e necessário decidir em nome do povo!»

Excertos do artigo de José Reis, hoje no Público, que merece ser lido na íntegra (aqui). A enunciação de um conjunto de princípios muito importante, para repensar efetivamente o futuro, depois do agora.

Já só vale a pena exigir o impossível


Políticos, comentadores e jornalistas, todos continuam a falar da emissão de eurobonds como se disso dependesse o sucesso do combate à crise.

Sejamos claros: o contributo fundamental das eurobonds (ou coronabonds, ou o nome que lhe quiserem dar) seria a redução dos custos de financiamento dos Estados e a garantia de que existiram compradores. No entanto, o gráfico acima mostra que Portugal está a pagar juros historicamente baixos, não havendo sinais de ausência compradores para a dívida nacional.

A emissão de dívida conjunta poderia ser importante caso o BCE, por algum motivo, deixasse de poder fazer o que tem feito. Até lá, a discussão sobre os eurobonds apenas nos desvia do que é essencial: o principal problema que os países com economias mais frágeis enfrentam é a perspectiva de um aumento significativo da dívida pública (e, por arrasto, da dívida externa).

Sejam quais forem os custos, a emissão de obrigações em conjunto não reduz os montantes em dívida – aumenta-os. A forma mais eficaz e razoável de lidar com este problema seria o financiamento directo dos défices públicos através de emissão monetária pelo BCE. Outras economias podem fazer isso. Na UE, tal opção está expressamente proibida pelos tratados.

A única forma que hoje vejo de contornar esta dificuldade seria combinar a garantia de juros muito baixos durante muitos anos, com a alteração das regras orçamentais (em especial a regra sobre o ritmo de redução da dívida) e transferências orçamentais volumosas para as economias mais afectadas. A probabilidade de isto acontecer não é muito diferente de ter o BCE a desrespeitar a proibição de financiamento monetário dos Estados.

A ser assim, o que nos espera é mais uma década de austeridade, com cortes da despesa e aumento de impostos. Os investidores privados sabem disso e pensarão duas vezes antes de pôr o seu dinheiro em países como o nosso. O governo sabe disto e limitará o volume de apoios ao emprego e à actividade produtiva. O resultado será a rápida destruição da economia nacional, seguida de uma retoma lenta e dolorosa.

Deixem-se, pois, de falar de eurobonds e coronabonds. Este é um daqueles momentos em que a única forma de realismo é exigir o impossível.

Três notas sobre a economia política disto tudo


1. Lembram-se da economia do pingo (trickle-down economics), aquela que dizia que os ganhos dos ricos iriam mais cedo ou mais tarde beneficiar os pobres? Pouco importa, é uma ideia que já foi há muito para o caixote do lixo da história intelectual, dados os estudos económicos sobre a desigualdade. Entretanto, a economia política do pingo pode ter, isso sim, uma aplicação na transmissão da covid-19: o vírus parece descer em cascata pela pirâmide social abaixo, dos globalistas, também designados de passageiros frequentes, geralmente mais ricos, para os enraizados, os que não saem do mesmo sítio, geralmente mais pobres.

2. Tenho-me lembrado da fórmula famosa de Mervyn King, quando era governador do Banco de Inglaterra, durante a crise de 2007-2008. Era mais ou menos assim: os bancos podem viver na escala internacional, mas vêm morrer na nacional. Hoje, sabemos que também as pessoas vivem ou morrem onde estão os soberanos e também em função da qualidade e da quantidade da resposta pública coordenada. Como até o macroeconomicamente perigoso Centeno do sininho reconheceu relutantemente, a acção está nos Estados. No fundo, são as velhas questões sobre poder e obediência, sobre soberania e legitimidade nacionais, que emergem.

3. Será o fim do fim da história? Não tenho a certeza, embora esta seja uma das questões que mais me interessa, a tal sombra de Fukuyama. Sei que esta crise apanhou demasiada esquerda num estado político lamentável, minada por hábitos intelectuais globalistas e identitários, fazendo do respeito por regras estúpidas hábito de vida. Uma esquerda que está reduzida na UE a apelos ao bom senso das elites, em nome da salvação de uma distopia monetária que em parte a destruiu. Já é tempo de reconhecer o óbvio: o futuro não deverá ser pós-nacional.

domingo, 29 de março de 2020

Inquérito sobre o impacto da epidemia na vida dos portugueses


Promovido pelo ICS/ISCTE e com o apoio do COLABOR, está em curso um inquérito (disponível aqui) para começar a perceber os impactos da pandemia na vida dos portugueses. O objetivo do estudo é essencialmente o de contribuir para um «melhor conhecimento da situação que estamos a viver e produzir informação útil para o desenvolvimento de políticas públicas adequadas».

Contribuam, preenchendo o questionário (demora apenas alguns minutos), e partilhem junto dos vossos contactos. Quanto maior o número de respostas, e mais diversificado o perfil dos inquiridos, melhor se poderão conhecer os impactos da epidemia e, com base nessa informação, melhorar as respostas de política pública.

O megapacote financeiro dos EUA e as fraturas do sistema

Dois biliões de dólares (1,85 biliões de euros), ou cerca de 10% do PIB dos EUA. É esta a dimensão do Coronavirus Aid, Relief and Economic Security (CARES) Act, o pacote de estímulos à economia que resultou do acordo alcançado no Congresso entre democratas e republicanos. O acordo, terminado na madrugada desta quarta-feira, traduz-se no maior plano de estímulos orçamentais da história moderna dos EUA. Mas em que consiste exatamente?

O Economic Policy Intitute (EPI) destaca as principais medidas: 450 mil milhões de dólares destinados aos resgates a empresas, 350 mil milhões destinados ao apoio às pequenas e médias empresas, 300 mil milhões para as famílias (sendo proposto que o Estado transfira diretamente cheques de 1200 dólares por adulto e 500 dólares por criança, com o objetivo de assegurar o rendimento de todos os cidadãos e manter os níveis de consumo), 250 mil milhões para expandir o alcance do subsídio de desemprego, 100 mil milhões para reforçar os hospitais e a sua capacidade de resposta à crise de saúde pública e ainda 150 mil milhões extraordinários para os Estados e autoridades locais.

É um acordo histórico que supera o American Recovery and Reivestment Act, aprovado pelo governo de Barack Obama em 2009 e avaliado em 787 mil milhões de dólares. No entanto, o tamanho conta muito e há dúvidas sobre se este pacote será suficiente para responder à crise provocada pela pandemia. Josh Bivens, investigador do EPI, defendeu recentemente que o estímulo orçamental teria de ser de pelo menos 2,1 biliões, face à contração prevista do produto. J.W. Mason, professor de economia da City University of New York (CUNY), foi mais longe e estimou que teria de andar à volta de 3 biliões de dólares (cerca de 14% do PIB), bastante mais do que o anunciado. O desemprego, de resto, já está a disparar, tendo registado o maior aumento semanal dos últimos 50 anos.

