terça-feira, 31 de março de 2020

Lay-off 3 - Os heróis abandonados

Muitos trabalhadores - aqueles que são considerados nos discursos políticos como heróis - estão a laborar com o risco da sua saúde e mesmo da sua própria vida e dos seus familiares. E nem por isso são, no mínimo, compensados com melhores retribuições salariais.

Muito pelo contrário: vivem sob a espada do desemprego iminente - e que vai acontecer com estas medidas - que os faz aceitar essas baixas condições de trabalho, em tempo de sacrifício colectivo; ou do risco de redução salarial caso a sua entidade patronal decida recorrer aos apoios públicos de lay-off. E mesmo assim nada lhe garante que, passado esse apoio, o desemprego não lhes bata a porta. Os apoios públicos irão socorrer as empresas - que se libertam dos "custos" salariais - mas não socorrem devidamente os seus trabalhadores que ficarão com um remuneração a dois terços do seu valor durante seis meses. E ver-se-á, no futuro, como é que as empresas vão aproveitar a conjuntura para criar o novo normal das baixas remunerações:

Partidos à esquerda e centrais sindicais têm feito eco de inúmeras situações de despedimento ocorrido antes das novas normas do lay-off terem entrado  em vigor. A CGTP critou uma linha de denúncia distrital e avança com 1600 despedimentos nos últimos dias. Os sites das principais organizações sindicais têm relatados muitos casos. Imposição de férias no grupo Calzedonia, a Loja O Gato Preto recorre ao lay-off simplificado por um mês quando possui recursos; o mesmo na Sacoor Brothers onde o rendimento bruto dos trabalhadores vai muito além do salário base apoiado; a Primark não deu ainda garantias de pagamento salarial; o encerramento das clínicas do SAMS e do centro clínico a coberto da pandemia; a REN que adia negociação de aumentos salariais para depois da crise sanitária; a CNS/Fiequimetal suspende as negociações, apesar de os lucros serem conhecidos; no ramo dos transportes, empresas de trabalho temporário aproveitam a pandemia para despedir promotores de vendas e motoristas, que já deveriam estar nos quadros da CarrisTur, pois lá laboram há mais de 3 anos; a Martifer, que contratou com a Petrogal a manutenção regular na refinaria de Sines, manda a sua subcontratada CMN despedir 90 trabalhadores, entre os quais está um dirigente do SITE Sul. O PCP e o Bloco nas suas páginas de denúncia de despedimentos (aqui e aqui respectivamente) já referiram vários casos. Na Alliance healthcare e na Cimpor/Sacopor se alterou unilateralmente horários; na Celtejo e Navigator passou-se para um horário concentrado de 12 horas; na Randstad, cortou-se o subsídio de alimentação e prémios a quem está em teletrabalho; na Ansiel, não se aceita a dispensa para assistência a filhos; na Visteon em Palmela, houve despedimentos dos trabalhadores de empresas de trabalho temporário; na PSA Peugeot de Mangualde e Huff em Tondela vai se recorrer ao lay-off sem haver necessidade; Visabeira, lojas EDP sem material de protecção; na Caeteno Aeronaltic (Gaia), Essilor Portugal, Renault Cacia e Bosch (Aveiro) impõe-se tempos de paragem como tempo de férias; mais recentemente, referencioau-se o afastamento de 500 trabalhadores na TAP que irá colocar os seus pilotos em regime de lay-off. Isto mau grado a empresa ter condições para suportar esses custos. E a lista poderia prossegue... 

Nada disto faz sentido. Toda a esquerda à esquerda do PS coincide na análise: o apoio aos salários será a melhor forma de combater a recessão por asfixia da oferta que tende a provocar uma redução da procura. O Bloco propõe-no. O PCP vai propô-lo no Parlamento na próxima quinta-feira. E tudo isto se passa apesar de o senhor Presidente da República - que os considera de heróis - nada referir em vésperas da sua decisão de renovar ou não o Estado de Emergência. Sobre isso, o decreto apenas obliterou o direito de greve e de manifestação...

Tudo isto acontece porque o lay-off autorizado pelo Conselho de Ministros foi pensado, sobretudo, na lógica de funcionamento das empresas. E não na vida das pessoas que dependem do trabalho numa situação excepcional como a que se vive.

Ora veja-se.


A primeira versão do lay-off autorizada pela Resolução  do Conselho de Ministros 10-A/2020, mal se referia aos trabalhadores. As tarefas da ministra do Trabalho apareciam no ponto 11, no âmbito do regime simplificado de lay-off  a empresas em situação de crise empresarial. Não se proibia os despedimentos. Esse erro foi remediado na 2ª versão das medidas, com o decreto-lei 10-G/2020. Mas uma vez mais, o diploma parecia mais preocupado com a situação de crise empresarial. O seu artigo 13º (proibição de despedimentos) referia:
Durante o período de aplicação das medidas de apoio previstas no presente decreto-lei, bem como nos 60 dias seguintes, o empregador não pode fazer cessar contratos de trabalho de trabalhador abrangido por aquelas medidas, ao abrigo das modalidades de despedimento coletivo ou despedimento por extinção do posto de trabalho, previstos nos artigos 359.º e 367.º do Código do Trabalho.
Ao definir-se que apenas os trabalhadores abrangidos pelo lay-off  estavam protegidos de despedimento colectivo e por extinção do posto de trabalho, abria-se ao mesmo tempo a porta para o  despedimentos de trabalhadores não abrangidos pelas medidas de redução ou suspensão dos contratos de trabalho. Além do corte generalizado de salários para 2/3 do seu valor, permitia-se às empresas escolher entre quem seria mantido nos quadros - com redução salarial (a maior parte paga pela Segurança Social) - e quem era despedida, concedendo às empresas uma margem de manobra na gestão dos despedimentos, com avultados apoios financeiros (garantidos pelo Estado), enquanto os trabalhadores ficavam mais desprotegidos.