Josh Bivens e Heidi Shierholz explicam que a estimativa feita na semana passada pressupunha que a maior parte do estímulo fosse direcionado para os trabalhadores e as famílias, o que não acontece na proposta atual. Uma das maiores fatias do bolo é a dos resgates a grandes empresas, sem garantia de manutenção de todos os postos de trabalho e do pagamento dos salários e sem que esteja previsto que o Estado adquira participação nas empresas resgatadas. Para estas empresas, é o melhor de dois mundos: socializam os prejuízos sem terem de partilhar os lucros. What a wonderful world.

Além disso, as medidas de concessão de crédito às empresas acentuam a tendência de acumulação de dívida privada nos últimos anos. Nos EUA, as empresas não financeiras viram o seu endividamento total duplicar de 3,2 biliões de dólares em 2007 para 6,6 biliões em 2019. Joseph Baines e Sandy Hager, investigadores da Kings College e da City University (Londres), estudaram esta evolução, ligando-a à gradual reorientação da atividade das empresas nas últimas décadas, em que a distribuição de dividendos aos acionistas passou a ser o foco principal.

Para as grandes empresas, que dominam os mercados onde operam, isto tem sido feito à custa das despesas de capital – as empresas canalizam boa parte da receita para a recompra das próprias ações, aumentam artificialmente o seu valor e mantêm margens de lucro elevadas. As pequenas e médias empresas, contudo, precisam das despesas de capital para se manterem competitivas, pelo que têm visto os lucros diminuir, compensando-o com o recurso a crédito. O risco de uma vaga de falências que envie ondas de choque ao resto da economia é enorme.

Robert Pollin, professor de economia e co-diretor do Political Economy Research Institute na Universidade de Amherst, lembra que “ao longo da sua presidência e até à última semana, o mantra de Trump sobre a economia era que as condições nunca tinham sido tão boas.” Para Pollin, “isto foi sempre uma observação absurda”, já que a aparência de prosperidade se devia a uma conjugação da especulação bolsista com os cortes de impostos e medidas de desregulação para o setor empresarial. O pacote de estímulos de Trump é um reflexo disso mesmo: excessivamente concentrado no resgate de Wall Street, faz pouco para encarar a profunda crise do sistema de saúde – 1/4 da população (mais de 80 milhões de pessoas) adia cuidados de saúde devido aos custos excessivos e há 45 mil mortes todos os anos por ausência de cobertura de seguro – e negligencia a crescente desigualdade de rendimentos e o combate às alterações climáticas, preferindo manter os apoios aos combustíveis fósseis. Quando são precisas mudanças, Trump oferece mais do mesmo.

O que parece certo é que os dias de crescimento económico sob o governo Republicano estão a chegar ao fim. Até há poucas semanas, quase todos garantiam que desta vez era diferente e que a exuberância dos mercados financeiros era racional, pouco antes do colapso histórico dos índices bolsistas. O vírus está a estilhaçar a ilusão de prosperidade e a pôr a nu as fragilidades do regime de acumulação.

Artigo publicado no site Esquerda.Net a 28.03.2020.

sábado, 28 de março de 2020

A propósito de "disgusting"...


... nunca se esqueçam dos seus embaixadores nacionais. De todos aqueles, que nos mais destacados lugares da nossa hierarquia política, pugnaram por ideias que - vá se lá saber como - acabaram por os beneficiar pessoal e individualmente.

Hoje o grande embaixador é... Manuel Dias Loureiro:
Há um provérbio de que gosto muito, que diz: Quando o vento sopra forte, alguns abrigam-se, outros constroem moinhos. Não há dúvida de que o vento sopra forte. Sopra forte no mundo e sopra forte em Portugal. No caso do nosso país, para não falar de outros aspectos, sopra forte nas contas públicas, que só com enorme esforço estão a ser controladas; Sopra forte no sobreendividamento das famílias, das empresas e do Estado; Sopra forte na dimensão assustadora do nosso défice corrente que, na União Europeia, só encontra paralelo na Itália do Sul e no Leste da Alemanha e que está muito acima do défice de países que não têm, de momento, qualquer hipótese de sonhar com níveis de vida desenvolvidos. Com uma enorme diferença: enquanto o Norte de Itália e o Ocidente da Alemanha sempre hão-de pagar a factura dos seus concidadãos do Sul e do Oeste, respectivamente, connosco não vai passar-se nada de semelhante; Sopra forte, para abreviar, quando temos de reconhecer - por mim, com tristeza - que não fomos capazes de aproveitar conjunturas favoráveis que, servidas com esforço próprio, estratégias correctas, sentido de inovação e de risco, poderiam ter significado progresso consistente.(...)
O Orador: - Há, por isso, uma questão que nos interpela a todos, que interpela a nossa geração: vamos querer e ser capazes de, no mais curto espaço de tempo, atingir, pelo menos, os níveis médios de desenvolvimento da União Europeia, ou não? Claro que é difícil, claro que o vento sopra forte. E nós, a geração que nós somos, vamos abrigar-nos ou vamos construir moinhos? Vamos sucumbir ao medo, acomodar-nos no "deixa andar", ou vamos ousar fazer? Cada um dará a sua resposta.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Muito bem!
(debate sobre a proposta de Código do Trabalho, da maioria PSD/CDS, a 16/1/2003)

Força, força companheiro Vasco, perdão, companheiro Bessa

E, se Daniel Bessa viesse afirmar que “[e]m tempos de crises como esta, em que as economias colapsam, mais do que de crédito (como as empresas), os Estados precisam de dinheiro. E servem-se dos bancos centrais para o emitir”, o que diríamos nós?

Nós seremos a muralha de aço
Nós seremos a muralha de aço

Há quem queira fazer marcha atrás
Do dia a dia


Produção nacional

“A Europa vai ter de reinventar a sua organização produtiva, porque não vai poder voltar a correr o risco de ficar neste quadro de disrupção”, disse, durante António Costa na visi-ta, em Famalicão, ao Centro Tecnológico das Indústrias do Têxtil e do Vestuário (Citeve).

Por que não começar no país?

Aos poucos, e em estado de necessidade, começa a produzir-se cá aquilo que, alegremente e com a ajuda do Estado, foi deslocalizado, em prol de uma ideia idiota de que Portugal seria feliz sendo um país de serviços, mas em prejuízo do emprego nacional, afectando a sustentabilidade das contas externas e o investimento futuro, e privilegiando exageradamente actividades económicas que, de um momento para o outro podem se esvaziar, como aconteceu agora com o turismo.

Não há números e terá uma dimensão diminuta. E não se fez nenhum  estudo de viabilidade económica. Mas percebeu-se que, caso se queira, caso houvesse essa visão, o Estado poderia dinamizar esse esforço de produção nacional.