Este inadmissível alçapão, ainda para mais bizarro já que o próprio ministro da Economia - que já se viu tutela o Ministério do Trabalho numa estranha concepção neoliberal - é, ele próprio, um jurista.

Dois dias depois, este diploma foi corrigido pela Declaração de Rectificação 14/2020. Veja-se a importância da diferença disposição das mesmas palavras. Até parece um lapso: 
«Durante o período de aplicação das medidas de apoio previstas no presente decreto-lei, bem como nos 60 dias seguintes, o empregador abrangido por aquelas medidas não pode fazer cessar contratos de trabalho ao abrigo das modalidades de despedimento coletivo ou despedimento por extinção do posto de trabalho, previstos nos artigos 359.º e 367.º do Código do Trabalho.»
Apesar disso, nada impede que se despeça por mútuo acordo ou se cesse contratos a prazo ou se rescinda contratos de trabalho temporário. Apenas se fala de despedimentos colectivos e por extinção do posto de trabalho. Parece que qualquer que seja a medida se pensa mais no que vai acontecer ao funcionamento das empresas do que às famílias que dependem do salário.  

É possível que essa limitação tenha presente a factura financeira dos encargos públicos,  dado o  limbo em que a União Europeia (UE) deixou cada país, sem garantias de apoios dados não resultem em mais condicionamentos políticos, numa nova fase de austeridade futura. Mas isso só revela que a UE não está construída para resolver os desequilíbrios nacionais. A sua supervisão é mais prejudicial aos Estados nacionais.

Tempo de pensar em grande. 
 




5 comentários:

  1. Pensar em grande e não esquecer gente como o ministro da economia, registem todas as suas intervenções e vejam qual é de facto a sua preocupação. Defender as empresas é muitas vezes defender as hierarquias superiores e os seus accionistas, a preocupação continua a ser salvaguardar o poder e o estilo de vida dos de cima e passar os custos para aqueles que apenas podem pagar algo com a sua própria vida. A indecência como modo de vida tem muito de criminoso.

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  2. «E nem por isso são, no mínimo, compensados com melhores retribuições salariais.»

    Está a falar de funcionários públicos?
    Aqueles que têm emprego garantido?
    Que têm regalias que supõem a sua dedicação ao serviço público?
    Que têm por profissão tratar doentes?

    É a contragosto que, a propósito de gente que respeito e cujo serviço reconheço e louvo, tenho que me insurgir contra este choradinho em que tudo é pouco para uns e tudo é demais para outros!
    E quem não saiba que sem empresas nem há emprego privado nem público, ou é treteiro ou puro idiota!

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  3. Acho piada ao muito que se tem escrito em Portugal sobre o que os eleitores alemães e holandeses vão continuar a tolerar ou deixar de tolerar?! O ideal era os eleitores portugueses deixarem de tolerar encher-lhes os bolsos com as nossas receitas fiscais.

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  4. É o trabalho que cria riqueza. De duas formas, através da ação transformativa, e através do consumo. Colocar os trabalhadores no papel de meros recursos, que podem ser usados ou para arriscar a sua saúde e até a sua vida para manter serviços essenciais a funcionar, e por outro como um animal que se coloca num canil quando a conta do veterinário fica elevada, é tragico-comico no meio de um discurso de união e racionalidade. Pois todos temos de fazer sacrifícios, para deixarem de ser um problema para as empresas. E no fim de tudo isto, com a crise que se desenha, serão novamente os trabalhadores chamados a suportar, com redução de rendimentos, serviços sociais, e desemprego.

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  5. A este propósito solicito a alguém que frequente este espaço se pode dar uma ajuda esclarecedora:

    Pergunta e respetiva resposta colhida em documento oficiais sobre a pandemia.

    Pergunta:
    Tenho filha menor de 12 anos e vou ter de ficar em casa para a acompanhar, As faltas ao trabalho são justificadas?
    Resposta:
    Sim, as faltas são justificadas, desde que não coincidam com as férias escolares. O trabalhador deve comunicar à entidade empregadora o motivo da ausência através de formulário próprio.

    Baseando-me no caso concreto da minha filha, será ajustado considerar falta ao trabalho quando por articulado governamental e determinação da entidade empregadora, é forçada a ficar em casa onde simultaneamente com o teletrabalho, perfeitamente enquadrado com a função profissional, tem a premente necessidade de dar assistência à sua bebé de 2 anos?
    Embora se reconheça que alguma parte do tempo de tarefas seja de atendimento à sua criança, pode isso constituir factor de exclusão do regime de teletrabalho?
    Tendo consciência que o caso que relato será comum a muitos outros trabalhadores, para evitar situações de preocupante desespero solicito a Vexas possível esclarecimento.
    Muto obrigado,
    Aarão Marques

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