Até os (ultra)liberais têm direito a contar com o Estado

O problema dos (ultra)liberais que hoje vêm pedir o apoio público não é o que agora fazem. Como contribuintes têm todo o direito de esperar que o Estado aja como rede de segurança colectiva em momentos de crise.

O problema dos (ultra)liberais é que depois da crise voltarão a falar do Estado como um pária. Continuarão a tentar convencer-nos que a nossa sociedade não precisa de um serviço público de saúde robusto, nem de um sistema de educação público e universal bem organizado, nem de agências públicas dotadas de recursos suficientes e de qualidade.

Serão os primeiros a queixar-se da "carga fiscal" quando for necessário pagar os custos das medidas que hoje precisamos que o Estado tome - e que para eles serão sempre insuficientes.

O futuro não deve ser pós-nacional

Ao assistir às justas declarações de António Costa sobre mais uma provocatoriamente intrusiva posição do governo holandês, consolidei duas convicções: em primeiro lugar, a maioria dos social-democratas europeus passa a nossa desgraçada vida a pedir às relações internacionais um tipo de solidariedade que só as relações nacionais lhes podem dar; em segundo lugar, arranjos excessivamente supranacionais, conformes à expansão das forças de mercado, são uma fonte de inimizades entre os povos.

É claro que não se obtém na escala europeia aquilo que se perdeu na escala nacional. Pelo contrário, a escala da UE, em geral, e do Euro, em particular, tem sido a melhor forma de minar qualquer social-democracia digna de registo.

Quando no outro dia vi António Costa a defender, em entrevista ao Público, que os países de leste crescem mais porque não têm o constrangimento do Euro, percebi que há factos que começam a ser digeridos no topo. Temo que seja tarde demais. Isto não vai acabar espontaneamente. Mais facilmente acabará a social-democracia europeia, como aliás se vê.

Entretanto, tenho-me lembrado, vá-se lá perceber porquê, de um muito recente livro por traduzir, Why Nationalism, da autoria da filósofa política e ex-Ministra trabalhista israelita Yael Tamir.

Tamir defende que uma ideia institucionalizada de comunidade nacional continua a ser fundamental para que as relações de fraternidade recíproca com impactos redistributivos possam florescer, sendo as classes populares as que têm melhores razões para não esquecer esta hipótese, ao contrário de elites globalistas, que desprezam os laços geradores de estruturas de direitos e obrigações potencialmente mais igualitárias e legítimas.

No fundo, a pátria é o único bem para aquele que nada tem, como assinalava o socialista Jean Jaurés entre o final do século XIX e o início do século XX. Para os mais ricos, pode não ser bem assim. A social-democracia europeia esqueceu-se desta ideia fundamental entre o final do século XX e o início do século XXI. Pagou caro. Pagámos todos caro.

Hoje, temos de novo boas razões para falar disto. E reparem que defender uma variante de nacionalismo não é, como aliás argumenta Tamir, incompatível com a cooperação internacional, antes pelo contrário. Reconhece-se melhor que todos os povos têm o mesmo direito à autodeterminação institucional, a definir as suas regras nos seus territórios, um sentimento universalizável, como já se viu na longa luta contra a alternativa – o império, mesmo que liberal.

Trata-se também de reconhecer a necessidade da fronteira, já que sem ela não existe comunidade, nem responsabilização democrática, mas também a sua plasticidade, em função das prioridades colectivamente definidas. Fluxos há muitos e formas de os controlar também. Só há, por exemplo, política de acolhimento se existir fronteira, com critérios, idealmente resultantes de deliberação democrática, sobre quem entra e porquê. Por exemplo, esteve muito bem o governo desta velha nação ao decidir acolher crianças sírias, fugidas do estatocídio aí cometido, sendo desgraçadamente um dos poucos países europeus a fazê-lo.

De resto, um mundo menos globalizado – menos integração, melhor integração – é um mundo mais fácil de pilotar económica e socialmente, lição que se aprende com economistas como Keynes, o de uma razoável auto-suficiência nacional ou com o também anti-hayekiano Myrdal, social-democrata sueco que pugnou por um nacionalismo são. Um mundo com outras economias, mais centradas nacionalmente, será um mundo mais estável e plural.

Não sabemos o que vai acontecer, mas sabemos que tudo começa com boas questões, como a que Nuno Aguiar coloca na Exame: um mundo mais desglobalizado depois disto? Insisto que temos de responder afirmativamente. A história é novidade, mas também pode ser boa recorrência...

sexta-feira, 27 de março de 2020

O tempo e os contextos: as duas fases de contaminação pela Covid na UE

1. O alastrar da Covid-19 na União Europeia (UE28) não ocorreu ao mesmo tempo em todos os Estados-membros, devendo ser assinaladas duas fases distintas de contaminação. A primeira registou-se entre 24 janeiro e 4 fevereiro (12 dias), atingindo a França, a Alemanha, a Finlândia, a Itália, o Reino Unido, a Suécia, a Espanha e a Bélgica. A segunda ocorreu depois de uma sequência de 20 dias (5 a 24 de fevereiro) em que nenhum novo Estado-membro foi afetado, iniciando-se a partir de então a contaminação dos restantes, entre 25 de fevereiro e 9 de março (14 dias).


2. Este desfasamento temporal parece estar a contribuir, entre outros fatores, para um impacto distinto da epidemia nos dois grupos de países, em termos de casos confirmados e de letalidade. De facto, representando cerca de 68% da população da UE28, os Estados-membros da Fase 1 perfazem cerca de 89% dos casos confirmados e cerca de 96% do total de mortes (até 24 de março). Valores que apontam para um rácio de 52 casos confirmados por 100 mil habitantes (15 por 100 mil nos países da Fase 2) e para uma Taxa de Letalidade (percentagem de mortes no total de confirmados) a rondar os 6,4% (valor que desce para 2,0% no grupo de países que integram a segunda fase de contaminação).


3. Claro que, tendo o início do contágio ocorrido há mais tempo nos países que integram a Fase 1, é expectável que estes apresentem, no seu conjunto, indicadores de impacto mais severos a 24 de março. Contudo, se procedermos a uma comparação dos primeiros 21 dias de aceleração do ritmo de contágio nos dois casos (a comparação possível à data recente), contados a partir do momento em que se atinge o patamar dos 100 infetados (que é sensivelmente quando a dinâmica de crescimento exponencial tem início), continuamos a registar diferenças substantivas entre estes dois grupos de países da UE28.


4. Em termos de infetados, se numa fase inicial as curvas dos Estados-membros da Fase 1 e da Fase 2 são coincidentes, a partir de certo momento (13º dia) o conjunto de países afetados na fase inicial regista um crescimento exponencial mais expressivo. Mesmo quando, em termos de rácio de infetados pela população residente, os países da Fase 2 apontam para níveis de contaminação superiores (sugerindo que estes países, por se confrontarem mais tarde com a epidemia, puderam, no seu conjunto, reagir de outro modo e intensificar de forma mais atempada a realização de testes). O que terá contribuído, a par da adoção de medidas de contenção mais cedo, face aos países da Fase 1, para uma Taxa de Letalidade mais reduzida, no caso dos países que integram a Fase 2.

5. Significa isto que, muito provavelmente, o desfasamento temporal entre os dois momentos de contaminação permitiu aos países da Fase 2, no seu conjunto, registar uma curva da Covid-19 um pouco mais achatada, que favorece a capacidade de resposta dos sistemas de saúde e que, desse modo, contribui para uma menor letalidade da epidemia. Ou seja, perante a evidência trágica do potencial de contaminação e letalidade do vírus em países afetados mais cedo (Itália e Espanha), os países da segunda fase tiveram a oportunidade de reagir melhor, tanto ao nível da resposta das autoridades públicas (com a adoção mais atempada de medidas de contenção), como ao nível dos comportamentos individuais e coletivos perante a ameaça, inicialmente desconhecida e incerta nos seus impactos. Como diz o povo, e para terrível infortúnio dos países da Fase 1 mais atingidos, «candeia que vai à frente ilumina duas vezes».

6. É também por tudo isto que são profundamente estúpidas e de facto «repugnantes», como referiu oportunamente António Costa, as declarações do ministro das Finanças holandês Wopke Hoekstra - pelos vistos uma espécie de aprendiz de Bolsonaro europeu - que sugeriu que a Comissão Europeia «devia investigar países, como Espanha, que afirmam não ter margem orçamental para lidar com os efeitos da crise provocada pelo novo coronavírus». Quis o acaso, e só o acaso, que não calhasse ao seu país encontrar-se entre os primeiros a ser contaminados pelo vírus, podendo assim beneficiar, em tempo, da aprendizagem dramática que os primeiros países afetados tiveram que fazer. Aprendizagem pela qual deveria, para além do sentido de solidariedade, estar profundamente grato.

Sobre o novo decreto-lei relativo ao lay-off 1


Fonte: Instituto da Segurança Social

Ontem, foi publicado em Diário da República o novo diploma que vem substituir a Portaria n.º 71-A/2020.

Comece-se por uma boa notícia: apesar do lay-off ser actualmente responsabilidade do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, o financiamento desta medida não recairá sobre a Segurança Social, mas sobre o Orçamento de Estado. Resta saber quando.

Depois, há aspetos menos positivos.

Logo no seu preâmbulo, o decreto-lei anuncia que o objectivo das novas disposições “apoiar a manutenção dos postos de trabalho e mitigar situações de crise empresarial.”
Louva-se a ideia de “apoiar a manutenção”, mas o diploma assume que não se pretende manter os postos de trabalho (sobre essa questão lá voltaremos). Trata-se, sim, de uma medida que, mitigando os efeitos da crise gerada, visa apoiar as empresas. 
O Governo poderia ter feito recurso a diversas medidas de apoio às empresas. Mas optou pelo lay-off. Porquê? Segundo o  Governo porque a
“redução temporária do período normal de trabalho ou suspensão do contrato de trabalho (...) tem demonstrado ao longo da história ser um instrumento robusto para ajudar a responder à situações de crise como a que o País atravessa”.
Ora, isso não é verdade.

Como se observa no gráfico, o lay-off não tem sido o instrumento eficaz para impedir o desemprego em situações recessivas. Não só abrange um número diminuto de empresas e trabalhadores, como tem sido pouco usado em conjunturas recessivas. A figura lay-off sofreu uma quebra da sua utilização e nem impediu aquilo que se verificou: um recurso maciço ao despedimento colectivo e ao despedimento em geral.

Veja-se o caso de 2009/10.
Note-se que, mesmo em 2009, primeiro ano da crise internacional em que se fez sentir a subida do desemprego nos centros de emprego, apenas 423 empresas – existem mais 300 mil – recorreram ao lay-off, abrangendo no máximo 9788 trabalhadores. Nesse ano de 2009, o desemprego apoiado pela Segurança Social subiu de 454,5 mil para 547,5 mil (mais 92 mil trabalhadores). E em 2010, o desemprego apoiado pela Segurança Social atingiu 547,5 mil para 582,6 mil (mais 35 mil pessoas). Mas apenas recorreram ao lay-off cerca de 266 empresas, abrangendo entre 1,3 mil e 2,3 mil pessoas.

Veja-se o caso de 2011/12.
Houve 550 empresas que recorreram ao lay-off envolvendo cerca de 4 mil trabalhadores. Mas o desemprego apoiado pela Segurança Social atingiu o seu pico nesse ano. Subiu de 553,2 mil para 638,3 mil (mais 85 mil pessoas). Nunca esquecer que o desemprego em sentido lato abrangeu 1,4 milhões de pessoas!

Não, o lay-off  não tem demonstrado ao longo da história ser um instrumento robusto para ajudar a responder à situações de crise como a que o País atravessa”

E, nesse caso, o que acontecerá a seguir?

A única União na Europa é a dos mercados

“Um Ministro das Finanças alemão é um Ministro das Finanças alemão, a filiação partidária não tem qualquer papel.” 
Olaf Scholtz, Ministro das Finanças da Alemanha, SPD, aquando da sua indigitação

O verniz estalou na reunião do Conselho Europeu. A reunião do Eurogrupo anterior terminou em impasse. A reunião do Conselho reforçou-o, na medida em que as posições de parte a parte foram muito mais públicas e significativas.

Começando pelo conteúdo: as propostas em cima da mesa eram a emissão de Eurobonds versus empréstimos do Mecanismo Europeu de Estabilidade com a respectiva condicionalidade (nome eurocrata para programas de austeridade). Os termos do confronto são já de si deprimentes: de um lado, os Corona Bonds, uma resposta comum mínima e provisória, cujas vantagens em relação ao programa PEPP anunciado pelo BCE seriam sobretudo potenciais: 1) a sua futura transmutação em eurobonds permanentes ou, mais interessante e menos provável, a possibilidade de o BCE os comprar e depois apagar do balanço. Do outro, a proposta de regresso aos programas punitivos da crise anterior, acompanhada da habitual conversa dos virtuosos e dos viciosos.

Completamente fora do debate esteve a hipótese, defendida por um número crescente de economistas pela Europa fora, de responder a uma crise absolutamente extraordinária com financiamento monetário. Como aqui foi explicado, financiamento monetário significa a emissão de moeda que não tem como contrapartida a transferência de ativos para o balanço do Banco Central ou, para falar um pouco mais em português, o financiamento que não assenta na contração de uma dívida. Aparentemente, mesmo os Governos mais sensatos partiram para esta discussão dando essa hipótese como indesejável ou inviável.

O resto está nos jornais. A intransigência da Holanda e da Alemanha nesta matéria é lendária, seja na versão burgessa dos responsáveis holandeses, seja na versão mais recatada de Merkel, própria de quem sabe que manda. A versão holandesa tem a vantagem de ser mais transparente, mostrando uma mistura de racismo com orientação ideológica. Mas a versão do Ministro das Finanças alemão é igualmente eloquente. Sou um Ministro das Finanças alemão e vocês sabem o que isso quer dizer. Alemães e Holandeses sabem que já têm o que querem da Europa e agora é mexer o menos possível.


A eliminação das políticas cambiais nacionais, a limitação do papel dos Estados nas políticas orçamentais e industriais, deixaram as economias periféricas expostas para a conquista. A Alemanha e a Holanda acumulam, ano após ano, excedentes fabulosos com os quais nem sonhavam antes da União Europeia e, sobretudo do Euro. O Euro é para as economias de centro uma espécie de desvalorização cambial permanente. Ninguém ganhou mais com a integração do que estes países. E ninguém perdeu mais do que os países da periferia. O Euro não impede guerras cambiais. O Euro é uma guerra cambial. Que a periferia perde todos os dias.

Gostei sinceramente de ouvir António Costa na reacção a esta reunião e, sobretudo, às declarações do Ministro das Finanças Holandês. São só palavras, mas as palavras são importantes. Quem não se sente não é filho de boa gente, diz o povo e tem razão. E quem quiser tomar decisões corajosas para defender o país, tem de mobilizar um sentido de dignidade nacional e popular que tem andado tão por baixo. Resta a famosa questão: que fazer?

António Costa disse que o Ministro das Finanças holandês não percebeu nada do que é a União Europeia. Temo, no entanto, que Hoekstra, tal como Olaf Scholtz, perceba muito bem e saiba muito bem qual é o seu papel. Pelo contrário, António Costa fala do “espírito da União Europeia”, invocando uma visão das relações entre Estados e povos que tem muito pouco a ver com o que é esta União Europeia. Claro que António Costa pode e deve tentar mudar a União Europeia que temos. Mas sem ilusões sobre o que temos.

Para daqui a duas semanas, ficou agendada uma reunião final sobre esta matéria, mas a de hoje também era final. Os Governos alemão e holandês sabem o que têm de fazer na próxima reunião final e em todas as que se lhe seguirem: nada. A intransigência dá votos lá em casa e quanto à diplomacia, se forem espertos, aprendem com Angela Merkel, dizem menos parvoíces em público e substituem-nas por qualquer coisa como “Estamos muito empenhados em construir uma resposta solidária a esta terrível crise.” E continuam a enrolar.

O que vai então fazer António Costa e o grupo dos 9 se a intransigência alemã se mantiver? Não pode acontecer o que sempre aconteceu, que é uma de duas coisas: um compromisso assente em concessões milimétricas da Alemanha ou uma desistência sob protesto dos países que se batem por alterações mínimas. Já basta a proposta inicial ser tão fraquinha.

Se a obstinação alemã se mantiver, os 9 países devem anunciar que tomarão, de forma coordenada e solidária, todas as medidas necessárias para proteger as suas populações e economias, incluindo as que eventualmente violem as normas do mercado interno e outras regras da União, suspensas ou não-suspensas e incluindo, claro, a reestruturação das dívidas que sejam ou se tornem agora insustentáveis, impondo perdas a todos os credores, incluindo os institucionais. E já agora, proteger as suas receitas fiscais do autêntico roubo organizado de outras jurisdições europeias, como por exemplo… a Holanda

Enquanto quem manda na UE sentir que pode ter sol na eira e chuva no nabal, nada mudará. Não sei se vamos a tempo mas, se formos, o tempo é agora.

Duas visões

A chantagem da CIP:
"As empresas não querem ter de recorrer ao desemprego. Mas o Governo tem de tomar consciência de que a melhor forma de evitar uma subida em flecha do desemprego é salvar as empresas neste período, mais ou menos longo, mas previsivelmente limitado" (Artigo de opinião de António Saraiva, presidente da CIP, Público, 27/3/2020).

No terreno:
"São já às dezenas e chegam de todo o país, da indústria à restauração, dos transportes ao sector social, passando pelas lojas e hotelaria. Mostram como as leis laborais estão a ser violadas todos os dias e vão antecipando a imagem de um mercado de trabalho debilitado por uma crise que não tem ainda fim à vista. À caixa de correio que o PCP criou na passada semana para receber denúncias de atentados a direitos dos trabalhadores (denuncia@pcp.pt) têm chegado dezenas de casos diariamente, alguns sobre centenas de trabalhadores da mesma empresa. “No essencial, 90% são questões laborais, seja despedimentos, não renovação de contratos, férias força- das, layoff com perda de rendimentos, mudança de local de trabalho”, descreve ao PÚBLICO João Frazão, da comissão política do comité central do PCP. A outra fatia corresponde a denúncias de especulação de preços ou sobre insuficiências nos serviços públicos como centros de saúde fechados, acrescenta." (Público, 27/3/2020)

Covid-19 e financiamento monetário: austeritários mudam de campo

O novo programa de compra de ativos, o chamado Pandemic Emergency Purchase Programme (PEPP), anunciado a 18 de Março, criado pelo BCE para financiar despesas dos países da moeda única com a pandemia exclui liminarmente a possibilidade de financiamento monetário, ou seja, a criação de moeda a partir do nada, ou melhor, a criação de moeda assente apenas na suficiente capacidade do soberano emissor para o fazer.

Cinco dias depois, Francesco Giavazzi vem defender que a zona euro, neste contexto, deve financiar-se com uma conjunta emissão obrigacionista, ou de muito longa maturidade, ou não amortizável. Ou seja, que a zona euro, para fazer face a esta pandemia, deve usar financiamento monetário.

Mas quem é, afinal, Francesco Giavazzi? É tão só um dos pais da hipótese da austeridade expansionista, hipótese que mostrou ser falsa, mas que, entretanto deu cobertura pseudo-científica às instituições europeias e a quem nelas de facto manda para, na sequência da crise de 2007/2008 e da sua declinação europeia de 2010/11, imporem aos países do sul da zona euro um programa de ‘ajustamento’ com pobres resultados e de uma dureza talvez sem precedentes.

O que dizer? Voltarei a este assunto. Por hoje, a minha conclusão é que there is a crack in everything / that's how the light gets in, ou, em português, há uma falha em tudo / é assim que a luz entra.


quinta-feira, 26 de março de 2020

Lay-off automático e... universal

Ainda se terá de esperar pelo novo diploma.

Mas ao final do Conselho de Ministros de hoje, o ministro da Economia Pedro Siza Vieira  - mais uma vez ultrapassando a ministra titular da Segurança Social  - sintetizou as alterações ao regime do lay-off que o tornam não só automático como quase universal. E tudo à custa dos dinheiros da Segurança Social

Disse o ministro: 

"Passam a ter acesso a este regime, todos os estabelecimentos ou todas as actividades que se tenham visto encerradas em função das medidas adoptadas seja por decisões das autoridades de saúde seja por força do decreto do governo que executa o Estado de Emergência decretado pelo Presidente da República."

Interpretação: Ora, o universo empresarial visado com o decreto do Estado de Emergência é claramente responsabilidade do Estado e, como tal, deve ser assumida pelo Estado e não pelo regime de lay-off, pago pelo Orçamento da Segurança Social. Espera-se que o Governo não se esqueça disso.    
"É também clarificado que, no caso de empresas que possam ter paralisado total ou parcialmente, seja em razão de uma quebra de fornecimentos, seja em razão de uma quebra de encomendas ou de reservas, possam ter direito de beneficiar imediatamente desta medida."

Interpretação: Ao que parece, deixa de ser exigido que se estabeleça qualquer relação causal entre a situação gerada pelo Covid19 e a situação das empresas. Basta que se registe uma quebra de fornecimentos, de encomendas ou de reservas (note-se a preocupação especial com o turismo) e lá vai a Segurança Social acudir. Ora, uma quebra é uma redução - pode ser uma diinuição menor - que não obriga à suspensão dos contratos de trabalho. A auto-estrada está, ao que parece, aberta para  Segurança Social financiar indirectamente as empresas. Trata-se nitidamente de um  subsídio. Este tipo de encargo deveria ser, mais uma vez, da responsabilidade do Estado.    

"Neste último caso, aquilo que se esclarece é que uma empresa que projecte que nos próximos tempos ter uma redução de mais de 40% da sua capacidade produtiva ou da sua capacidade de ocupação em função do cancelamento de encomendas ou de reservas pode imediatamente e sem outras formalidades, aceder a este benefício"

Interpretação: Mais uma razão! Ao que tudo indica, não basta que a empresa tenha sofrido realmente uma quebra de encomendas ou reservas. Baste que projecte ter uma quebra superior a 40%. E se a projecção falhar? Devolve os apoios? E quem vai conferir esse eventual erro de previsão? E qual será a empresa que não vai prever uma quebra superior a 40%? Era mais claro dizer que o Estado apoiasse todas as empresas, porque é isso que vai acontecer. Pior: vai apoiar aquelas empresas que estão melhor apetrechadas para pedir estes apoios. Ou seja, muito possivelmente aquelas que não precisam. E os apoios serão concedidos "imediatamente e sem outras formalidades" através dos dinheiros da Segurança Social. 

"Finalmente, para as empresas cujo encerramento não foi determinado administrativamente ou que não tenham ainda uma quebra das encomendas futuras, poderão também aceder a este mecanismo extraordinário se tiverem num determinado período de 30 dias uma quebra de facturação relativamente à média dos 2 meses anteriores a esse período ou do período homólogo do ano trasacto."

Interpretação: Se ainda faltassem empresas não abrangidas pelas anteriores disposições, eis que se prevê o alargamento a empresas que ainda nem sofram de quebra de encomendas ou reservas. Basta que a tenham tido "num determinado período de 30 dias" face à média dos 2 meses anteriores. Mas a que se refere esse período? Esperemos que o diploma esclareça. Mas duvida-se muito que o venha a fazer, porque as críticas à portaria em vigor surgiram por causa desse tipo de definições temporais. E o Governo quer agora escancarar os acessos sem quaisquer controlos.

Recorde-se que no periodo cavaquista, o Governo usou a Segurança Social para financiar a actividade do Estado - fosse através de apoios, de não financiamento dos encargos sociais, fosse até perdoando dívidas às empresas. No total, foram mil milhões de contos a valores de 1989. Hoje valeriam cerca de 13,5 mil milhões de euros. Algo que teria dado muito jeito para não afectar a sustentabilidade da Segurança Social.

Que um governo socialista tenha a coragem de ser diferente dos neoliberais. Que assuma os encargos extraordinários de uma época extraordinária e não patrocine um saque aos fundos da Segurança Social que supostamente devem servir para outros fins.
 

Guião para o absurdo


Sobre esta crise tem-se dito que teve a capacidade de transformar muitos políticos e economistas conservadores em keynesianos. Mas não se trata apenas disso: tornou-os num tipo muito específico de keynesianos – aqueles que rejeitam o agente representativo e a maximização intertemporal do consumo como aspetos fundacionais do pensamento económico.

Chegado o momento de crise, tornam-se frequentes os raciocínios baseados na propensão marginal ao consumo e nos efeitos multiplicadores no seio da economia. Todos estes efeitos são baseados em efeitos de rendimento de injeção/subtração de procura do circuito económico. Não nos efeitos de substituição em reação a choques no problema de maximização do consumidor.

Este é um movimento curioso, porque a macroeconomia dominante nos últimos 30 anos assume como patamar de legitimidade o facto de ser microfundada no comportamento otimizador de agentes representativos. Quem quer fazer modelação e ser respeitado tem de respeitar essa regra. Mas tudo isso colapsa quando se tem de explicar um raciocínio ou desenhar política económica: seria impossível convencer alguém explicando os mecanismos de um modelo de maximização intertemporal, porque eles soam absurdos. As limitações do instrumentalismo, enquanto guia metodológico que ignora a realidade das premissas enquanto enfatiza a capacidade de explicar factos estilizados, fica bem clara neste momento.

Imagine-se alguém que apenas tivesse estudado por livros de referência de macroeconomia para mestrado/doutoramentona maioria das instituições, como o livro de David Romer ou outro semelhante. Ou que teria a dizer sobre as medidas de resposta a esta crise? Pensemos só num pequeno exemplo.

Num modelo em que um agente representativo maximiza o seu consumo ao longo da vida, não há nenhum incentivo para alterar o seu padrão de consumo se considerar que está perante o um choque temporário como o que estamos a ultrapassar. Se o mercado de crédito for completo, não existindo restrições de liquidez, e um corte temporário no rendimento será compensado com recurso a crédito durante o período do choque, sem que isso afete a sua escolha de consumo a longo-prazo.

De igual modo, sem restrições de liquidez, qualquer transferência do Estado para os cidadãos não terá a capacidade de estimular o consumo privado no presente: como os consumidores maximizam o consumo ao longo da sua vida, o perfeito cálculo do futuro leva-os a saber que as transferências no presente serão compensadas por maiores taxas de imposto no futuro (num contexto em que a economia não está em pleno emprego tal não tem que ocorrer, mas o modelo assume que não existe desemprego involuntário).

A única forma de transferências para as famílias financiadas pelo Estado terem impacto no consumo presente passa por assumir que parte dos agentes têm restrições de liquidez. Ou seja, que não têm acesso ao crédito em momento de corte temporário de rendimento. O que, na realidade, são a maioria dos agentes. Quem é que pode, ou quer, contrair um crédito pessoal num momento de crise?

Imagine-se que este economista crente no agente representativo era convidado a comentar as respostas de política económica para enfrentar esta crise. O que poderia ele dizer? Algo como: “Devemos esperar uma subida pronunciada do crédito pessoal durante este período. O Estado deve assegurar que os bancos garantem liquidez à maioria dos agentes, o que prevenirá a sua necessidade de intervenção. A disponibilidade de crédito torna ineficaz e desnecessária as transferências socais do Estado. Mais disponibilidade de crédito ao consumo poupará recursos a todos nós”.

O verdadeiro guião para o absurdo.

Pode argumentar-se que eu não estou a ser honesto intelectualmente: na verdade, ninguém está a defender esta posição e, mesmo os economistas que ensinam e fazem modelação sustentada nestas proposições, reconhecem que não podem transpor a realidade estilizada dos seus modelos para analisarem uma crise real. Mas isso conduz-nos a uma outra questão: que sentido faz que uma área de conhecimento insista em basear os seus modelos em proposições que não têm adesão na realidade e em que os choques e às reações de política económica se propagam por mecanismos implausíveis? E que sentido faz que, quando têm de analisar crises reais, recorram aos mecanismos de quadros teóricos (como o multiplicador keynesiano) que tão ferozmente combatem no seio da sua disciplina? Pensemos sobre isso.

Loucura?

Estava o governo preocupado com o "emprego, emprego, emprego", a tentar criar um mecanismo de apoio às empresas e aos empregos, através de um mais que discutível layoff simplificado - mas com algumas garantias que impedissem o aproveitamento por parte das empresas (portaria nº71-A/2020 e as suas alterações)... e, de repente, tudo mudou.

Face a pressões do patronato, o ministro da Economia - que se saiba não tutela o Ministério do Trabalho e Segurança Social - anuncia que foi decidido executar-se um ... layoff automático!

Segundo o Público:
Empresas podem requerer layoff a partir de sexta-feira
Marta Moitinho Oliveira
O ministro da Economia diz que “a partir de amanhã”, ou seja, sexta-feira, estará disponível no site da Segurança Social um formulário para as empresas pedirem o acesso ao layoff simplificado. Pedro Siza Vieira, que falava na conferência de imprensa que se seguiu ao Conselho de Ministros, adiantou que o pedido é “automático”, bastando para isso a entrega desse requerimento dizendo a situação em que se insere (ou seja, o motivo pelo qual fecha), quais os trabalhadores que ficam em redução de horário e quais os que ficam com o contrato suspenso, não havendo necessidade de outros documentos, além da declaração do contabilista. O governante acrescentou que a Segurança Social pode depois pedir mais elementos. O apoio é dado “a partir da data em que o pedido é solicitado”. Siza Vieira disse ainda que está previsto que os reembolsos da Segurança Social sejam feitos “numa data certa” ainda a definir para que as empresas possam programar a tesouraria.
(Se não viu um post posterior, leia aqui as declarações do ministro da Economia à saída do Conselho de Ministros).

Este é o risco de se perder as rédeas do cavalo. E quem paga, nesta conjuntura, vai ser a Segurança Social, mesmo que as empresas tenham recursos suficientes para pagar aos seus trabalhadores. Portanto, a portaria estipula condições, mas a Segurança Social - aquela que tanto se gosta de dizer que está em ruptura - vai pagar mal seja apresentado o pedido de apoio.

Mais valia que o Estado assumisse esse custo e desembolsasse um subsídio às empresas nessa situação. Porque, daqui de fora, parece um saque aos dinheiros da Segurança Social.

Espera-se, ao menos, que haja uma cláusula que estipule que, caso se prove que a empresa possuía recursos suficientes, o pedido será considerado como tentativa de fraude e punível de acordo com a lei.

Para lá dos gritinhos


É muito giro ver gente de esquerda por aí aos gritinhos de entusiasmo: “Ah, agora até os liberais reconhecem a importância do Estado!” São gritinhos profundamente idiotas. Não há nenhum liberal que defenda que o mundo se organiza sem Estado e sem governo. Isso é, quando muito, um anarquista, não um liberal. Um liberal defende um Estado limitado e com funções específicas, e uma delas é certamente o dever de enfrentar com firmeza o combate a uma crise como esta.

Não sei quem à esquerda andou por aí aos gritinhos de entusiasmo. Quem lê o Público já ouviu certamente os gritinhos profundamente idiotas de João Miguel Tavares: gritinhos de apoio à austeridade, que degradou os serviços públicos universais de que todos agora reconhecidamente dependem; gritinhos de apoio ao Estado, certamente, mas a um Estado que desregulamenta, liberaliza e privatiza, a um Estado que transfere “com firmeza” recursos de baixo para cima da pirâmide social e de dentro para fora do país; gritinhos de apoio a uma entidade que, na realidade, já não é bem um Estado, dados os constrangimentos supranacionais, de resto tão bem teorizados pelo neoliberais ao longo da sua globalista história.

É claro, quase trivialmente claro, que para lá da ideologia da mão invisível ou da ordem espontânea, a economia política liberal e neoliberal nunca prescindiu de um Estado selectivamente forte na teoria e na prática, de Adam Smith a Milton Friedman, passando por Friedrich Hayek.

A minha fórmula preferida nesta tradição é mesmo a de Hayek, que dá para muito: “é o carácter e não o volume da actividade estatal que é importante”, visto que “uma economia de mercado funcional pressupõe certas actividades por parte do Estado”, havendo mesmo muitas outras que pode tolerar, informa-nos-nos de forma detalha em A Constituição da Liberdade. No fundo, é aceitável tudo o que reforce os direitos capitalistas. Smith pelo menos reconhecia os perigos da especulação ou da subordinação laboral e imperial.

Já agora, Milton Friedman discutia, em 1951, “o neoliberalismo e as suas perspectivas”, num texto que encabeça uma colectânea coordenada pelo seu mais importante e apologético biógrafo. Numa intervenção típica deste movimento, Friedman valoriza aí a luta das ideias e rejeita associações ao laissez-faire no combate ao “colectivismo”, reconhecendo que uma ordem concorrencial de mercado requer múltiplas instituições públicas de suporte que a garantam e que corrijam as suas eventuais falhas, mas através de políticas conformes ao seu desenvolvimento de novos mercados. Em suma, reconhece que “o neoliberal está disposto a dar ao Estado grandes poderes e responsabilidades”. Foram realmente grandes os poderes no Chile de Pinochet, por exemplo.

A questão na história do capitalismo realmente existente nunca é intervir ou não intervir, mas sim em nome de que interesses e de que valores é que se intervém. Na periferia, um liberal ameaçado pode facilmente transformar-se num fascista, enquanto que no centro pode até transformar-se num social-democrata. Tudo o resto são mesmo gritinhos idiotas.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Nas traseiras da caserna

Quando se exorta um povo a partir para a guerra, é de desconfiar. Em geral, precisam da carne de todos para uma guerra já decidida à sua revelia.

A guerra é a coisa mais horrível que existe. E no caminho, transfere-se o poder para uma unidade de comando. Evocar que a "democacia não foi suspensa" é já meio caminho para o fazer. Por alguma razão, nenhum país até agora o fez nestes moldes, e tudo foi a despropósito.

A guerra que Marcelo Rebelo de Sousa convocou não é uma guerra. Se fosse, Marcelo Rebelo de Sousa nunca deveria ser considerado aliado porque sempre esteve contra um reforço do Serviço Nacional  de Saúde. Mas não deixa de ser uma tentativa de transferência do poder, para quem define quinzenalmente o Estado de Emergência - Marcelo Rebelo de Sousa.

Mais grave - e mais patético - é quando a transferência de poder se faz por razões diferentes das evocadas. A declaração do Presidente refere cinco razões, mas a essencial evoca. a necessidade de  "medidas mais drásticas" que as adoptadas pelo Governo.
Primeira – Antecipação e reforço da solidariedade entre poderes públicos e deles com o Povo. Outros países, que começaram, mais cedo do que nós, a sofrer a pandemia, ensaiaram os passos graduais e só agora chegaram a decisões mais drásticas, que exigem maior adesão dos povos e maior solidariedade dos órgãos do poder. Nós, que começamos mais tarde, devemos aprender com os outros e poupar etapas, mesmo se parecendo que pecamos por excesso e não por defeito.
Mas nem Marcelo Rebelo de Sousa as definiu, nem a sua prática desde o início da crise mostram esse interesse por "decisões mais drásticas". Pelo contrário. As razões de Marcelo Rebelo de Sousa são fracas, mal definidas e inconsistentes face à prática quotidiana do Presidente da República.

Marcelo Rebelo de Sousa só se mostrou publicamente interessado pela epidemia quando já morriam milhares em todo o mundo, mesmo às nossas portas. E mesmo assim teve dias. Esteve calado durante a quarentena - obrigatória pela sua prática leviana - e, durante esse período, foi insultado pela extrema-direita de ser medroso. Quando pôde, Marcelo Rebelo de Sousa vestiu a farda, calçou as botas e, carregando a bazuka, assinou o decreto de Estado de Emergência, acolhendo atrás de si todos aqueles que gostariam de reverter maioria de esquerda no Parlamento.

A longa cronologia que segue não é exaustiva e, ainda assim, é demasiado longa. Ninguém a lerá. Foi feita apenas a partir das notícias do jornal Público e na página oficial da Presidência. Vai de Fevereiro até 8/3 (quando o PR esteve em  quarentena).

Rebobine-se o filme e veja-se como o PR tratou displicente e ligeiramente o assunto que hoje é dramático. Faça-se contas aos dias de incumbação do vírus e julgue-se os comportamentos perigosos de Marcelo Rebelo de Sousa. Pior: a forma como Marcelo Rebelo de Sousa preencheu os seus dias contrasta escandalosamente com a linguagem bélica agora usada.

Se isto é uma guerra, Marcelo Rebelo de Sousa esteve - até ao últimos dos dias - nas traseiras da caserna a jogar cartas e a beber cerveja. E agora quer ser general.

Simétrica, uma ova

Parem de dizer e escrever que "esta crise é simétrica". Raramente uma crise, qualquer que seja a sua origem, produz efeitos equivalentes nos diferentes países. Desta vez não é diferente.

Desde logo, há sectores mais afectados do que outros e as estruturas produtivas dos países diferem muito. Por exemplo, os países onde o peso do turismo é maior e/ou que são mais dependentes do exterior para a produção de equipamentos médios e bens essenciais, tenderão a ser muito mais afectados do que os restantes.

Da mesma forma, os custos de financiamento tendem a aumentar mais para os países que, por diferentes motivos, são considerados como sendo mais arriscados para os investidores.

Como em qualquer crise, vamos ter efeitos muito diferentes entre os países da UE - e é por isso que vai se tão difícil encontrar uma solução consensual.

Em defesa do alívio quantitativo para o povo

Como outros neste blogue, tenho defendido o financiamento monetário à economia. Aqui, por exemplo, defendi uma medida específica de financiamento monetário, a injeção de dinheiro diretamente no bolso das pessoas, por assim dizer, ou alívio quantitativo para o povo (people’s quantitative easing), como outros preferem.


Muitas vezes para desqualificar esta política monetária, há também quem a designe de dinheiro atirado de um helicóptero (helicopter money), relevando assim a associação com Milton Friedman, o conhecido monetarista a quem a paternidade desta última expressão é geralmente atribuída.

Acerca deste assunto, duas notas.

Primeiro, as ideias a quem as produziu. A proposta política de dar diretamente dinheiro às famílias foi primeiramente formulada por Silvio Gesell em 1906 como explica Keynes no capítulo 23 da Teoria Geral.

Vale a pena ler com atenção porque, entre outras razões, a enunciação da proposta aborda também os mecanismos propostos por Gesell para lidar com a possibilidade de a injeção monetária ser aforrada, ao invés de gasta, possibilidade sempre assinalada pelos detratores desta abordagem no seu afã de mostrar que a mesma não funciona. Pelos vistos, lê-se menos Keynes do que se apregoa.

Segundo, as ideias como elas são. É verdade que Friedman apoia a ideia de atirar dinheiro às pessoas de um helicóptero? Não, não é. Esta é uma ideia progressista e Friedman é o decano das políticas monetaristas.

Dito isto, é verdade que, hipóteses delirantes (como, entre outras, a da oferta monetária exógena) e uma escrita tortuosa e obscura (que, esconde uma agenda política regressiva sob um foguetório de desnecessária formalização matemática), tornam difícil discernir qual é, de facto, a posição de Friedman acerca deste assunto.

Ainda assim, meu ver, não pode haver dúvidas. Como pode alguém, que afirma que uma “política razoavelmente próxima do ótimo provavelmente seria manter constante a quantidade absoluta de dinheiro” (página 46), advogar que se dê dinheiro, criado do nada, às pessoas? Como também explica uma das destacadas vozes da Teoria Monetária Moderna, William Mitchell, não pode.

Em suma, a ideia do helicopter money, na sua forma de dinheiro dado diretamente às pessoas, não é – originalmente - de Friedman que, de resto, não a defende e, pelo contrário, se lhe opõe.

No presente contexto histórico de uma adversidade económica potencial praticamente sem rival na História, quando a economia pode entrar em colapso, porque os rendimentos de quem trabalha, pura e simplesmente, se eclipsam, chamemos-lhe o que quisermos. Esta é uma boa ideia.

Não precisamos de dívida, mas de financiamento. Financiamento para as famílias e para os Estados: é tão simples que a mente bloqueia. Até os economistas convencionais começam a percebê-lo. Cada vez em maior número.